sábado, 6 de abril de 2019

"É tarde, muito tarde da noite" - Poema de Jorge de Sena


Joaquín Sorolla, Portrait of photographer, Christian Franzen, 1901

 

É tarde, muito tarde da noite


É tarde, muito tarde da noite,
trabalhei hoje muito, tive de sair, falei com vária gente,
voltei, ouço música, estou terrivelmente cansado.
Exatamente terrivelmente com a sua banalidade
é o que pode dar a medida do meu cansaço.
Como estou cansado. De ter trabalhado muito,
ter feito um grande esforço para depois
interessar-me por outras pessoas
quando estou cansado demais para me interessarem as pessoas.

E é tarde, devia ter-me deitado mais cedo,
há muito que devera estar a dormir.
Mas estou acordado com o meu cansaço e a ouvir música.
Desfeito de cansaço, incapaz de pensar, incapaz de olhar,
totalmente incapaz até de repousar à força de cansaço.
Um cansaço terrível
da vida, das pessoas, de mim, de tudo.
E fumo cigarro após cigarro no desespero
de estar tão cansado. E ouço música
(por sinal a sonata para violino e piano de César Franck,
e depois os Wesendonck Lieder)
num puro cansaço de dissolver-me
como Brunhilda ou como Isoldano que não aceitarei nunca,
l' amor che muove il sole e l' altre stelle.
Nada há de comum entre esse amor de que estou cansado,
e o outro que não ama, apenas queima e passa,
e de cuja dissolução no espaço e no tempo em que vivo
estou mais cansado ainda. Dissolvam-se essas damas
que eram princesas ou valquírias, se preferem, no eterno.

Eu estou cansado de não me dissolver
continuamente em cada instante da vida,
ou das pessoas, ou de mim, ou de tudo.
Qu' ai-je à faire de l' eternel? I live here.
Non abbiamo confusion. E aqui é que morrerei
danado de cansaço, como hoje estou
tão terrivelmente cansado.


Obras Completas, Antologia Poética, 
edição de Jorge Fazenda Lourenço



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