domingo, 28 de abril de 2019

"Mãe" - Poema de António Ramos Rosa


Nikolaos Gyzis (1842-1901), 'Peek-a-Boo', 1882



Mãe


 Conheço a tua força, mãe, e a tua fragilidade.
Uma e outra têm a tua coragem, o teu alento vital.
Estou contigo mãe, no teu sonho permanente na tua esperança incerta
Estou contigo na tua simplicidade e nos teus gestos generosos.
Vejo-te menina e noiva, vejo-te mãe mulher de trabalho
Sempre frágil e forte. Quantos problemas enfrentaste,
Quantas aflições! Sempre uma força te erguia vertical,
sempre o alento da tua fé, o prodigioso alento
a que se chama Deus. Que existe porque tu o amas,
tu o desejas. Deus alimenta-te e inunda a tua fragilidade.
E assim estás no meio do amor como o centro da rosa.
Essa ânsia de amor de toda a tua vida é uma onda incandescente.
Com o teu amor humano e divino
quero fundir o diamante do fogo universal. 


António Ramos Rosa, in 'Antologia Poética'

sexta-feira, 26 de abril de 2019

"Nascemos para amar" - Poema de Manuel Maria Barbosa du Bocage


Jan van Eyck, O Casal Arnolfini, 1434, National Gallery, Londres



Nascemos para amar


Nascemos para amar: a humanidade
Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura.
Tu és doce atrativo, ó formosura,
Que encanta, que seduz, que persuade.

Enleia-se por gosto a liberdade;
E depois que a paixão n’alma se apura,
Alguns então lhe chamam desventura,
Chamam-lhe alguns então felicidade.

Qual se abisma nas lôbregas tristezas,
Qual em suaves júbilos discorre,
Com esperanças mil na ideia acesas.

Amor ou desfalece, ou pára, ou corre;
E, segundo as diversas naturezas,
Um porfia, este esquece, aquele morre


  Bocage, in 'Sonetos'

quinta-feira, 25 de abril de 2019

"Sabedoria" - Poema de Paul Verlaine


Gerard van Honthorst (1592-1656), Merry company, 1623



Sabedoria I, III


Que dizes, viajante, de estações, países?
Colheste ao menos tédio, já que está maduro,
Tu, que vejo a fumar charutos infelizes,
Projetando uma sombra absurda contra o muro?

Também o olhar está morto desde as aventuras,
Tens sempre a mesma cara e teu luto é igual:
Como através dos mastros se vislumbra a lua,
Como o antigo mar sob o mais jovem sol,

Ou como um cemitério de túmulos recentes.
Mas fala-nos, vá lá, de histórias pressentidas,
Dessas desilusões choradas pelas correntes,
Dos nojos como insípidos recém-nascidos.

Fala da luz de gás, das mulheres, do infinito
Horror do mal, do feio em todos os caminhos
E fala-nos do Amor e também da Política
Com o sangue desonrado em mãos sujas de tinta.

E sobretudo não te esqueças de ti mesmo,
Arrastando a fraqueza e a simplicidade
Em lugares onde há lutas e amores, a esmo,
De maneira tão triste e louca, na verdade!

Foi já bem castigada essa inocência grave?
Que achas? É duro o homem; e a mulher? E os choros,
Quem os bebeu? E que alma capaz de os contar
Consola isso a que podes chamar tuas dores?

Ah, os outros, ah, tu! Crendo em vãos lisonjeios,
Tu que sonhavas (e era também demasiado)
Com uma qualquer morte suave e ligeira!
Ah, tu, que espécie de anjo sempre amedrontado!

Mas que intenções, que planos? Terás energia
Ou o choro destemperou esse teu coração?
A julgar pela casca, é uma árvore macia
E os teus ares não parecem de vencedor, não.

Tão desastrado ainda! e com a agravante inútil
De seres cada vez mais um sonolento idílico
A fitar pela janela o céu sempre tão estúpido
Sob o astuto olhar do diabo do meio-dia.

