sexta-feira, 31 de maio de 2013

"Gritar" - Poema de Paul Éluard


Mário Cesariny, Figuras de Sopro, 1947.  
Tinta-da-china, Óleo e Verniz\industrial sobre Platex



Gritar


Aqui a ação simplifica-se
Derrubei a paisagem inexplicável da mentira
Derrubei os gestos sem luz e os dias impotentes
Lancei por terra os propósitos lidos e ouvidos
Ponho-me a gritar
Todos falavam demasiado baixo falavam e
[escreviam
Demasiado baixo

Fiz retroceder os limites do grito

A ação simplifica-se

Porque eu arrebato à morte essa visão da vida
Que lhe destinava um lugar perante mim

Com um grito

Tantas coisas desapareceram
Que nunca mais voltará a desaparecer
Nada do que merece viver

Estou perfeitamente seguro agora que o verão
Canta debaixo das portas frias
Sob armaduras opostas
Ardem no meu coração as estações
As estações dos homens os seus astros
Trémulos de tão semelhantes serem

E o meu grito nu sobe um degrau
Da escadaria imensa da alegria

E esse fogo nu que me pesa
Torna a minha força suave e dura

Eis aqui a amadurecer um fruto
Ardendo de frio orvalhado de suor
Eis aqui o lugar generoso
Onde só dormem os que sonham
O tempo está bom gritemos com mais força
Para que os sonhadores durmam melhor
Envoltos em palavras
Que põem o bom tempo nos meus olhos

Estou seguro de que a todo o momento
Filha e avó dos meus amores
Da minha esperança
A felicidade jorra do meu grito

Para a mais alta busca
Um grito de que o meu seja o eco.


Paul Éluard, in "Algumas das Palavras"
Tradução de António Ramos Rosa


 
Paul Éluard


Paul Éluard (pseudónimo de Eugène Emile Paul Grindel; Saint-Denis, 14 de dezembro de 1895 - Charenton-le-Pont, 18 de novembro de 1952) foi um poeta francês, autor de poemas contra o nazismo que circularam clandestinamente durante a Segunda Guerra Mundial.
Participou no movimento dadaísta, foi um dos pilares do surrealismo, abrindo caminho para uma ação artística mais engajada, até filiar-se ao partido comunista francês. Tornou-se mundialmente conhecido como O Poeta da Liberdade.
É o mais lírico e considerado o mais bem dotado dos poetas surrealistas franceses.

Aos 16 anos, após uma infância feliz, Paul Éluard contraiu tuberculose, o que o obrigou a interromper seus estudos. Na Suíça, no Sanatório de Davos, ele conhece uma jovem russa, Helena Diakonova, que ele chama de Gala. Casa-se com ela em 21 de fevereiro de 1917. Sua impetuosidade, seu espírito decidido, sua cultura impressionam o jovem Éluard, que encontra nela seu primeiro impulso de poesia amorosa. Juntos, eles lêem poemas de Gerard de Neval, Baudelaire e Apollinaire. Em 11 de maio de 1918, nasce sua filha Cecile.

Em 1918, quando a vitória é proclamada, Paul Éluard alia a plenitude de seu amor a um profundo questionamento do mundo: é o movimento Dada que vai disparar este processo, através do absurdo, da loucura, do non-sense.
Amigo íntimo de André Breton, Éluard participa de todas as manifestações dadaístas. Mas ele é o único do grupo a afirmar que a linguagem pode ter um propósito por ela mesma, enquanto os outros a consideram apenas como um “meio de destruição”.
O surrealismo, na sequência, lhe dará os subsídios para sua criação. Muito bem aceite pelos críticos tradicionais da época, atualmente, sua vida confunde-se com o movimento surrealista.

A sua obra é extensa. Com Benjamin Péret, escreve "152 poèmes". Com André Breton, "No defeito do silêncio" e "Imaculada Concepção". Com Breton e René Char, "Trabalhos".

A partir de 1925 apoia a revolta dos Marroquinos. Em 1926, ele ingressa, junto com Aragon e Breton, no partido comunista francês. Nesta mesma época, publica "Capital da dor" (1926) e "Amor e Poesia" (1929). Em 1928, novamente doente, retorna para o sanatório com Gala, onde ela reencontra Salvador Dali e ele conhece Nusch.

Os anos de 1931 a 1935 são os mais felizes de vida de Éluard. Casado com Nusch, ela representa para ele a encarnação da mulher, companheira, cúmplice, sensual, sensível e fiel.

