domingo, 30 de abril de 2017

"Poema de domingo" - António Gedeão


Carlos Botelho, Lisboa, 1936, óleo sobre contraplacado, 105 x 100 cm



Poema de domingo


Aos domingos as ruas estão desertas
e parecem mais largas.
Ausentaram-se os homens à procura
de outros novos cansaços que os descansem.
Seu livre arbítrio alegremente os força
a fazerem o mesmo que fizeram
os outros que foram fazer o que eles fazem.
E assim as ruas ficaram mais largas,
o ar mais limpo, o sol mais descoberto.
Ficaram os bêbados com mais espaço para trocarem as pernas
e espetarem o ventre e alargarem os braços
no amplexo de amor que só eles conhecem.

O olhar aberto às largas perspetivas
difunde-se e trespassa
os sucessivos, transparentes planos.
Um cão vadio sem pressas e sem medos
fareja o contentor tombado no passeio.

É domingo.
E aos domingos as árvores crescem na cidade,
e os pássaros, julgando-se no campo, desfazem-se
a cantar empoleirados neles.
Tudo volta ao princípio.

E ao princípio o lixo do contentor cheira ao estrume das vacas
e o asfalto da rua corre sem sobressaltos por entre as pedras
levando consigo a imagem das flores amarelas do tojo,
enquanto o transeunte,
no deslumbramento do encontro inesperado,
eleva a mão e acena
para o passeio fronteiro onde não vai ninguém.


Novos Poemas Póstumos

sexta-feira, 28 de abril de 2017

"Aleluia" - Poema de Mário Beirão


Ford Madox Brown (1821-1893), Byron's Dream, 1874 



Aleluia


Se cantas, nasce o dia;
A luz segreda à flor: Ave, Maria!

Tudo é silêncio, espanto,
Quando vaga no Azul o teu encanto...

Passas e deixas no ar
O perfume das rosas de toucar!

Creio em ti, como em Deus;
Viver à tua luz é estar nos Céus!

Verdes enleios de hera
Cingem de amor teu vulto, ó Primavera!

Nos perdidos caminhos,
Voam gorjeios, músicas dos ninhos...

A Terra em névoas de ouro
Ascende a Deus em teu olhar de choro!

Senhora da Harmonia,
Em ti a minha vida principia!

Se voas pela Altura,
Gravas no Azul a tua formosura!

Teu voo é um longo adeus:
O caminho das almas para os Céus...

Longe, saudosa, adejas,
E pairas sobre mim... bendita sejas!


in 'Antologia Poética' 


quarta-feira, 26 de abril de 2017

"Pássaro Marinho" - Poema de Cruz e Souza


Filippo Palizzi (Italian painter, 1818 – 1899)



Pássaro Marinho 


Manhã de maio, rosas pelo prado,
Gorjeios, pelas matas verdurosas
E a luz cantando o idílio de um noivado
Por entre as matas e por entre as rosas. 

Uma toilette matinal que o alado
Corpo te enflora em graças vaporosas,
Mergulhas, como um pássaro rosado,
Nas cristalinas águas murmurosas. 

Dás o bom dia ao mar nesse mergulho
E das águas salgadas ao marulho
Sais, no esplendor dos límpidos espaços. 

Trazes na carne um reflorir de vinhas,
Auroras, virgens músicas marinhas,
Acres aromas de algas e sargaços! 




terça-feira, 25 de abril de 2017

"Para aquém de Abril" - Poema de Francisco Duarte



Pintura de Amália Soares alusiva ao dia 25 de Abril.



Para aquém de Abril


Entardeceram
nos umbrais da aurora
as memórias do teu rosto
Abril...
Nunca mais soprou o vento
depois
de Novembro
a vida
petrificou-se na inconstância
do rio...
não mais navegam
o teu sorriso
de florestas virgens

Hoje
passeio atónito
na neblina
das montanhas
fluir no tempo
na inércia da aventura
sonhar parado
no caminho em movimento
vir à estrada
e saber oscilar no horizonte
ser a terra
o mar
o sol
e a boca
cantar poema aberto
esperança viva
olhar o homem disperso
e cantá-lo
com a herança do ventre
reinvento-me
e não passo da superfície
deste mar austero

nos flancos do dia
arde o inatingível
torno a inventar

(o desfraldar das areias
vai-se consumindo
até que o sol nasça)


Francisco Duarte, 
in Afluentes de Liberdade,
Edições Milho Rei, Barcelos, 1983.


"Abril de Abril" - Poema de Manuel Alegre


Ilustração alusiva ao dia 25 de Abril de 1974 da revista Gaiola Aberta de José Vilhena (col. pess.)