Sempre o mesmo na tua extrema decadência!
Ah! — Mas no teu lugar, e assumindo as culpas,
Um ser sensato quer impor outra cadência
Com o risco de alarmar um pouco os transeuntes.

Não terás, vasculhando os recantos da alma,
Um vício pra mostrar, qual sabre à luz do dia,
Algum vício risonho, descarado, que arda
E vibre, dardejante, sob o céu carmim?

Um ou mais? Se os tiveres, será melhor! E parte
Pra guerra e briga a torto e a direito, sem
Escolher ninguém e enverga a indolente máscara
Do ódio insaciado, mas farto também...

Não devemos ser tansos neste alegre mundo
Onde a felicidade não é saborosa
Se nela não vibrar algo perverso, imundo,
E quem não quer ser tanso tem de ser maldoso.

— Sabedoria humana, eu ligo a outras coisas
E, de entre esse passado de que descrevias
O tédio, em conselhos ainda mais penosos,
Só consigo lembrar-me, hoje, do mal que fiz.

Em todos os estranhos passos desta vida,
Dos lugares e dos tempos, ou também dos meus
«Azares», de mim, dos outros, da estrada seguida,
Sempre retive apenas a graça de Deus.

Se me sinto punido, é porque o devo ser.
O homem e a mulher não estão aqui em vão.
Mas espero que um dia possa conhecer
O perdão e a paz que aguardam os cristãos.

É bom não sermos tansos neste mundo efémero,
Mas pra que o não sejamos na eternidade,
O que é mais necessário que reine e governe
Nunca é a maldade, mas sim a bondade.


Paul Verlaine, in "Sabedoria"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral


quarta-feira, 24 de abril de 2019

"Que há para lá do sonhar?" - Poema de Vergílio Ferreira


 Que há para lá do sonhar?


Céu baixo, grosso, cinzento
e uma luz vaga pelo ar
chama-me ao gosto de estar
reduzido ao fermento
do que em mim a levedar
é este estranho tormento
de me estar tudo a contento,
em todo o meu pensamento
ser pensar a dormitar.

Mas que há para lá do sonhar? 
in “Conta-Corrente1” 


Hendrick Avercamp, Winter Landscape with a Windmill, 1610-1620


"Sim, a partir do momento em que se conhece o porquê, tudo se torna mais fácil, uma simples questão de magia."
 
 


segunda-feira, 22 de abril de 2019

"Vem ver a minha mãe " - Poema de Vítor Matos e Sá


Georgios Jakobides (1853–1932), Motherly Care


Vem ver a minha mãe



Está junto das coisas que bordaram
com ela os dias que supôs mais belos
e são a fonte de onde lhe começa
o branco tempo dos cabelos.

Mal pousa a vida nos seus dedos gastos
do sonho que pousou na minha mão
e no sangue tão frágil que sustenta
tanta ternura e tanta solidão.


Vítor Matos e Sá,
in 'O Silêncio e o Tempo'



sexta-feira, 19 de abril de 2019

"Narciso" - Poema de José Régio


Narciso


Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!

Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!

Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:

Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho! 


José Régio, in 'Biografia'


quinta-feira, 18 de abril de 2019

"A cereja" - Poema de A. M. Pires Cabral


Édouard Manet, Boy with Cherries (Gamin aux Cerises), 1859
Museu Calouste Gulbenkian
, Lisboa, Portugal

 

A cereja


A cereja começou por uma flor
branca e singela.
(talvez tenha começado um mês antes,
num dia em que o cerdeiro surpreendeu
na sua própria carne mil ânsias e tremores
de renascer.
Isto foi
na primavera, antes de o sol ser rei.)

A flor agitou-se, murmurou
recados de amor ao ar embriagante
duma manhã de Abril.
Chamou as abelhas,
amou-as uma a uma e a elas confiou
o sémen amarelo, caprichoso do seu corpo -
como alguém que depõe um beijo sobre os dedos
e o sopra pelos ares à boca amada.
O milagre deu-se (o segundo milagre)
de esse sémen fecundar um ventre amigo, ardente,
um ovário silencioso e obscuro, antro de vida,
um templo de nascer.
E a cereja fez-se! redonda, verde, miúda,
de longa chanca a prendê-la ao ramo,
ela desarranjou
a barriga do ciganito louco
que, tremendo de impaciência, subiu, subiu,
no tronco a pino as bagas de vinagre.

