segunda-feira, 3 de abril de 2017

"Frígida" - Poema de Cesário Verde





Frígida

Balzac é meu rival, minha senhora inglesa! 
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas! 
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza 
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas. 

II 
Admiro-a. A sua longa e plácida estatura 
Expõe a majestade austera dos invernos. 
Não cora no seu todo a tímida candura; 
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos. 

III 
Eu vejo-a caminhar, fleumática, irritante, 
Numa das mãos franzindo um lençol de cambraia!... 
Ninguém me prende assim, fúnebre, extravagante, 
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia! 

IV 
Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite, 
Mas nunca a fitarei duma maneira franca; 
Traz o esplendor do Dia e a palidez da Noite, 
É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca! 

Pudesse-me eu prostar, num meditado impulso, 
Ó gélida mulher bizarramente estranha, 
E trémulo depor os lábios no seu pulso, 
Entre a macia luva e o punho de bretanha!... 

VI 
Cintila ao seu rosto a lucidez das jóias. 
Ao encarar consigo a fantasia pasma; 
Pausadamente lembra o silvo das jibóias 
E a marcha demorada e muda dum fantasma. 

VII 
Metálica visão que Charles Baudelaire 
Sonhou e pressentiu nos seus delírios mornos, 
Permita que eu lhe adule a distinção que fere, 
As curvas da magreza e o lustre dos adornos! 

VIII 
Desliza como um astro, um astro que declina, 
Tão descansada e firme é que me desvaria, 
E tem a lentidão duma corveta fina 
Que nobremente vá num mar de calmaria. 

IX 
Não me imagine um doido. Eu vivo como um monge, 
No bosque das ficções, ó grande flor do Norte! 
E, ao persegui-la, penso acompanhar de longe 
O sossegado espectro angélico da Morte! 

O seu vagar oculta uma elasticidade 
Que deve dar um gosto amargo e deleitoso, 
E a sua glacial impassibilidade 
Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso. 

XI 
Porém, não arderei aos seus contactos frios, 
E não me enroscará nos serpentinos braços: 
Receio suportar febrões e calafrios; 
Adoro no seu corpo os movimentos lassos. 

XII 
E se uma vez me abrisse o colo transparente, 
E me osculasse, enfim, flexível e submissa, 
Eu julgara ouvir alguém, agudamente, 
Nas trevas, a cortar pedaços de cortiça! 


in 'O Livro de Cesário Verde'


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