Expulso do partido comunista, ele continua sua luta pela revolução, por todas as revoluções.
Na Espanha, em 1936, ele se insurge contra o movimento franquista. No ano seguinte, o bombardeio de Guernica o inspira a escrever o poema “A Vitória de Guernica”. Durante estes dois anos terríveis para a Espanha, Éluard e Picasso estão sempre juntos. O poeta diz ao pintor: “Você segura a chama entre teus dedos e pinta como um incêndio”.

Em 1940, ele se instala, com Nusch, em Paris e se inscreve, clandestinamente, no partido comunista. Em janeiro de 1942, seu poema “Liberté” (Liberdade), composto por vinte e uma estrofes, é lançado por aviões ingleses sobre a França. Milhares de exemplares, contendo os versos mais famosos de Paul Éluard, chegam às mãos da Resistência francesa e fornecem um novo alento, na luta pela libertação da ocupação nazista.

Nos meus cadernos da escola
Na minha carteira nas árvores
Sobre a areia e sobre a neve
Escrevo o teu nome

Em todas as páginas lidas
Em todas as páginas em branco
Pedra sangue papel ou cinza
Escrevo o teu nome

Na selva e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
Na memória da minha infância
Escrevo o teu nome

Em cada raio da aurora
Sobre o mar e sobre os barcos
Na montanha enlouquecida
Escrevo o teu nome

Na saúde recuperada
No perigo desaparecido
Na esperança sem lembranças
Escrevo o teu nome

E pelo poder de uma palavra
a minha vida recomeça
Eu renasci para conhecer-te
Para dizer o teu nome

Liberdade.



Mário Cesariny, “O opérário”, 1947.
Tinta-da-china, aguada e guache sobre papel colado em platex.


Em 1943, com Jean Lescure, ele reúne textos de poetas da Resistência e publica “A Honra dos poetas”. Frente à opressão, os poetas cantam em coro a esperança e a liberdade. Esta é a primeira antologia de Éluard onde ele mostra seu desejo de abertura e sua vontade de se juntar.
Na Libertação, ele é festejado, junto com Louis Aragon, como o grande poeta da Resistência.

Sempre acompanhado por Nusch, ele participa de inúmeras conferencias. Mas, em 28 de novembro de 1946, ele recebe um telefonema com a notícia da morte repentina de Nusch, em conseqüência de uma congestão cerebral.
Com a ajuda dos amigos, lentamente, Éluard consegue recuperar o “duro desejo de durar” e ele encontra novas forças em seu amor pela humanidade. Em sua obra “Do horizonte de um homem ao horizonte de todos”, pode-se observar a caminho que ele percorreu, do sofrimento à esperança reencontrada.

Em abril de 1948, Paul Éluard e Picasso são convidados a participar do Congresso para a Paz em Wroclaw, Polónia. Em junho, Éluard publica os “Poemas Políticos”. No ano seguinte, participa dos trabalhos do Congresso em Paris como Conselheiro mundial da Paz. No mês de junho, passa alguns dias com os gregos entricheirados no Monte Grammos.

Depois vai para Budapeste, assitir às festas comemorativas do centenário da morte do poeta Sandor Petõfi, onde encontra Pablo Neruda. Em setembro, participa de mais um Congresso da Paz, no México. Conhece Dominique Lemor e se casa com ela em 1951.
Neste mesmo ano, publica “O Phoenix”, obra inteiramente dedicada à alegria reencontrada.
Em novembro de 1952, Paul Éluard morre do coração, em sua casa. Neste dia, segundo Robert Sabatier, “o mundo inteiro estava de luto”.
Fonte: Wikipédia


Pintura de Mário Cesariny

"Fui Sabendo de Mim" - Poema de Mia Couto


John William Godward (British, 1861-1922), Idleness, 1900



Fui Sabendo de Mim


Fui sabendo de mim 
por aquilo que perdia 

pedaços que saíram de mim 
com o mistério de serem poucos 
e valerem só quando os perdia 

fui ficando 
por umbrais 
aquém do passo 
que nunca ousei 

eu vi 
a árvore morta 
e soube que mentia 


Mia Couto, 
in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"


