domingo, 31 de dezembro de 2017

"Um dia te acharás" - Poema de Geir Nuffer Campos


Abbott Handerson Thayer, The Sisters, 1884



Um dia te acharás


Um dia te acharás 
sem inteirar a casa: 
ouvirás o marido ressonando, 
os filhos dormindo em calma… 
O espelho te acenará, 
te lembrará coisas da mocidade, 
coisas da meninice, 
te mostrará vindas algumas rugas; 
contemplarás o espelho, 
o quarto, a casa; 
perguntarás por ti mesma, 
pelo teu próprio destino 
— e o espelho fará silêncio: 
será o sinal de estares acordando. 


in 'Cantiga de Acordar Mulher'


quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

"Jeito de Escrever" - Poema de Irene Lisboa


Pierre Bonnard, The Letter, c. 1906, oil on canvas, National Gallery of Art



Jeito de Escrever


Não sei que diga. 
E a quem o dizer? 
Não sei que pense. 
Nada jamais soube. 

Nem de mim, nem dos outros. 
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas... 
Seja do que for ou do que fosse. 
Não sei que diga, não sei que pense. 

Oiço os ralos queixosos, arrastados. 
Ralos serão? 
Horas da noite. 
Noite começada ou adiantada, noite. 
Como é bonito escrever! 

Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito. 
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo. 
No tempo vago... 
Ele vago e eu sem amparo. 
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas. Mortas! 


E por mais não ter que relatar me cerro. 
Expressão antiga, epistolar: me cerro. 
Tão grato é o velho, inopinado e novo. 
Me cerro! 

Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados, 
solta a outra, de pena expectante. 
Uma que agarra, a outra que espera... 

Ó ilusão! 
E tudo acabou, acaba. 
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda? 

Silêncio. 
Nem pássaros já, noite morta. 
Me cerro. 
Ó minha derradeira composição! Do não, do nem, do nada, da ausência e 
solidão. 

Da indiferença. 
Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada. 
Noite vasta e contínua, caminha, caminha. 
Alonga-te. 
A ribeira acordou. 


Irene Lisboa, in 'Antologia Poética' 


segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

"Acalanto" - Poema de Ada Ciocci Curado


Artur Loureiro (Porto, 1853 - Gerês, 1932), O repouso da artista, 1882


Acalanto


Vai amado. 
Busca por onde quiseres, 
com quem quiseres, 
como quiseres, 
o prazer. 
Até mesmo, 
aquele prazer que um dia alguém apelidou de amor. 
E, 
se por acaso te cansares 
e, 
do compromisso que um dia nos uniu te lembrares, 
se desejares, 
volta. 
Serei a que conforta. 
Não saberás da dor, 
da saudade, 
das lágrimas sentidas que tua ausência causou. 


In Acalanto, 1991


Artur LoureiroPaisagem


"Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana."



quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

"Um simples pensamento" - Poema de Eugénio de Andrade


Marianne von Werefkin, Herbst (Schule), 1907



Um simples pensamento


É a música, este romper do escuro. 
Vem de longe, certamente doutros dias, 
doutros lugares. Talvez tenha sido 
a semente de um choupo, o riso 
de uma criança, o pulo de um pardal. 
Qualquer coisa em que ninguém 
sequer reparou, que deixou de ser 
para se tornar melodia. Trazida 
por um vento pequeno, um sopro, 
ou pouco mais, para tua alegria. 
E agora demora-se, este sol materno, 
fica comigo o resto dos dias. 
Como o lume, ao chegar o inverno. 


in "Os sulcos da sede", 2001.


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

"Incerteza" - Poema de Jacinta Passos


Sir Herbert James Gunn (Scottish, 1893-1964), Sonja in Green, c.1932



Incerteza


Em meu olhar se espelha
a sombra interior de incerteza angustiante.
E em minha alma floresce, como rosa vermelha
dum vermelho gritante,
como o clangor clarim,
esta angústia que vive a vibrar dentro em mim.
É a minha vida um longo e ansioso esperar,
num amor que há de vir.
Amor - prazer que é dor e sofrer que é gozar -
Amor que tudo dá sem nada nos pedir,
e que, às vezes, num rápido segundo,
resume a glória toda e toda a ânsia do mundo.
Mas depois deste amor, o que virá? O tédio
insípido e tristonho,
desenganos sem cura e dores sem remédio.
Com a posse dum bem, o desfolhar dum sonho...
Vale mais, muito mais,
desejar sempre um bem, sem possui-lo jamais.
Oh! não. O coração
não se cansa de amar se sabe querer bem.
- Ter para o erro o perdão,
renunciar a si mesmo e viver para alguém -
E se um motivo qualquer,
imperioso e fatal, o sonho desfizer?
Então eu saberei bendizer, comovida,
o amor que já passou,
deixando uma doçura amarga em minha vida.
Quando o sonho murchar,
a esperança está finda,
mas dentro d'alma, fica uma saudade linda.