Abril de Abril


Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.

Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjetivo Abril de Abril.

Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.

Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em ato
em mil novecentos e setenta e quatro.

Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.

Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas. 


Publicações Dom Quixote


segunda-feira, 24 de abril de 2017

"Ó Máquinas Febris" - Poema de Guilherme de Azevedo


Thomas Anshutz, The Ironworkers' Noontime, 1880, Fine Arts Museums of San Francisco.



Ó Máquinas Febris


Ó máquinas febris! eu sinto a cada passo, 
nos silvos que soltais, aquele canto imenso, 
que a nova geração nos lábios traz suspenso 
como a estância viril duma epopeia d'aço! 

Enquanto o velho mundo arfando de cansaço 
prostrado cai na luta; em fumo negro e denso 
levanta-se a espiral desse moderno incenso 
que ofusca os deuses vãos, anuviando o espaço! 

Vós sois as criações fulgentes, fabulosas, 
que, vibrantes, cruéis, de lavas sequiosas, 
mordeis o pedestal da velha Majestade! 

E as grandes combustões que sempre vos consomem 
começam, num cadinho, a refundir o homem 
fazendo ressurgir mais larga a Humanidade! 


Guilherme de Azevedo, in 'A Alma Nova'


domingo, 23 de abril de 2017

"A. L." - Poema de Guerra Junqueiro




A. L.


Não és a flor olímpica e serena 
Que eu vejo em sonhos na amplidão distante; 
Não tens as formas ideais de Helena, 
As formas da beleza triunfante; 

Não és também a mística açucena, 
A alva e pura Beatriz do Dante; 
És a artista gentil, a flor morena 
Cheia de aroma casto e penetrante. 

Não sei que graça, que esplendor, que arpejo 
Eu sinto dentro d'alma quando vejo 
Teu corpo aéreo, matinal, franzino... 

Faz-me lembrar as vívidas napeias, 
E as formas vaporosas das sereias 
Rendilhadas num bronze florentino. 


Guerra Junqueiro, in 'A Musa em Férias'


"O Dinheiro" - Poema de João de Deus


Abbott Fuller Graves (1859 – 1936), Dividing the shares



O Dinheiro


O dinheiro é tão bonito, 
Tão bonito, o maganão! 
Tem tanta graça, o maldito, 
Tem tanto chiste, o ladrão! 
O falar, fala de um modo... 
Todo ele, aquele todo... 
E elas acham-no tão guapo! 
Velhinha ou moça que veja, 
Por mais esquiva que seja, 
Tlim! 
Papo. 

E a cegueira da justiça 
Como ele a tira num ai! 
Sem lhe tocar com a pinça; 
E só dizer-lhe: «Aí vai...» 
Operação melindrosa, 
Que não é lá qualquer coisa; 
Catarata, tome conta! 
Pois não faz mais do que isto, 
Diz-me um juiz que o tem visto: 
Tlim! 
Pronta. 

Nessas espécies de exames 
Que a gente faz em rapaz, 
São milagres aos enxames 
O que aquele demo faz! 
Sem saber nem patavina 
De gramática latina, 
Quer-se um rapaz dali fora? 
Vai ele com tais falinhas, 
Tais gaifonas, tais coisinhas... 
Tlim! 
Ora... 

Aquela fisionomia 
É lábia que o demo tem! 
Mas numa secretaria 
Aí é que é vê-lo bem! 
Quando ele de grande gala, 
Entra o ministro na sala, 
Aproveita a ocasião: 
«Conhece este amigo antigo?» 
— Oh, meu tão antigo amigo! 
(Tlim!) 
Pois não! 


in 'Campo de Flores'


sábado, 22 de abril de 2017

"Requiem para um defunto vulgar" - Poema de Daniel Filipe

Requiem para um defunto vulgar


Antoninho morreu. Seu corpo resignado 
é como um rio incolor, regressando à nascente 
num silêncio de espanto e mistério revelado. 
Está ali - estando ausente. 

Jaz de corpo inteiro e fato preto. 
Ele, da cabeça aos pés, 
trivial e completo, 
estátua de proa e moço de convés. 

Jaz como se dormisse (pelo menos 
é o que dizem as velhas carpideiras). 
Jaz imóvel, sem gestos, sem acenos. 
Jaz morto de todas as maneiras. 

Jaz morto de cansaço, de pobreza, de fome 
(sobretudo, de fome). Jaz morto sem remédio. 
É apenas, sobre um papel azul, um nome. 
De ser mais qualquer coisa, a morte impede-o. 