Fez-se maior: um fruto claro,
pequeno planeta límpido e sereno.
Rosado
e logo após rubro, da sede de entregar-se,
piscou o olho aos estorninhos,
aos tentilhões.
Ao longo das estradas, numa versão humilde,
manteve com vagar
suas longas conversas com as silvas
e ouviu da seara ali ao lado
o deflagrar de espigas anunciando o verão.

Um dia (como uma jovem prenhe alvoroçada)
sentiu dentro de si um estigma de vida intrusa
bem arrumadinho ao coração.
Lembrou-se então das bodas consentidas,
núpcias nervosas,
carícias de um louco e breve inseto.
Matrimónio fugaz - seu filho agora
é dulcíssima broca,
arrasta-se no ventre
e perfura-lhe a carne em busca de ar e luz.

Está velha e não a colhem. Alcandorada
no último dos galhos do cerdeiro,
olha com cio e saudade os garotinhos
que passam junto ao toro. Está só e tem inveja
de outras que viu cumprir-se, comidas
com um naco de pão,
serem jantar de gente que não janta;
e outras que viu em pares, pendendo orgulhosas,
serem os brincos de tontas raparigas
que não têm outros brincos.
Está só. Encarquilhada, inútil,
recusada de melros e pardais,
a cereja lentamente se enrola sobre si
e morre.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

"A Tua Voz de Primavera" - Poema de Florbela Espanca

Vincent van Gogh, Almond Blossom, Van Gogh Museum



A Tua Voz de Primavera


Manto de seda azul, o céu reflete
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios húmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!

Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo desejo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!

Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos...

Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!


Florbela Espanca,
in "A Mensageira das Violetas"
 

domingo, 14 de abril de 2019

"A bicicleta pela lua dentro" - Poema de Herberto Helder

Tarsila do Amaral, A Lua, 1928 



A bicicleta pela lua dentro


A bicicleta pela lua dentro – mãe, mãe –
ouvi dizer toda a neve.
As árvores crescem nos satélites.
Que hei de fazer senão sonhar
ao contrário quando novembro empunha –
mãe, mãe – as tellhas dos seus frutos?
As nuvens, aviões, mercúrio.
Novembro – mãe – com as suas praças
descascadas.

A neve sobre os frutos – filho, filho.
Janeiro com outono sonha então.
Canta nesse espanto – meu filho – os satélites
sonham pela lua dentro na sua bicicleta.
Ouvi dizer novembro.
As praças estão resplendentes.
As grandes letras descascadas: é novo o alfabeto.
Aviões passam no teu nome –
minha mãe, minha máquina –
mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve.

Avança, memória, com a tua bicicleta.
Sonhando, as árvores crescem ao contrário.
Apresento-te novembro: avião
limpo como um alfabeto. E as praças
dão a sua neve descascada.
Mãe, mãe — como janeiro resplende
nos satélites. Filho — é a tua memória.

E as letras estão em ti, abertas
pela neve dentro. Como árvores, aviões
sonham ao contrário.
As estátuas, de polvos na cabeça,
florescem com mercúrio.
Mãe — é o teu enxofre do mês de novembro,
é a neve avançando na sua bicicleta.

O alfabeto, a lua.

Começo a lembrar-me: eu peguei na paisagem.
Era pesada, ao colo, cheia de neve.
la dizendo o teu nome de janeiro.
Enxofre — mãe — era o teu nome.
As letras cresciam em torno da terra,
as telhas vergavam ao peso
do que me lembro. Começo a lembrar-me:
era o atum negro do teu nome,
nos meus braços como neve de janeiro.

Novembro — meu filho — quando se atira a flecha,
e as praças se descascam,
e os satélites avançam,
e na lua floresce o enxofre. Pegaste na paisagem
(eu vi): era pesada.

