domingo, 29 de dezembro de 2019

"A uma menina" - Poema de Machado de Assis


Seymour Joseph Guy (American, 1824 - 1910), The new story, 1892



A uma menina
La esencia de las flores
Tu dulce aliento sea.

QUINTANA 
Desabrochas ainda; tu és bela
Como a flor do jardim;
És doce, és inocente, como é doce
Divino Querubim.

Nas gotas da pureza inda se anima
A tu'alma infantil;
Não te nutre inda o peito da malícia
Mortífero reptil.

Quando sorris trasbordam de teus lábios
As gotas d’inocência;
No teu sorriso se traduz o encanto
Da tua pura essência.

És anjo, e são os anjos que confortam
Os tormentos da vida;
Vive, e não haja em teu semblante a prova
De lágrima vertida! 

Rio, 19 de setembro de 1855.

Machado de Assis

[Marmota Fluminense, 21 out. 1855. p. 4]


domingo, 22 de dezembro de 2019

"Ode aos Natais Esquecidos" - Poema de José Jorge Letria


El Greco (1541-1614), A adoração dos pastores, c.1612-1614,  
Museu do Prado, Madrid, Espanha



Ode aos Natais Esquecidos 


Eu vinha, pé ante pé, em busca da pequena porta
que dava acesso aos mistérios da noite,
daquela noite em particular, por ser a mais terna
de todas as noites que a minha memória
era capaz de guardar, com letras e sons,
no seu bojo de coisas imateriais e imperecíveis.
Tinha comigo os cães e os retratos dos mortos,
a lembrança de outras noites e de outros dias,
os brinquedos cansados da solidão dos quartos,
os cadernos invadidos pelos saberes inúteis.
E todos me diziam que era ainda muito cedo,
porque a meia-noite morava já dentro do sono,
no território dos anjos e dos outros seres alados,
hora inatingível a clamar pela nossa paciência,
meninos hirtos de olhos fixos na claridade
enganadora de uma árvore sem nome.

Depois, o meu pai morreu e as minhas ilusões também.
Tudo se tornou gélido, esquivo e distante
como a tristeza de um fantasma confrontado
com a beleza da vida para sempre perdida.
Deixaram de me dar presentes e de dizer
que era o Menino Jesus que os trazia
para premiar a minha grandeza de alma,
o meu desejo de ser bom para os outros.
Passei a escrever sobre tudo isso, sofregamente,
só para não ter de escrever sobre a saudade
que esse tempo fugidio deixou em mim.

A árvore mirrou de frio num canto da sala,
os presentes apodreceram no sótão da casa,
juntamente com os doces da Consoada
que ninguém teve vontade de comer,
nem mesmo os mais gulosos como eu.
Um homem de muita idade bateu-me à porta
e depositou-me nas mãos um pequeno embrulho:
«Eis o teu presente de Natal» — disse-me.
Abri-o e vi um livro onde se contava
toda a minha vida desde o primeiro Natal
de que conseguia lembrar-me, tudo o mais esquecendo.
Ali estava eu de pé, muito quieto, junto da árvore,
à espera que alguém me viesse dizer
que o céu era pródigo em revelações e dádivas.
Era para lá que eu sonhava ir quando morresse.

Quando Dezembro se aproximar do fim,
lançarei pétalas ao vento como se tentasse
semear o perfume do que fui enquanto acreditei.
Talvez o homem volte com outro embrulho secreto,
só para me dizer que esse é o livro que ainda me falta escrever.
Então, juntarei os amigos, os filhos e os netos
numa roda de luz à minha volta e direi do Natal
o que os antigos diziam dos heróis e dos deuses:
foi à sombra deles que nos fizemos homens.
Quando eu partir de vez, lembrem ao menos
a ternura do meu sorriso de menino
quando a meia-noite soava no relógio da sala
e eu acreditava ainda que a felicidade era possível. 


José Jorge Letria, in 'Natal' 


domingo, 15 de dezembro de 2019

"O gato" - Poema de Donizete Galvão


Charles Camoin (French Fauvist Painter, 1879-1965), La fille au chat, c.1900



O gato


O gato é secreto.
Tece com calma o mistério do mundo.

O gato é elétrico.
Pura energia a percorrer a espinha.

O gato é orgulho.
Sem humildade, jamais se entrega.

O gato é desejo.
Atração pela lua e telhados.

O gato é sagrado.
Olho no olho que brilha.

Um susto.
Parece que vemos Deus.