Jaz alheio a tudo à sua volta, 
à grita dos parentes, companheiros, 
como um cavalo à rédea solta 
ou no mar largo, os rápidos veleiros. 

Jaz inútil, feio, pesado, 
a colcha de crochet aconchega-o na cama. 
Nunca esteve tão quente e animado. 
Nunca foi tão menino de mama.

Os filhos olham-no e fazem contas cuidadosas: 
padre, enterro, velório, certidão 
de óbito... E discutem, com manhas de raposas, 
os parcos bens e a possível divisão. 

Entanto, sobre o leito que foi da vida de casado, 
Antoninho jaz morto. Definitivamente. 
Os parentes e amigos falam dele no passado. 
A viúva serve copos de aguardente. 


Daniel Filipe, in 'Pátria, Lugar de Exílio'


"Poeta" - Poema de Teixeira de Pascoaes


William J. Whittemore (1860-1955),  An afternoon stroll



Poeta


Ninguém contempla as coisas admirado.
Dir-se-á que tudo é simples e vulgar...
E se olho a terra, a flor, o céu doirado,
Que infinda comoção me faz sonhar!

É tudo para mim extraordinário!
Uma pedra é fantástica! Alto monte,
Terra viva a sangrar, como um Calvário
E branco espetro, ao luar, a minha fonte!

É tudo luz e voz, tudo me fala:
Ouço lamúrias de almas no arvoredo
Quando a tarde tão lívida se cala
Porque adivinha a noite e lhe tem medo

Não posso abrir os olhos sem abrir
Meu coração à dor e à alegria.
Cada coisa nos sabe transmitir
Uma estranha e quimérica harmonia!

É bem certo quer tu, meu coração,
Participas de toda a Natureza.
Tens montanhas na tua solidão
E crepúsculos negros de tristeza!

As coisas que me cercam silenciosas
São almas a chorar que me procuram.
Quantas vagas palavras misteriosas
Neste ar que aspiro, trémulas, murmuram!

Vozes de encanto vêm aos meus ouvidos,
Beijam meus olhos sombras de mistério.
Sinto que perco, às vezes, os sentidos
E que vou a flutuar num rio aéreo...



sexta-feira, 21 de abril de 2017

"Na casa defronte" - Poema de Álvaro de Campos





Na casa defronte


Na casa defronte de mim e dos meus sonhos, 
Que felicidade há sempre! 

Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi. 
São felizes, porque não sou eu. 

As crianças, que brincam às sacadas altas, 
Vivem entre vasos de flores, 
Sem dúvida, eternamente. 

As vozes, que sobem do interior do doméstico, 
Cantam sempre, sem dúvida. 
Sim, devem cantar. 

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro. 
Assim tem que ser onde tudo se ajusta — 
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza. 

Que grande felicidade não ser eu! 

Mas os outros não sentirão assim também? 
Quais outros? Não há outros. 
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada, 
Ou, quando se abre, 
É para as crianças brincarem na varanda de grades, 
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram. 
Os outros nunca sentem. 

Quem sente somos nós, 
Sim, todos nós, 
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada. 

Nada! Não sei... 
Um nada que dói... 


Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa


quarta-feira, 19 de abril de 2017

"Retrato do artista em cão jovem" - Poema de António José Forte


Edwin Henry Landseer (English, 1802–1873), Portrait of a Terrier (Jocko with a Hedgehog),1828



Retrato do artista em cão jovem


Com o focinho entre dois olhos muito grandes 
por trás de lágrimas maiores 
este é de todos o teu melhor retrato 
o de cão jovem a que só falta falar 
o de cão através da cidade 
com uma dor adolescente 
de esquina para esquina cada vez maior 
latindo docemente a cada lua 
voltando o focinho a cada esperança 
ainda sem dentes para as piores surpresas 
mas avançando a passo firme 
ao encontro dos alimentos 

aqui estás tal qual 
és bem tu o cão jovem que ninguém esperava 
o cão de circo para os domingos da família 
o cão vadio dos outros dias da semana 
o cão de sempre 
cada vez que há um cão jovem 
neste local da terra 


in '40 Noites de Insónia de Fogo de Dentes numa Girándola Implacável e Outros Poemas'


"Vírgula" - Poema de António Maria Lisboa


Georges Seurat, 1889-90, Le Chahut, óleo sobre tela, 170 x 141 cm, 


Vírgula 


Eu menino às onze horas e trinta minutos 
a procurar o dia em que não te fale 
feito de resistências e ameaças — Este mundo 
compreende tanto no meio em que vive 
tanto no que devemos pensar. 

A experiência o contrário da raiz originária aliás 
demasiado formal para que se possa acreditar 
no mais rigoroso sentido da palavra. 