O meu nome, o alfabeto, enchia-a de laranjas.
Laranjas de pedra – mãe. Resplendentes,
estátuas negras no teu nome,
no meu colo.

Era a neve que nunca mais acabava.

Começo a lembrar-me: a bicicleta
vergava ao peso desse grande atum negro.
A praça descascava-se.
E eis o teu nome resplendente com as letras
ao contrário, sonhando
dentro de mim sem nunca mais acabar.
Eu vi. Os aviões abriam-se quando a lua
batia pelo ar fora.
Falávamos baixo. Os teus braços estavam cheios
do meu nome negro, e nunca mais
acabava de nevar.

Era novembro.

Janeiro: começo a lembrar-me. O mercúrio
crescendo com toda a força em volta
da terra. Mãe – se morreste, porque fazes
tanta força com os pés contra o teu nome,
no meu colo?
Eu ia lembrar-me: os satélites todos
resplendentes na praça. Era a neve.
Era o tempo descascado
sonhando com tanto peso no meu colo.

Ó mãe, atum negro —
ao contrário, ao contrário, com tanta força.

Era tudo uma máquina com as letras
lá dentro. E eu vinha cantando
com a minha paisagem negra pela neve.
E isso não acabava nunca mais pelo tempo
fora. Começo a lembrar-me.
Esqueci-te as barbatanas, teus olhos
de peixe, tua coluna
vertebral de peixe, tuas escamas. E vinha
cantando na neve que nunca mais
acabava.

O teu nome negro com tanta força —
minha mãe.
Os satélites e as praças. E novembro
avançando em janeiro com seus frutos
destelhados ao colo. As
estátuas, e eu sonhando, sonhando.
Ao contrário tão morta — minha mãe —
com tanta força, e nunca

— mãe — nunca mais acabava pelo tempo fora.


Herberto Helder

sábado, 13 de abril de 2019

"Para uma canção de embalar" - Poema de Vasco Graça Moura


Nikolaos Gyzis, Mother and Child, 1896



Para uma canção de embalar 


embalo a minha filha joana que acordou num berreiro.
a casa está às escuras, vou passando com cuidado
para não dar encontrões nos móveis, embalo esta menina
que se calou mas está de olho muito aberto e quer brincar,
e há um halo de luz parda a coar-se pelas persianas
e às vezes uns faróis riscando estrias a correrem pelo tecto.

levo-a bem presa ao colo, toda de porcelana pesadinha,
enquanto a irmã está a dormir meio atravessada nos lençóis.
ao chegar-me a outra janela vejo as luzes fugindo na auto-estrada
em direcção ao rio, a uma placa da lua sobre o rio,
e trauteio «já gostava de te ve-er», enquanto acendo o fogão
para aquecer o leite e embalo a minha filha e a outra está a dormir.

oxalá cresçam ambas airosas e bem seguras,
e possam ir na vida serenamente como os rios correm,
ou como os veleiros voam, ou como elas agora respiram
em cadências regulares neste silêncio táctil.
a meio da noite um homem acordou no sossego da casa
e pôs-se a cuidar do sono das suas filhas pequenas.

oxalá haja fadas benfazejas esvoaçando das histórias
de princesas felizes e potros azul turquesa, e forrem esta casa,
e pelas malvadas bruxas alegres sinos dobrem,
e estas meninas existam incólumes e puras no seu quente contentamento,
mesmo que o mundo vá girando numa ordem sobressaltada,
mesmo que os mares agonizem nos seus gonzos de chumbo.