In Revista "O Malho" de 1936


terça-feira, 12 de dezembro de 2017

"Canto" - Poema de Irene Lisboa


William Ewart Lockhart (Scottish, 1846-1900), The white cockade, 1899



Canto


... e o vento, 
o vento dos altos a que me dei, 
a ti me trouxe 
a ti me entregou. 
Se em mim já estavas! 
Pela boca, pelos olhos e pelas mãos, 
arreigado e voraz, 
meu invasor enternecido. 

Cinco vidas, nada menos, 
cinco vidas querias ter. 
Cinco vidas... 
Mas uma, apenas, ardente, violenta e dissipada, 
uma só não te bastaria? 
Uma, 
quintuplicada, centuplicada na hora inefável, 
no momento embriagado... 
Uma, para me dares, para eu de ti receber, 
vergada, sucumbida? 
É primavera! saiu-me da boca. 
E tu sorriste. 
Sorriste, creio. 
Primavera e todas as estações… 
Chuva e sol, tempo sem idade. 

Aqueles suaves, langues verdes, tão cariciosos; 
os redondos troncos 
e os musgos fofos; 
os melros agrestes 
e as campainhas roxas daquelas flores da minha infância, 
de que me ensinaste o nome tão doce, tão estranho… 
E as loucas nuvens corredias 
e as pedras hieráticas 
e as veredas amáveis, 
como se os ofereciam! 
Amavam-nos, 
Não o viste? 
No passo certo em que ambos íamos 
tudo, tudo nos prendia 
e nós tudo deixávamos. 
Mas o vento… 
o vento dos altos a que me dei, 
mais do que o resto a ti me trouxe, 
a ti me entregou. 
Como se eu te esperasse 
e te pudesse fugir, 
sôfrego quiseste-me prender. 
Eu presa já estava... 

E assim continuámos. 

Aquela hora não esquece. 
Não pode esquecer, 
nem se repete. 

Mudarás tu ou mudarei eu. 
O mundo acena-te. 
E não se é nada... 
Mas a hora, a hora, a hora tão cobiçada, 
a hora que chegou, 
passando, não passa… 
morrendo, ficou... 
Nos ramos, 
nas heras luzentes, 
na chuvinha suspensa, 
nas voltas do caminho, 
na frescura aspirada, 
na solidão alegríssima e confidente, 
em ti e em mim. 
Ficou. 
Está. 
Mas a ninguém o confesses 
nem disso te convenças. 

Permanece, 
está naquelas flores rosadas, 
quase sem cor, dos lindos arbustos… 
Tornaremos jamais a vê-los sem nos lembrarmos? 
Eles… somos nós passando, 
Tu, silencioso; 
eu, aconchegada. 
Na tua mão quente, 
a minha, presa e enraizada, 
tão segura e tão confiante, 
era uma dádiva. 
Naquele breve momento 
tu a recebias e guardavas. 

Assim, inteira, a mim me guardasses! 

Ou, sequer, a lembrança inconfundível 
do repente doce e acre 
em que me beijaste, 
como se eu fosse uma folha, 
uma baga de árvore 
e tu uma rajada. 
Em que me aspiraste 
ou em que me sorveste... 
Não me ficaria a boca em sangue? 
Deixaste-me, 
deixaste a tua escrava um pouco atemorizada, 
meu senhor. 
Se eu pudesse voar, 
soltar-me dos teus braços, 
iria como um pássaro, receoso e deslumbrado, 
de árvore em árvore, de ramo em ramo, 
sem nada ver, tonto, tonto, 
até que de novo o chamasses. 

Mas a longa, 
a magnânima tarde 
não me concedeu asas... 
Por isso a minha mão dentro da tua, 
sensível e cativa, 
te disse, te repetiu longamente, à saciedade, 
o que bem querias saber 
e até o que sentias. 
Te confessou quanto lhe pediste. 


sábado, 9 de dezembro de 2017

"Nasceu-te um Filho" - Poema de Jorge de Sena


Dieric Bouts, The Virgin and Child, c. 1463



Nasceu-te um Filho


Nasceu-te um filho. Não conhecerás, 
jamais, a extrema solidão da vida. 
Se a não chegaste a conhecer, se a vida 
ta não mostrou - já não conhecerás 

a dor terrível de a saber escondida 
até no puro amor. E esquecerás, 
se alguma vez adivinhaste a paz 
traiçoeira de estar só, a pressentida, 

leve e distante imagem que ilumina 
uma paisagem mais distante ainda. 
Já nenhum astro te será fatal. 