Tanta metafísica eu e tu 
que já não acreditamos como antes 
diferentes daquilo que entendem os filósofos 
— constitui uma realidade 
que não consegue dominar (nem ele próprio) 
as forças primitivas 
quando já se tem pretendido ordens à vida humana 
em conflito com outras surge agora 
a necessidade dos oásis perdidos. 

E vistas assim as coisas fragmentariamente é certo 
e a custo na imensidão da desordem 
a que terão de ser constantemente arrancadas 
— são da máxima importância as velhas concepções pois 
a cada momento corremos grandes riscos 
desconcertantes e de sinistra estranheza. 

Resulta isto dum olhar rápido sobre a cidade desconhecida. 
E abstraindo dos versos que neste poema se referem ao mundo humano 
vemos que ninguém até hoje se apossou do homem 
como o frágil véu que nos separa vedados e proibidos. 


 in "Ossóptico e Outros Poemas"


terça-feira, 18 de abril de 2017

"À Musa" - Poema de Guilherme de Azevedo


Émile Eisman-Semenowsky (Polish, 1857-1911), Beautiful girl in rose hat
Private collection 


À Musa


À luz das noites serenas 
A capela de açucenas 
Te envolve em lúcido véu! 
Ao meigo clarão da lua 
És a imagem que flutua 
No puro ambiente do céu! 

E os ternos suspiros soltos, 
E os teus cabelos revoltos 
Ao sabor da viração, 
Perpassam brandos na mente 
Como as brisas do poente 
Na cratera do vulcão! 

Ó santa imagem querida, 
Como és bela adormecida! 
Que mistério em teu palor! 
Que doçura no teu canto, 
E que perfume tão santo 
Nas tuas cismas d'amor! 

Deixa cair uma rosa 
Da tua fronte mimosa, 
Da vida no turvo mar! 
Descerra-me o paraíso 
Que no teu fugaz sorriso 
Nos faz viver e sonhar! 


in 'Antologia Poética'


Émile Eisman-Semenowsky, Young girl with daffodils in her hair


"A alma sensível é como harpa que ressoa com um simples sopro."



"A Joana d'Arc" - Poema de Teresa de Lisieux (Santa Teresa do Menino Jesus)





A Joana d'Arc


Quando o Deus das Nações te concedeu vitória,
E, expulsando o invasor, sagraste o rei, ó Joana,
teu nome se tornou famoso em toda a história,
diante de ti os heróis perderam brilho e fama.

Mas aquela era ainda a glória passageira;
ao teu nome faltava a auréola dos santos.
O Bem-Amado deu-te, amarga, a taça inteira,
e te tornaste a rejeitada dos humanos.

Numa escura masmorra, entre grilhões e horrores,
o cruel invasor cobriu-te de amarguras.
Nenhum amigo teu partilhou tuas dores,
nenhum se apresentou para enxugar teu pranto.

Vejo-te, neste horror, mais reluzente e bela,
do que no dia-luz do rei em sagração.
Donde te veio a luz, este fulgor de estrela,
que hoje te faz brilhar? De uma ignóbil traição!

Se um dia o Rei do amor, neste vale de prantos,
não tivesse buscado a traição e a morte,
para todos nós a dor já não teria encantos...
Mas hoje a amamos como um tesouro e uma sorte.


(Santa Teresa do Menino Jesus)


segunda-feira, 17 de abril de 2017

"A Valsa" - Poema de Casimiro de Abreu


Pavel Svedomsky (Russian, 1848-1904), A kiss



A Valsa


Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranquila,
Serena,
Sem pena
De mim!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

Valsavas:
— Teus belos
Cabelos,
Já soltos,
Revoltos, 
Saltavam,
Voavam,
Brincavam
No colo
Que é meu;
E os olhos
Escuros
Tão puros,
Os olhos
Perjuros
Volvias,
Tremias,
Sorrias,
P'ra outro
Não eu!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem?!

Quem dera
Que sintas
As dores
De arnores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!...

Calado,
Sozinho,
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!

Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!

Quem dera
Que sintas!...
— Não negues
Não mintas...
— Eu vi!

Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
Eu vi!




domingo, 16 de abril de 2017

"Tarde com sol" - Poema de Nuno Júdice


Albert Chevallier Tayler (1862-1925), The Thames at Benson, 1912



Tarde com sol 


As coisas simples dizem-se depressa; tão depressa
que nem conseguimos que as ouçam. As coisas
simples murmuram-se; um murmúrio
tão baixo que não chega aos ouvidos de ninguém.