lá fora os carros passam, ainda não é a manhã, só alta madrugada,
mas passam alguns carros, deve estar frio. e há passos no andar de cima
a minha filha teresa tosse e volta-se na cama, a minha mulher dorme,
mas a joana ainda não adormeceu e presta a maior atenção
e mexe-me na cara quando eu chego outra vez a «inda mal abria os olhos»,
já ouviu esta toada umas centenas de vezes e passa a mão pelo meu queixo

e aconchega a cabeça e as pálpebras começam a baixar-lhe
muito devagarinho e a pequenina mão abandona-se na gola do meu pijama
e há que dar ainda uns passos para cá e para lá,
a cantar uma sombra de modinha, para ela ficar bem adormecida,
e como da irmã, quando a irmã tinha esta idade, eu digo
que sei muito desta menina, e sei. e vou deitá-la outra vez. 
in 'O Concerto Campestre' 


sexta-feira, 12 de abril de 2019

"Por entre os sons da música" - Poema de Vergílio Ferreira


Georgios Jakobides (1853–1932), Children's Concert, 1894


Por entre os sons da música


Por entre os sons da música, ao ouvido
como a uma porta que ficou entreaberta
o que se me revela em ter sentido
é o que por essa música encoberta

acena em vão do outro lado dela
e eu sinto como a voz que respondesse
ao que em mim não chamou nem está nela,
porque é só o desejar que aí batesse.


Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'



Georgios Jakobides, Children's Concert, 1890


"A melhor maneira de realizar os seus sonhos é acordar."
 

quarta-feira, 10 de abril de 2019

"Poeta" - Poema de Joaquim Namorado



 Poeta


A poesia é uma máquina
de produzir entusiasmo
e é preciso que os versos sejam verdadeiros
na vida dos poetas
como a tua mão erguida
sobre os anos futuros
quando o próprio bronze das estátuas se cobrir
do verdete do esquecimento
e das urtigas
entre as ruínas de um passado morto
e as pequenas plaquetes dos sentimentos pobres
dos líricos delírios
das doidas metáforas sem sentido
louvadas pela crítica
só tiverem o arqueológico encanto
de um cabelo de Ofélia…

Então
os teus versos estarão na primeira fila dos pioneiros
cobertos de cicatrizes
porque fizeram todo o caminho do tempo
multiplicados por milhões de vozes
pela alta potência dos alto-falantes
como uma bandeira erguida
sobre os anos futuros.


Joaquim Namorado


terça-feira, 9 de abril de 2019

"Poemas são como vitrais pintados" - Poema de Johann Wolfgang von Goethe


Thomas Cooper Gotch, Alleluia, 1896


Poemas são como vitrais pintados



Poemas são como vitrais pintados!
Se olharmos da praça para a igreja,
Tudo é escuro e sombrio;
E é assim que o Senhor Burguês os vê.
Ficará agastado? — Que lhe preste!...
E agastado fique toda a vida!

Mas — vamos! — vinde vós cá para dentro,
Saudai a sagrada capela!
De repente tudo é claro de cores:
Súbito brilham histórias e ornatos;
Sente-se um presságio neste esplendor nobre;
Isto, sim, que é para vós, filhos de Deus!
Edificai-vos, regalai os olhos!


Johann Wolfgang von Goethe, in "Poemas"
Tradução de Paulo Quintela
 
 

segunda-feira, 8 de abril de 2019

"Ignoto Deo" - Poema de José Régio


David Teniers the Younger, Archduke Leopold Wilhelm in his gallery in Brussels, c. 1647–1651



Ignoto Deo


Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai… grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja…
– Tu é que não desistirás de mim!


José Régio
, in 'Biografia'



David Teniers the Younger Archduke Leopold Wilhelm in his Gallery in Brussels, c. 1651


"Uma arte para todos, ou uma arte para cada homem? Quem é o artista verdadeiro capaz de arcar com a responsabilidade de ficar à altura de todos?"

Miguel Torga, in 'Diário', 1948 


domingo, 7 de abril de 2019

"Elegia para Santa Rosa" - Poema de Mauro Mota


Abbott Handerson Thayer, Virgin Enthroned, 1891


Elegia para Santa Rosa



Aurora chega, e permaneces fria
noite, imobilizado, cego e mudo
às coisas das manhãs que amanhecias:
cavalete, jornal, café no bule.

O mundo neutro e nu pede a pintura;
a tela virgem, teu pincel tranquilo,
As cores vêm chorando pela rua,
entram no atelier branco e vazio.