John William Godward


John William Godward (9 de agosto de 1861 — 13 de dezembro de 1922) foi um pintor inglês do final do período Pré-rafaelita. Foi um protegido de Sir Lawrence Alma-Tadema, mas seu estilo perdeu o gosto do público com a concorrência de pintores como Picasso. Godward expôs na Royal Academy em 1887. Quando se mudou para  Itália com uma de suas modelos em 1912, sua família rompeu qualquer tipo de contato com ele e retirou seu retrato do álbum da família. Retornou à Inglaterra em 1919, e permaneceu ali até sua morte, em 1922.
Uma de suas pinturas mais conhecidas é Dolce far niente (1904). Como outras de suas pinturas, esta possui mais de uma versão. Existe uma versão mais antiga (e menos conhecida também) de 1897.
Suicidou-se aos 61 anos, e diz-se que em seu bilhete de suicida estava escrito que "o mundo não é grande o suficiente para mim e Picasso".
Sua já problemática família, que desaprovava sua carreira de artista, com a vergonha que trouxe o suicídio acabou queimando seus documentos. Não se tem conhecimento de ter restado alguma fotografia de Godward.
Godward foi um pintor neoclássico vitoriano e, consequentemente, um seguidor das teorias de Frederic Leighton. Entretanto, estilisticamente foi mais ligado a Lawrence Alma-Tadema, com quem dividiu uma predileção pela estrutura clássica.



John William Godward, Idleness, 1903


John William Godward, Endymion, 1893 



John William Godward, Tranquillity


John William Godward, Summer Flowers, 1903


John William Godward, Dolce far niente, 1904


John William Godward, In the Days of Sappho, 1904


John William Godward, Girl in yellow drapery, 1901


John William Godward, Dolce Far Niente


"Todas as artes são como espelhos nos quais o homem 
conhece e reconhece algo de si que ignorava."

Alain, pseud. de Émile-Auguste Chartier



John William Godward, The trysting place


"Quanto melhor se enche a vida, menos se tem medo de perdê-la." 

Alain, pseud. de Émile-Auguste Chartier


John William Godward, Idle Thoughts, 1898


"Saber é compreender como é que a mais insignificante das coisas está ligada ao todo; 
nada existe por si só."

Alain, pseud. de Émile-Auguste Chartier
(Ensaísta e filósofo francês, 1868 - 1951)


terça-feira, 28 de maio de 2013

"Ode ao Gato" - Crónica de Arthur da Távola



John Everett Millais
 (English painter and illustrator, 1829–1896), A Flood, 1870.
 


Ode ao Gato


Nada é mais incómodo para a arrogância humana que o silencioso bastar-se dos gatos. O só pedir a quem amam. O só amar a quem os merece. O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor, reverência, obediência. O gato não satisfaz as necessidades doentias de amor. Só as saudáveis.

Já viu gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens de um pilantra que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante veste saiote e dança valsa no circo. O leal cachorro no fundo compreende as agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por ele. O leão e o tigre se amesquinham na jaula. Gato não. Só aceita relação de independência e afeto. E como não cede ao homem, mesmo quando dele dependente, é chamado de traiçoeiro, egoísta, safado, espertalhão ou falso.

“Falso”, porque não aceita a nossa falsidade e só admite afeto com troca e respeito pela individualidade. O gato não gosta de alguém porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio, que é dele e o dá se quiser.

O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte. Sábio, é esperto. O gato é zen. O gato é Tao. Conhece o segredo da não-ação que não é inação. Nada pede a quem não o quer. Exigente com quem o ama, mas só depois de muito se certificar. Não pede amor, mas se lhe dá, então o exige.

O gato não pede amor. Nem dele depende. Mas, quando o sente, é capaz de amar muito. Discretamente, porém, sem derramar-se. O gato é um italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano, mas se comporta como um lorde inglês.

Quem não se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o gato. Ele aparece, então, como ameaça, porque representa a relação sempre precária do homem com o (próprio) mistério. O gato não se relaciona com a aparência do homem. Vê além, por dentro e avesso. Relaciona-se com a essência.

Se o gesto de carinho é medroso ou substitui inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão, o gato sabe. E se defende ao afago. A relação dele é com o que está oculto, guardado e nem nós queremos, sabemos ou podemos ver. Por isso, quando esboça um gesto de entrega, de subida no colo ou manifestação de afeto, é muito verdadeiro, impulso que não pode ser desdenhado. É um gesto de confiança que honra quem o recebe; significa um julgamento.

O homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e atenua como pode (enfrenta a própria solidão de maneira muito mais valente que nós).

Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, eles se afastam. Nada dizem, não reclamam. Afastam-se. Quem não os sabe “ler” pensa que “eles não estão ali”, “saíram” ou “sei lá onde o gato se meteu”. Não é isso! É preciso compreender porque o gato não está ali. Presente ou ausente, ensina e manifesta algo. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, está comunicando códigos que nem sempre (ou quase nunca) sabemos traduzir.

O gato vê mais, vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluidos, auras, fantasmas amigos e opressores. O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente ao nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério.

Monge, sim, refinado, silencioso, meditativo e sábio, a nos devolver as perguntas medrosas esperando que encontremos o caminho na sua busca, em vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado. O gato sempre responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a possibilidade de criatividade e novas inter-relações, infinitas, entre as coisas.

O gato é uma lição diária de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são íntimas e profundas. Exigem recolhimento, entrega, atenção. Desatentos não agradam os gatos. Bulhosos os irritam. Tudo o que precisa de promoção ou explicação os assusta. Ingratos os desgostam. Falastrões os entediam. O gato não quer explicação, quer afirmação. Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Ninguém em toda a natureza, aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o gato.

Lição de sono e de musculação, o gato nos ensina todas as posições de respiração e yoga. Ensina a dormir com entrega total e diluição no Cosmos. Ensina a espreguiçar-se com a massagem mais completa em todos os músculos, preparando-os para a ação imediata. Se os preparadores físicos aprendessem o aquecimento do gato, os jogadores reservas não levariam tanto tempo (quase quinze minutos) se aquecendo para entrar em campo. O gato sai do sono para o máximo de ação, tensão e elasticidade num segundo. Conhece o desempenho preciso e milimétrico de cada parte do seu corpo, ao qual ama e preserva como a um templo.

Lições de saúde sexual e sensualidade. Lição de envolvimento amoroso com dedicação integral de vários dias. Lição de organização familiar e de definição de espaço próprio e território pessoal. Lição de anatomia, equilíbrio, desempenho muscular. Lição de salto. Lição de silêncio. Lição de descanso. Lição de introversão. Lição de contacto com o mistério, o escuro e a sombra. Lição de religiosidade sem ícones.

Lição de alimentação e requinte. Lição de bom gesto e senso de oportunidade. Lição de vida e elegância, a mais completa, diária, silenciosa, educada, sem cobranças, sem veemências ou exageros e incontinências.

O gato é um monge portátil sempre à disposição de quem o saiba perceber. 


Arthur da Távola 

(Artur da Távola, o pseudónimo de Paulo Alberto Moretzsohn Monteiro de Barros, (Rio de Janeiro, 3 de janeiro de 1936 — Rio de Janeiro, 9 de maio de 2008) foi um advogado, jornalista, radialista, escritor, professor e político brasileiro.)







Henriëtte Ronner-Knip
 (Dutch-Belgian artist, 1821–1909), A busy family.
 


Sophie Gengembre Anderson
 (French-born British Victorian painter, 1823–1903),
An Opportune Moment.



Albert Anker
 (Swiss painter and illustrator, 18311910)



Charles Spencelayh
 (English painter, 18651958), The Young Artist.


Giovanni Boldini (Italian genre and portrait painter, 18421931), Girl with Black Cat.


Charles Burton Barber (British painter, 1845–1894), Girl and Two Cats.
 


Émile Munier
 (French academic artist, 1840–1895), Favourite Kitten, 1874.


Émile Munier (French academic artist, 1840–1895), Her best friend, 1882


Émile Munier (French academic artist, 1840–1895), Young Girl and Cat, 1882.

domingo, 26 de maio de 2013

"O Solitário" - Poema de Rainer Maria Rilke


Edward Charles Barnes (British, 1830-1882), The emigrant, 1860



O Solitário


Como alguém que por mares desconhecidos viajou,
assim sou eu entre os que nunca deixaram a sua pátria;
os dias cheios estão sobre as suas mesas
mas para mim a distância é puro sonho.

Penetra profundamente no meu rosto um mundo,
tão desabitado talvez como uma lua;
mas eles não deixam um único pensamento só,
e todas as suas palavras são habitadas.

As coisas que de longe trouxe comigo
parecem muito raras, comparadas com as suas —:
na sua vasta pátria são feras,
aqui sustém a respiração, por vergonha. 


Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira




"É a solidão que inspira os poetas, cria os artistas e anima o génio."