E quando a Sorte julgue que domina, 
ou mesmo a Morte, se a alegria finda 
- ri-te de ambas, que um filho é imortal. 


Jorge de Sena, in 'Visão Perpétua'


Dieric Bouts, The Virgin and Child, c. 1465


"Entre o infinito do céu e o infinito da terra, existe o teu infinito, igualmente desmedido e ilimitado. Mãe, o tempo não é capaz de conter-te." 

Em Teu Ventre


sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

"Natal dos pobres" - Poema de Leonel Neves


Kelly Vivanco, “Half Asleep”, 2009



Natal dos pobres 


Quando a mulher adormeceu
naquela noite de Natal,
o homem foi, pé ante pé,
pôr um sapato (dela, não seu)
com um embrulho de jornal
na lareirinha da chaminé.

Um casal pobre... um ano mau...
Era um pedaço de bacalhau.

Ora alta noite, pela janela,
com fome e frio, entrou um gato
que, no escuro, cheirando aquela
comida boa no sapato,
rasgou o embrulho, comeu, comeu
e, quente e farto, adormeceu.

De manhã cedo, ela acordou,
foi à cozinha e viu o gatinho
adormecido no seu sapato.
Voltando ao quarto, feliz, falou
para o seu homem: — Meu amorzinho,
como soubeste que eu queria um gato?





quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

"Voto de Natal" - Poema de David Mourão Ferreira



George Bellows (1882 –1925), The studio, 1919


Voto de Natal 

 
Acenda-se de novo o Presépio no Mundo!
Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos!
Como quem na corrida entrega o testemunho,
passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos.

E a corrida que siga, o facho não se apague!
Eu aperto no peito uma rosa de cinza.
Dai-me o brando calor da vossa ingenuidade,
para sentir no peito a rosa reflorida!

Filhos, as vossas mãos! E a solidão estremece,
como a casca do ovo ao latejar-lhe vida...
Mas a noite infinita enfrenta a vida breve:
dentro de mim não sei qual é que se eterniza.

Extinga-se o rumor, dissipem-se os fantasmas!
O calor destas mãos nos meus dedos tão frios?
Acende-se de novo o Presépio nas almas.
Acende-se Jesus nos olhos dos meus filhos. 


 in 'Cancioneiro de Natal'


Dia de Natal 

Poema de António Gedeão, declamado por Luis Gaspar


“Na sociedade consumista de hoje, esta época (de Natal) é, infelizmente, sujeita a um tipo de poluição comercial que ameaça alterar seu verdadeiro espírito, caracterizado pela meditação, pela sobriedade e por uma alegria que não é externa, mas íntima.”
 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

"A razão de eu me gostar" - Poema de Adalgisa Nery


Retrato Adalgisa Nery, por Candido Portinari, 1937



A razão de eu me gostar


Eu gosto da minha forma no mundo
Porque representa uma fagulha,
Porque mostra um instante doce e perverso
Da ideia, do gesto e da realização
De Deus no Universo.
Eu gosto dos erros que pratico
Porque vejo a pureza colocada na minha essência
Desde o Início
Lutar contra todo o mal que em mim existe
E ser tão maior, que sobre a minha miséria
Ela ainda persiste
Eu gosto de espiar
O meu olho direito
Ver o esquerdo chorar,
De sentir a minha garganta se enrolar de dor
Porque em troca de tanta coisa dolorosa
Ele construiu em mim uma coisa gloriosa,
Que é o amor.


 in A Mulher Ausente, 1946.



domingo, 3 de dezembro de 2017

"Beijo" - Poema de Mia Couto


Ismael Nery, Namorados, 1927, óleo sobre tela - 58.5 x 58.5 cm 



Beijo


Não quero o primeiro beijo:
basta-me
o instante antes do beijo.

Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.

O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.

Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.


Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. 
Lisboa: Editorial Caminho, 2011.


sábado, 2 de dezembro de 2017

"O mar jaz; gemem em segredo os ventos" - Poema de Ricardo Reis / Fernando Pessoa




O mar jaz; gemem em segredo os ventos 


O mar jaz; gemem em segredo os ventos
Em Éolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
Águas franze Neptuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
Ou com razão nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indício
Três ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
Ecoa de Saturno?

6-10-1914

Odes de Ricardo Reis,
Heterónimo de Fernando Pessoa