Quais os murais que irás compor no muro,
entre o que foste e o que serás, erguido,
o indevassável muro eterno e duro?

Ai, Santa, pesam sobre nós os dias
desta sobrevivência que te usurpa
o espaço e o tempo que te pertenciam.


Mauro Mota, in 'Itinerário' 
 

sábado, 6 de abril de 2019

"É tarde, muito tarde da noite" - Poema de Jorge de Sena


Joaquín Sorolla, Portrait of photographer, Christian Franzen, 1901

 

É tarde, muito tarde da noite


É tarde, muito tarde da noite,
trabalhei hoje muito, tive de sair, falei com vária gente,
voltei, ouço música, estou terrivelmente cansado.
Exatamente terrivelmente com a sua banalidade
é o que pode dar a medida do meu cansaço.
Como estou cansado. De ter trabalhado muito,
ter feito um grande esforço para depois
interessar-me por outras pessoas
quando estou cansado demais para me interessarem as pessoas.

E é tarde, devia ter-me deitado mais cedo,
há muito que devera estar a dormir.
Mas estou acordado com o meu cansaço e a ouvir música.
Desfeito de cansaço, incapaz de pensar, incapaz de olhar,
totalmente incapaz até de repousar à força de cansaço.
Um cansaço terrível
da vida, das pessoas, de mim, de tudo.
E fumo cigarro após cigarro no desespero
de estar tão cansado. E ouço música
(por sinal a sonata para violino e piano de César Franck,
e depois os Wesendonck Lieder)
num puro cansaço de dissolver-me
como Brunhilda ou como Isoldano que não aceitarei nunca,
l' amor che muove il sole e l' altre stelle.
Nada há de comum entre esse amor de que estou cansado,
e o outro que não ama, apenas queima e passa,
e de cuja dissolução no espaço e no tempo em que vivo
estou mais cansado ainda. Dissolvam-se essas damas
que eram princesas ou valquírias, se preferem, no eterno.

Eu estou cansado de não me dissolver
continuamente em cada instante da vida,
ou das pessoas, ou de mim, ou de tudo.
Qu' ai-je à faire de l' eternel? I live here.
Non abbiamo confusion. E aqui é que morrerei
danado de cansaço, como hoje estou
tão terrivelmente cansado.


Obras Completas, Antologia Poética, 
edição de Jorge Fazenda Lourenço



quinta-feira, 4 de abril de 2019

"A curva dos teus olhos" - Poema de Paul Éluard


Karl Ferdinand Sohn, Mathilde Wesendonck, 1850



A curva dos teus olhos
 
 
 A curva dos teus olhos dá a volta ao meu peito
É uma dança de roda e de doçura.
Berço noturno e auréola do tempo,
Se já não sei tudo o que vivi
É que os teus olhos não me viram sempre.

Folhas do dia e musgos do orvalho,
Hastes de brisas, sorrisos de perfume,
Asas de luz cobrindo o mundo inteiro,
Barcos de céu e barcos do mar,
Caçadores dos sons e nascentes das cores.

Perfume esparso de um manancial de auroras
Abandonado sobre a palha dos astros,
Como o dia depende da inocência
O mundo inteiro depende dos teus olhos
E todo o meu sangue corre no teu olhar. 


Paul Éluard
, in "Algumas das Palavras"
Tradução de António Ramos Rosa

segunda-feira, 1 de abril de 2019

"Regime Alimentar" - Poema de Teresa Guedes

 
Franklin Franklin Brownell (American, 1857 - 1946), Two Girls Reading, c. 1908-1909 



Regime Alimentar


Há animais herbívoros,
há plantas carnívoras
e há pessoas pagívoras.
Como...?! Como...?!
Comem de entrada um acepipe:
um livro fresco de poemas.
Depois como prato principal,
um dicionário bem recheado.
E, à sobremesa, um livro infantil ilustrado.
Este regime alimentar, à base de massa
folhada e paginada, é bastante salutar:
não há registo de pagívoros enfartados ou adoentados.


Teresa Guedes (1957 – 2007)