(Henri Lacordaire)


domingo, 19 de maio de 2013

"Perseverança" - Poema de Alexander Search (Heterónimo de Fernando Pessoa)


Carl Svante Hallbeck, Cromolitografia mostrando ao fundo a aurora boreal (1856).


Perseverança

 
Não digas que o trabalho é desperdiçado,
Nem que o esforço falha ou parece, no fundo;
Não digas que aquele ao dever curvado
É um entre os tantos sonhos do mundo.

Pois não é em vão que em golpes seguidos,
Com pressa medida, em fragor crescente,
O mar atua nos rochedos batidos
E invade a praia, ruidosamente.

É certo que enfrentam suas investidas,
Do seu bater forte parecem troçar,
Esmagam com força as vagas erguidas
E em espuma fazem as ondas rasgar.

Mas ele bate e bate com força
Em dias, semanas, em meses e anos,
Até que apareça mossa sobre mossa
Que mostre seus gastos, pacientes ganhos.

E os anos passam, as gerações vão,
E menores se quedam as rochas cavadas;
Mas ele, com lenta e firme precisão,
Baterá na terra suas altas vagas.

Certo como o sol e despercebido
Como duma árvore é o seu crescer,
Trabalha, trabalha sem ser iludido
P'la tenaz imagem que se pode ver.

E quando o seu fim de todo obtém,
Em sonoro embate, p'ra fender, se lança,
Seu poder imenso ainda mantém
E, inda mais além, nas águas avança.


Alexander Search, in "Poesia"
 Heterónimo de Fernando Pessoa


Alexander Search é um dos vários heterónimos criados pelo poeta e escritor português Fernando Pessoa. Foi criado em 1899, quando Pessoa ainda era estudante e vivia na África do Sul (1896-1905) acompanhando sua mãe e padrasto, que era diplomata. Com este nome, o poeta escrevia cartas a si mesmo, além de poemas escritos em inglês e português em 1903. Alem deste heterónimo, Pessoa criou ao longo da sua vida imensos outros, incluindo um irmão deste Alexander Search, o qual deu o nome de Charles James Search.
É possível, apesar do pouco que se conhece desta parte da obra do autor, dar a estes poemas a sua autoria: Ao Meu Maior Amigo; Fraternidade; Piedade? Não!; O Mundo; Mania da Dúvida; Quem Sonha Mais?; Dor Suprema; Morte em Vida; Sonhos; Homens do Presente; Soneto de um Céptico; Perfeição; Perseverança.


Carl Svante Hallbeck 


Carl Svante Hallbeck (14 de abril de 1826, Gothenburg, Suécia - 17 dezembro de 1897, Everett, Massachusetts, Estados Unidos) foi um ilustrador e pintor sueco.


Carl Svante Hallbeck, Mondnacht


"A inconstância deita tudo a perder, na medida em que não deixa germinar nenhuma semente." 

Henri Amiel 


 
Henri Frédéric Amiel
Suiça, 1821 // 1881
Escritor/Poeta/Filósofo

sábado, 18 de maio de 2013

"À espera do amado desconhecido" - Poema de Rabindranath Tagore


William Clarke Wontner (1857-1930), The Turquoise Necklace


À espera do amado desconhecido


Quem é esta mulher,
a sempre triste,
que vive no meu coração?
Quis conquistá-la mas não consegui.

Adornei-a com grinaldas
e cantei em seu louvor...
Por um momento
bailou o sorriso no seu rosto,
mas logo se desvaneceu.

E disse-me cheia de pena:
— A minha alegria não está em ti.

Comprei-lhe argolas preciosas,
abanei-a
com leques recamados de diamantes,
deitei-a em cama de oiro ...
Bateu as pálpebras
como um relâmpago de alegria
que logo se apagou.

E disse-me cheia de pena:
— Não está nessas coisas a minha alegria.

Sentei-a num carro de triunfo,
e passeei-a por toda a terra.
Milhares de corações conquistados
caíram humildes a seus pés,
e as aclamações reboaram pelo céu...
Durante um momento
brilhou o orgulho nos seus olhos,
mas logo se desfez em lágrimas.

E disse cheia de pena:
— Não está na vitória a minha alegria..

Perguntei-lhe:
— Que queres então?
Respondeu-me:
— Espero alguém
que não sei como se chama.
Depois calou-se.

E passa os dias a dizer cheia de pena:
— Quando virá o amado desconhecido?
Quando o conhecerei para sempre?