Donizete Galvão

Do livro: "Azul Navalha"
Edições Exelcior, 1988, SP
 
 
 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

"A Cigarra e a Formiga" - Fábula de Esopo, por La Fontaine

A Cigarra e a Formiga (O Gafanhoto e Formiga no original),
ilustração de Milo Winter, é uma das fábulas atribuídas a Esopo
e recontada por Jean de La Fontaine em francês.



A Cigarra e a Formiga 


Tendo a cigarra cantado durante o verão,
Apavorou-se com o frio da próxima estação.
Sem mosca ou verme para se alimentar,
Com fome, foi ver a formiga, sua vizinha,
pedindo-lhe alguns grãos para aguentar
Até vir uma época mais quentinha!
- "Eu lhe pagarei", disse ela,
- "Antes do verão, palavra de animal,
Os juros e também o capital."
A formiga não gosta de emprestar,
É esse um de seus defeitos.
"O que você fazia no calor de outrora?"
Perguntou-lhe ela com certa esperteza.
- "Noite e dia, eu cantava no meu posto,
Sem querer dar-lhe desgosto."
- "Você cantava? Que beleza!
Pois, então, dance agora!" 


Fábula de  Esopo, por La Fontaine


Ilustração de Teguh Mujiono (tigatelu)


A Cigarra e a Formiga
(Bocage)


Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o Verão
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.

Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.

Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brilho,
Algum grão com que manter-se
Até voltar o aceso Estio.

«Amiga, diz a cigarra,
Prometo, à fé d’animal,
Pagar-vos antes d’Agosto
Os juros e o principal.»

A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta.
«No Verão em que lidavas?»
À pedinte ela pergunta.

Responde a outra: «Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora.»
«Oh! bravo!», torna a formiga.
– Cantavas? Pois dança agora!»


Manuel Maria Barbosa du Bocage


A cigarra e a formiga - Ilustração de Calvet-Rogniat (1812-1875)


A Cigarra e a Formiga 
 (A Formiga Boa - Monteiro Lobato) 


Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé do formigueiro. Só parava quando cansadinha; e seu divertimento era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas.
Mas o bom tempo afinal passou e vieram as chuvas . Os animais todos, arrepiados, passavam o dia cochilando nas tocas.
A pobre cigarra, sem abrigo em seu galhinho seco e metida em grandes apuros, deliberou socorrer-se de alguém.
Manquitolando, com uma asa a arrastar, lá se dirigiu para o formigueiro. Bateu – tique, tique, tique...
Aparece uma formiga friorenta, embrulhada num xalinho de paina.
- Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.
- Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu...
A formiga olhou-a de alto a baixo.
- E que fez durante o bom tempo que não construiu a sua casa?
A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois dum acesso de tosse.
- Eu cantava, bem sabe...
- Ah!.. . exclamou a formiga recordando-se. Era você então que cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?
- Isso mesmo, era eu...
Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.
A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol. 

Monteiro Lobato, do livro Fábulas


The Ant and the Grasshopper – by Jr Casas


A Cigarra e a Formiga
(Millôr Fernandes)


Cantava a Cigarra
Em dós sustenidos
Quando ouviu os gemidos
Da Formiga
Que, bufando e suando,
Ali, num atalho,
Com gestos precisos
Empurrava o trabalho;
Folhas mortas, insetos vivos.
Ao vê-la assim, festiva,
A Formiga perdeu a esportiva:
“Canta, canta, salafrária,
E não cuida da espiral inflacionária!
No inverno
Quando aumentar a recessão maldita
Você, faminta e aflita,
Cansada, suja, humilde, morta,
Virá pechinchar à minha porta.
E na hora em que subirem
As tarifas energéticas,
Verás que minhas palavras eram proféticas.
Aí, acabado o verão,
Lá em cima o preço do feijão,
Você apelará pra formiguinha.
Mas eu estarei na minha
E não te darei sequer
Uma tragada de fumaça!”
Ouvindo a ameaça
A Cigarra riu, superior,
E disse com seu ar provocador:
“Estás por fora,
Ultrapassada sofredora.
Hoje eu sou em videocassete,
Uma reprodutora!
Chegado o inverno
Continuarei cantando
- sem ir lá –
No Rio,
São Paulo,
E Ceará,
Rica!
E você continuará aqui
Comendo bolo de titica.
O que você ganha num ano
Eu ganho num instante
Cantando a Coca,
O sabãozão gigante,
O edifício novo
E o desodorante.
E posso viver com calma
Pois canto só pra multinacionalma.”