As coisas simples escorrem pela prateleira
da loja; tão ao de leve que ninguém
as compra. As coisas simples flutuam com
o vento; tão alto, que não se vêm. 

São assim as coisas simples: tão simples
como o sol que bate nos teus olhos, para
que os feches, e as coisas simples passem
como sombra sobre as tuas pálpebras. 



Albert Chevallier TaylerA Day at the Market, 1887, Oil on canvas


"Se os teus projetos forem para um ano, semeia o grão. Se forem para dez anos, planta uma árvore. Se forem para cem anos, educa o povo." 

(Provérbio chinês)

sábado, 15 de abril de 2017

"O Pai" - Poema de Pablo Neruda


Luděk Marold (1865-1898), Man sitting on a divan, c. 1898



O Pai


Terra de semente inculta e bravia, 
terra onde não há esteiros ou caminhos, 
sob o sol minha vida se alonga e estremece. 

Pai, nada podem teus olhos doces, 
como nada puderam as estrelas 
que me abrasam os olhos e as faces. 

Escureceu-me a vista o mal de amor 
e na doce fonte do meu sonho 
outra fonte tremida se reflete. 

Depois... Pergunta a Deus porque me deram 
o que me deram e porque depois 
conheci a solidão do céu e da terra. 

Olha, minha juventude foi um puro 
botão que ficou por rebentar e perde 
a sua doçura de seiva e de sangue. 

O sol que cai e cai eternamente 
cansou-se de a beijar... E o outono. 
Pai, nada podem teus olhos doces. 

Escutarei de noite as tuas palavras: 
... menino, meu menino... 

E na noite imensa 
com as feridas de ambos seguirei.


Pablo Neruda, in "Crepusculário" 
Tradução de Rui Lage


"Flor que não dura" - Poema de Fernando Pessoa




Flor que não dura


Flor que não dura 
Mais do que a sombra dum momento 
Tua frescura 
Persiste no meu pensamento. 

Não te perdi 
No que sou eu, 
Só nunca mais, ó flor, te vi 
Onde não sou senão a terra e o céu. 


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"


sexta-feira, 14 de abril de 2017

"A Despedida da Morte" - Poema de Alberto da Costa e Silva


Frederick McCubbin, Bush Sawyers, 1910


A Despedida da Morte


Falo de mim porque bem sei que a vida 
lava o meu rosto com o suor dos outros, 
que também sou, pois sou tudo o que posto 

ao meu redor se cala, e é pedra, ou, água, 
cicia apenas — O teu tempo é a trava 
que te impede de ter a calma clara 

do chão de lajes que o sol recobre, 
este esperar por tudo que não corre, 
nem pára e nem se apressa, e é só estado, 

e nem sequer murmura: — O que te trazem 
é o riso e o lamento, o ser amado 
e o roçar cada dia a tua morte, 

que não repõe em ti o, sem passado, 
ficar no teu escuro, pois herdaste 
e legas um sussurro, um som de passos, 

uma sombra, um olhar sobre a paisagem, 
memória, cálcio, húmus, eis que o mundo 
nada rejeita, sendo pobre e triste 
no esplendor que nos dá. A madrugada. 


in 'Antologia Poética'


Frederick McCubbin, Lost, 1907


"A presença do perigo confere génio ao homem sensato." 


"Crucificação" - Poema de Ivo Júnior





Crucificação


As Sextas-Feiras Santas nos relembram
aquela madrugada sombria em Jerusalém
quando um Jovem Imaculado foi vítima
da traição humana.
O vento brando, a lua inibida, o murmúrio das palmeira,
o gemidos das almas…
A sentença se aproximava.
Ela vinha sobre o dorso áspero
da fera – o homem!
A multidão que há poucos dias
o saudava delirantemente
com ramos e cânticos
agora implorava por sua morte.
Ali, sob seus castos pés,
centuriões imperiais
disputavam suas vestes em meio
a estrondoantes gargalhadas.
Ele bradava: “Eli, Eli, lame sabactani?”:
“Deus meu, Deus meu, por que me abandonastes?”
As púmbleas nuvens abalaram-se,
as rochas estremeceram…
Jesus deu o último suspiro relembrando
da água transformada em vinho,
do Lázaro ressuscitado,
da fé de Nicodemus,
da ira dos fariseus porque o Mestre
sentou-se à mesa com pecadores, réprobos
e cobradores de impostos.
Ele relembrou das conversações
que teve com os apóstolos,
da Madalena livre do apedrejamento
e perdoada…
Jesus já não se encontra na Cruz.
Ele está defronte do teu coração,
suplicando para entrar,
sentar à tua mesa e ceiar contigo
por toda eternidade.


Ivo Júnior, poeta