Rabindranath Tagore
in "O Coração da Primavera"
Tradução de Manuel Simões 
 
 
Safie, One of the Three Ladies of Bagdad, 1900, 
by William Clarke Wontner 
 

"Elege para teu amigo o homem mais virtuoso que conheces."

(Pitágoras)


A Classical Beauty, by William Clarke Wontner 


"Anima-te por teres de suportar as injustiças; a verdadeira desgraça consiste em cometê-las."

(Pitágoras)



William Clarke Wontner, The Bracelet, 1914


"Não te gabes de ser adorado por uma mulher que se adora muito."

(Pitágoras)


William Clarke Wontner, Yasemeen from the Arabian Nights
 

"Não cometas nenhum ato vergonhoso nem na presença de outros nem em segredo. A tua primeira lei deve ser o respeito a ti mesmo."
 
(Pitágoras) 

sexta-feira, 17 de maio de 2013

"Foi um Momento" - Poema de Fernando Pessoa


Leonard Campbell Taylor (British painter, 1874 – 1969), Persuasion, 1914
 


Foi um Momento


Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.
Senti ou não?

Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido.
Mas tão de leve!...

Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há muita coisa
Incompreendida...

Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um ritmo
Novo no espaço?
Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,
Que nem soubesses
Que tinha ser.

Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz. 


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"


Leonard Campbell Taylor by Bassano Ltd, 1929
 

Leonard Campbell Taylor (Oxford, 12 de dezembro de 1874 - 1 de julho 1969) foi um pintor britânico. O artista foi educado no Colégio Cheltenham. Entre 1895 e 1900 estudou na Royal Academy School e foi eleito membro da Royal Academy em 1931. Especializou-se em retratos e interiores, pintado num estilo muito tradicional. Entre a sua lista de clientes de muito prestígio, estava a família fundadora da Courtaulds e, claro, The Courtauld Institute of Art. Sua arte pode ser encontrada numa série de museus, tanto no Reino Unido como no exterior.


Leonard Campbell Taylor, The rain, it raineth every day, 1906


Leonard Campbell Taylor, The Little Corridor


Leonard Campbell Taylor, The Hall, 1952 


Leonard Campbell Taylor, The Gallery, 1952


Leonard Campbell Taylor, The rehearsal, 1907 


Leonard Campbell Taylor, A Blue Dress


Leonard Campbell Taylor, Battledore


Leonard Campbell Taylor, Mother love


Leonard Campbell Taylor, Japanese Prints


"Não queiras conhecer tudo, deixa um espaço livre para te conheceres."

(Vergílio Ferreira)

"É tão Suave a Fuga deste Dia" - Poema de Ricardo Reis


George Segal (american, 1924-2000), Three Figures in Red Shirt, from Blue Jeans Series 1975



É tão Suave a Fuga deste Dia


É tão suave a fuga deste dia, 
Lídia, que não parece, que vivemos. 
Sem dúvida que os deuses 
Nos são gratos esta hora, 

Em paga nobre desta fé que temos 
Na exilada verdade dos seus corpos 
Nos dão o alto prémio 
De nos deixarem ser 

Convivas lúcidos da sua calma, 
Herdeiros um momento do seu jeito 
De viver toda a vida 
Dentro dum só momento, 

Dum só momento, Lídia, em que afastados 
Das terrenas angústias recebemos 
Olímpicas delícias 
Dentro das nossas almas. 

E um só momento nos sentimos deuses 
Imortais pela calma que vestimos 
E a altiva indiferença 
Às coisas passageiras 

Como quem guarda a c'roa da vitória 
Estes fanados louros de um só dia 
Guardemos para termos, 
No futuro enrugado, 

Perene à nossa vista a certa prova 
De que um momento os deuses nos amaram 
E nos deram uma hora 
Não nossa, mas do Olimpo. 


Ricardo Reis, in "Odes" 
Heterónimo de Fernando Pessoa


George Segal, Woman in Red Kimono, 1985


"Alague o seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas." 

(Fernando Pessoa)


Untitled (Woman Combing Hair), by George Segal


"O amor romântico é como um traje, que, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e, em breve, sob a veste do ideal que formámos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em que o vestimos. O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão. Só o não é quando a desilusão, aceite desde o princípio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se renove o aspecto da criatura, por eles vestida."

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego


George Segal, Reclining Nude, 1962, pastel on paper


"Deus concede-nos o dom de viver. Compete-nos a nós viver bem."

(Voltaire)


George Segal, Yellow Nude Reclining