quinta-feira, 9 de maio de 2013

"Humilhações" - Poema de Cesário Verde


Balthus, Portrait de Femme en Robe Bleue, 1935



Humilhações


Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Jó, 
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os; 
E espero-a nos salões dos principais teatros, 
Todas as noites, ignorado e só. 

Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás; 
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos, 
E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos, 
Eu analiso as peças no cartaz. 

Na representação dum drama de Feuillet, 
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra, 
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra 
Saltou soberba o estribo do coupé. 

Como ela marcha! Lembra um magnetizador. 
Roçavam no veludo as guarnições das rendas; 
E, muito embora tu, burguês, me não entendas, 
Fiquei batendo os dentes de terror. 

Sim! Porque não podia abandoná-la em paz! 
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a ideia 
De vê-la aproximar, sentado na plateia, 
De tê-la num binóculo mordaz! 

Eu ocultava o fraque usado nos botões; 
Cada contratador dizia em voz rouquenha: 
— Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha? 
E ouviam-se cá fora as ovações. 

Que desvanecimento! A pérola do Tom! 
As outras ao pé dela imitam de bonecas; 
Têm menos melodia as harpas e as rabecas, 
Nos grandes espetáculos do Som. 

Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger; 
Via-a subir, direita, a larga escadaria 
E entrar no camarote. Antes estimaria 
Que o chão se abrisse para me abater. 

Saí: mas ao sair senti-me atropelar. 
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda 
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda, 
Cresci com raiva contra o militar. 

De súbito, fanhosa, infecta, rota, má, 
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja, 
E disse-me, piscando os olhos de coruja: 
— Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...  
 
 


Balthus (Francês, 1908-2001), Self-portrait, 1940


Balthus, Le passage du Commerce-Saint-André, 1952-1954 


Balthus, The street, 1933


Balthus, The white skirt, 1937
 

Sem comentários: