sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

"Natal" - 3 Poemas de Miguel Torga

 


Hans Zatzka (Austrian, 1859-1945), Mary and Child with Angels 

 


Natal

(1982)

Solstício de inverno.
Aqui estou novamente a festejá-lo
À fogueira dos meus antepassados
Das cavernas.
Neva-me na lembrança,
E sonho a primavera
Florida nos sentidos.
Consciente da fera
Que nesses tempos idos
Também era,
Imagino um segundo nascimento
Sobrenatural
Da minha humanidade.
Na humildade
Dum presépio ideal,
Emblematizo essa virtualidade.
E chamo-lhe Natal.

Miguel Torga
(Poema extraído de "Diário VII", 1982)

 


Pompeo Batoni (Italian painter, 1708-1787), The Holy Family with St Elizabeth 
and the Infant St John the Baptist, 1777, Hermitage Museum, St Petersburg
 

 Natal

(1987)

Nasce mais uma vez,
Menino Deus!
Não faltes, que me faltas
Neste inverno gelado.
Nasce nu e sagrado
No meu poema,
Se não tens um presépio
Mais agasalhado.

Nasce e fica comigo
Secretamente,
Até que eu, infiel, te denuncie
Aos Herodes do mundo.
Até que eu, incapaz
De me calar,
Devasse os versos e destrua a paz
Que agora sinto, só de te sonhar.


Miguel Torga
(Poema extraído de "Diário XIV", 1987)

Natal

(1988)

Menino Jesus feliz
Que não cresceste
Nestes oitenta anos!
Que não tiveste
Os desenganos
Que eu tive
De ser homem,
E continuas criança
Nos meus versos
De saudade
Do presépio
Em que também nasci,
E onde me vejo sempre igual a ti.


Miguel Torga
(Poema extraído de "Diário XV", 1988) 
 
 
The Virgin and Child, known as the Durán Madonna, 1435-38, 
Museo del Prado, Madrid
 
 


Rogier Van Der Weyden, pintor flamengo, nasceu por volta do ano de 1400, em Tournai, tendo falecido em Bruxelas sessenta e quatro anos depois. 
A sua obra foi conhecida nos grandes centros e mesmo célebre enquanto ainda vivia, e representou um avanço significativo para a História da Arte. De facto foi considerado, a par de Robert Campin e Jan van Eyck, um dos artistas fundamentais do Quattrocento na Flandres. 
Não existem dados que permitam a reconstituição de uma biografia incontestável, e mesmo as obras que se dizem da sua autoria foram-lhe atribuídas com base num estilo muito característico que todas elas possuem em comum. 
Crê-se que terá estudado na oficina de Rogelet de la Pâture (apesar de alguns estudiosos o identificarem com este mesmo pintor), entre 1427 e 1432, e que a partir de 1436 se estabeleceu em Bruxelas como pintor oficial da cidade. Ao serviço de Bruxelas terá pintado duas cenas de grande dimensão alusivas à Justiça, por volta do ano de 1439. 
No ano seguinte poderá ter ido a Roma, na sequência do Jubileu que se celebrava, visitando Milão e Florença e tendo-se estabelecido em Ferrara, onde trabalhou para Leonel d'Este
Pensa-se igualmente que terá dirigido uma oficina de grandes dimensões e importância. As inovações artísticas de que foi portador foram sobretudo no tratamento iconográfico e da imagem com grande espiritualidade, tendente para o dramatismo. 
Os temas das suas pinturas são em grande parte religiosos, como a Deposição (c. 1435) e São Lucas a retratar a Virgem, obras que a par do Tríptico Miraflores pertencem ao início da sua carreira e, como tal, mostrando clara influência de Robert Campin (provavelmente seu mestre) na característica escultórica das figuras. 
Pensa-se que o Juízo Universal ainda não patenteia os conhecimentos que poderia ter adquirido em Itália e que mais tarde se mostrariam em obras suas, vendo-se nesta obra, pelo contrário, a tendência ainda medieval preconizada por Jan van Eyck
Para a família Médicis pintou um Enterro e Madona com o Menino e Quatro Santos e na década de 1450 pintou obras como o Tríptico Bladelin, o Políptico dos Sete Sacramentos, um tríptico com a Crucifixão e a Anunciação, e já no final da sua vida, além de retratos com tratamento de luz bastante elaborado, o Tríptico de São João e o de Santa Colomba. (Daqui)
 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

"Minha tia Alexandrina" - Poema de José Henrique dos Santos Barros


Anna Elizabeth Klumpke (American, 1856-1942), Seated Woman 
with a Red Kerchief, 1886
 
 
 
Minha tia Alexandrina


Minha tia Alexandrina bebia café
meia tigela de manhã e meia de tarde
o que dava mais dum litro.
Com esse rio de fogo correndo no seu corpo
punha ela dez filhos fora de casa
e lavava dez sobrados às senhoras da cidade.

E quando voltava para os Biscoitos na camioneta da carreira
deixava-me nos ouvidos a música das gargalhadas dadas
e nos olhos os demónios dos seus olhos
pretos, estrelas pequeninas fulgurantes.

Não passo pela ilha sem ir aos Biscoitos
não por vê-la, que ela já não está:
(levou-a o Canadá, a carta de chamada)
mas porque tenho consciência que são esplêndidos
os ramos das vinhas que alastram nos calhaus.


José Henrique dos Santos Barros
,
in 'S. Mateus, Outros Lugares e Nomes'
 
 

José Henrique Santos Barros 
 

José Henrique dos Santos Barros nasceu em 1946 em Angra do Heroísmo e faleceu vítima de acidente de viação, em Mérida, Espanha, em maio de 1983, com a sua mulher, a escritora Ivone Chimita.
J. H. Santos Barros viveu a infância e a juventude na ilha Terceira. Após a conclusão de estudos secundários, empregou-se como funcionário público. Anos depois, deu início àquela que viria a ser a «aventura» da sua vida: a poesia, a animação cultural, o suplementarismo e o ensaio literário, o sindicalismo, a literatura. 
A mobilização para a guerra colonial, como furriel miliciano, levou-o a Angola (entre 1969 e 1971, ano em que regressou à sua cidade natal). Foi a partir de então que nele mais se notabilizou uma extraordinária propensão para as coisas da cultura. O seu nome não pode deixar de associar-se a um movimento de renovação inscrito, nos Açores, desde a criação (por Carlos Faria) do suplemento «Glacial», no jornal angrense A União (foi seu coordenador entre 1972 e 1974).

J. H. Santos Barros acreditou na possibilidade de unir numa só frente uma postura de vanguarda ideológica, militante, com a ideia libertária de uma cultura em duplo: popular e de grupo. Com outros intelectuais angrenses, fundou a galeria de artes plásticas «Degrau»; animou cooperativas, sindicatos, rádios e jornais; fundou e dirigiu o suplemento «Cartaz» (nova série, 1972-1974) e a revista A Memória da Água-Viva, de parceria com Urbano Bettencourt (1978-1980). Mas foi no suplemento «Contexto», do jornal Açores (quando, residindo já em Lisboa, de 1979 até a data da sua morte) que mais e melhor sistematizou todo um trabalho de animação e coordenação que se estenderia à crítica, à polémica literária, à ensaística de fundo e até a uma curiosa experiência heteronímica que o levaria a subscrever, com diversos nomes, posições e conceitos propositada e provocatoriamente contraditórios. Foi assim, por exemplo, em relação à controversa questão da existência (ou não) de uma «literatura açoriana», que muito interessou os escritores açorianos da sua geração.

Como poeta, estreou-se aos 18 anos - dando-nos depois folhas, cadernos policopiados, opúsculos e excelentes livros de poemas; como ensaísta literário, interessou-lhe a conjugação da «açorianidade» (expressão sensível do local e do regional insular) com a «universalidade» potencial de toda a Literatura; como contista (autor de alguns dispersos), andou pelos imaginários oníricos e surrealizantes. Deixou inédito um diário (O Aprendiz de Mundos) e raros poemas. No essencial da sua poesia, a fidelidade da radicação aos temas insulares não é de molde a inscrevê-la no tão pouco apreciado apego ao regionalismo da escrita literária; pelo contrário, o regional e o tradicional de J. H. Santos Barros tornam-se matriz e ponto de partida da alternância ilha/Mundo, ora no tom abrasivo de uma «poética do quotidiano», ora na excelência de uma voz erguida à proclamação de versos como estes: «Pregar um prego, lavar pratos, cortar a erva / custa. Mas nunca nada me custou tanto que / carregar um verso das coisas mais difíceis. A fazer / do outro lado da literatura os nós do mundo.»

Obra Poética: (1964), poemas na Novíssima Poesia Açoriana. Angra do Heroísmo, ed. dos autores [com Gil Reis]. (1968), Aventura em Sete Poemas. Lisboa, ed. do autor. (1970), Canto de Abril. Lisboa, Ed. Panorama. (1971), Imagem Fulminante. Angra do Heroísmo, Galeria Gávea. (1913), Testes e Versos Para Andar na Rua. Angra do Heroísmo, Galeria Degrau (ed. a stencil). (1974), Topiária. Angra do Heroísmo, Galeria Degrau (ed. mimeografada). (1976), As Crónicas. Lisboa, ed. do autor (policopiado). (1979), A Humidade. Lisboa, Cooperativa Semente. (1979), Os Alicates do Tempo. Porto, Ed. Afrontamento. (1981), São Mateus, Outros Lugares e Nomes. Lisboa, Ed. Vega.
Obra Ensaística: (1977), 20 Anos de Literatura e Arte nos Açores. Lisboa, ed. do autor. (1981), O Lavrador de Ilhas. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura. (Daqui)


Anna Elizabeth Klumpke, In the Wash-house, 1888, oil on canvas.
Pennsylvania Academy of the Fine Arts


"Por vezes sentimos que aquilo que fazemos não é senão uma gota de água no oceano. Mas o mar seria menor se lhe faltasse uma gota."
 
 
Anna Elizabeth Klumpke, A Moment's Rest, Barbizon, 1891


"Temos de ir à procura das pessoas, porque podem ter fome de pão ou de amizade."
 

domingo, 12 de dezembro de 2021

"Retábulo" e "Natal" - Poemas de Miguel Torga


 
 

Retábulo
 
(1954)

Estranho Menino Deus é o dum poeta!
O que nasce e renasce há muitos anos
Na minha noite de Natal, fingida,
Mal corresponde à imagem conhecida
Das sucursais do berço de Belém.
É uma criança tímida que vem
Visitar os meus sonhos, e, ao de leve,
Com mãos discretas, tece
Um poema de neve
Onde depois se deita e adormece.


Miguel Torga
(Poema extraído de "Diário VII", 1954)

 
Lorenzo Lotto, Adoration of the Shepherds, c. 1534.
  

Natal


(1948)

Devia ser neve humana
A que caía no mundo
Nessa noite de amargura
Que se foi fazendo doce…
Um frio que nos pedia
Calor irmão, nem que fosse
De bichos de estrebaria.

 
(Poema extraído de "Diário IV", 1948)
 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

"Noite e Dia" - Poema de Alice Ruiz


Woman in Reykjavík with Umbrella, 1980
 


Noite e Dia


Não me agradam
essas coisas que despertam
barulho, susto, água fria
tudo na minha cara
mais nenhum sonho por perto.

Não me agradam
essas coisas que adormecem
vazio, escuro, calmaria
tudo que lembra morte
quando nada mais dá certo.

Não me agradam
essas coisas sem poesia
uma noite só noite
um dia só dia.


Alice Ruiz
,
do livro Luminares,
Castelinho Edições, de 2012
(daqui)

 

 
Louisa Matthíasdóttir, Two Women and Umbrellas, 1980
 

A gaveta da alegria
já está cheia
de ficar vazia.

do livro "Yuuka" - Haicais


Louisa Matthíasdóttir, Self-Portrait in Long Striped Sweater, 1993


Gota de suor
rola pelo rosto
lágrima sem dor.
 
 Haicais 



Louisa Matthiasdottir, Woman in Street, c.1980


Trânsito parado
os mesmos olhares
e ninguém se olha.

Haicais 
 

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

"Cantares" - Poema de Antonio Machado



Carl Spitzweg (1808–1885), The Painter in a Forest Clearing,  
Lying under an Umbrella, c. 1850



Cantares

 
Tudo passa e tudo fica,
porém o nosso é passar,
passar fazendo caminhos,
caminhos sobre o mar.

Nunca persegui a glória,
nem deixar na memória
dos homens minha canção.
Eu amo os mundos subtis,
leves e gentis,
como bolhas de sabão.

Gosto de vê-los pintar-se de sol escarlate
Voar debaixo do céu azul,
Tremer subitamente e quebrar-se...

Nunca persegui a glória.

Caminhante, são tuas pegadas
o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.

Ao andar faz-se caminho,
e ao voltar a vista atrás,
vê-se a senda que nunca,
se voltará a pisar.

Caminhante não há caminho
simplesmente marcas no mar...

Faz algum tempo neste lugar
onde hoje os bosques se vestem de espinhos
ouviu-se a voz de um poeta gritar
"Caminhante não há caminho,
faz-se caminho ao andar"...

Golpe a golpe, verso a verso...

Morreu o poeta longe do lar
cobre-lhe o pó de um país vizinho.
Ao afastar-se vieram-lhe chorar
"Caminhante não há caminho,
faz-se caminho ao andar..."

Golpe a golpe, verso a verso...

Quando o pintassilgo não pode cantar.
Quando o poeta é um peregrino,
quando de nada nos serve rezar.
"Caminhante não há caminho,
faz-se caminho ao andar..."

Golpe a golpe, verso a verso."

  "Proverbios y cantares I". In: Poesías completas
Madrid: Espasa-Calpe, 1983.
Tradução de Plácido de Oliveira
 
 
  
Carl Spitzweg (1808–1885), Suspicious smoke, c. 1860  
 

 Cantares

Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre el mar.

Nunca persequí la gloria,
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles,
ingrávidos y gentiles,
como pompas de jabón.

Me gusta verlos pintarse
de sol y grana, volar
bajo el cielo azul, temblar
súbitamente y quebrarse…

Nunca perseguí la gloria.

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.

Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.

Caminante no hay camino
sino estelas en la mar…

Hace algún tiempo en ese lugar
donde hoy los bosques se visten de espinos
se oyó la voz de un poeta gritar
“Caminante no hay camino,
se hace camino al andar…”

Golpe a golpe, verso a verso…

Murió el poeta lejos del hogar.
Le cubre el polvo de un país vecino.
Al alejarse le vieron llorar.
“Caminante no hay camino,
se hace camino al andar…”

Golpe a golpe, verso a verso…

Cuando el jilguero no puede cantar.
Cuando el poeta es un peregrino,
cuando de nada nos sirve rezar.
“Caminante no hay camino,
se hace camino al andar…”

Golpe a golpe, verso a verso.  

 
  "Proverbios y cantares I". In: Poesías completas
Madrid: Espasa-Calpe, 1983. 
 
 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

"Setenário das Dores de Nossa Senhora" - Sonetos de Alphonsus de Guimaraens


William-Adolphe Bouguereau (1825-1905), The Song of the Angels, 1881 
 


PRIMEIRA DOR
 
Et tuam ipsius animam pertransibit gladius…
São Luc., II, 35.
I

Nossa Senhora vai... Céu de esperança
Coroando-lhe o perfil judaico e fino...
E um raio de ouro que lhe beija a trança
É como um grande esplendor divino.

O seu olhar, tão cheio de ondas, lança
Clarões longínquos de astro vespertino.
Sob a túnica azul uma alva Criança
Chora: é o vagido de Jesus Menino.

Entram no Templo. Um hino do Céu tomba.
Sobre eles paira o Espírito celeste
Na forma etérea de invisível Pomba.

Diz-lhe o velho Simeão: "Por uma Espada,
Já que Ele te foi dado e que O quiseste,
A Alma terás, Senhora, traspassada..."

II

Sofrer por Ele! E pálida, ofegante,
Nossa Senhora aperta-O contra o seio.
E nas linhas tranquilas do semblante
Descem-lhe nuvens de magoado anseio.

Sofrer por Quem! Ventura semelhante,
Só a um peito como o seu de estrelas cheio...
Sofrer por Esse que do Céu distante
Na voz do Arcanjo do Senhor lhe veio...

Que lhe importavam lágrimas sem brilho,
Nessas horas de paz erma e saudosa,
Se ela chorava por seu próprio Filho...

Sofrer pela amargura dessa Boca,
E aos Pés depor-lhe a vida desditosa,
Vida que eterna ainda seria pouca!
 
III

Que lhe importavam lágrimas? Chorasse
Desde o nascer do sol até o sol posto;
Tivesse prantos quando a lua nasce,
Quando, entre nuvens, ela esconde o rosto.

Junto ao seu Berço, a contemplar-lhe a Face,
De Mãe Divina no sublime posto,
Temendo que uma estrela O despertasse,
Gozo teria no maior desgosto.

Por Ele toda a mágoa sofreria…
Ah! corresse-lhe em fonte ardente o pranto
Na paz da noite e nos clarões do dia.

Sofrer por Ele… Sim. Tudo por Esse
A quem beijava os Olhos, mas contanto
Que Ele, o seu Filho amado, não sofresse!

* * *

SEGUNDA DOR
 
…Angelus Domini apparuit in somnis Joseph…
Qui consurgens accepit puerum et matrem ejus
nocte, et seccessit in Aegyptum.

S. Matth., II, 13, 14.

I

Eram pastores rudes e pastoras
Que o sol do Oriente em beijos enrubesce,
E transforma em visões encantadoras
Na suavidade da alva que amanhece:

Eram bandos de velhos, e de louras
Crianças gentis, as mãos postas em prece,
Frontes humildes, Almas sonhadoras,
Por onde a bênção do Senhor floresce:

Era a sublime adoração do povo,
À luz daquele celestial Presepe,
Diante do leito de um menino novo:

Diante do leito em que Ele adormecia,
Hoje de flores, amanhã de crepe,
Berço de Deus, Santo-Sepulcro um dia...

* * *

TERCEIRA DOR

Fili, quid fecisti nobis sic? Ecce pater tuus et
ego dolentes quaerebamus te.

S. Luc., II, 48.

Foi por aquelas ruas circulares
Que O perdeste, Senhora, e que O não viste,
Sorrindo sob a luz dos seus olhares,
Ele, o Cordeiro amargurado e triste…

Quem pudera chorar os teus pesares,
Quem, na angústia a que o peito não resiste,
Te guiara em via-sacra pelos lares,
Sentindo toda a mágoa que sentiste!

Três dias procuraste, em mágoa imensa,
Sofrendo a multidão dos hebreus rudes,
Do Filho eterno a celestial Presença…

(Fé, Esperança, Caridade, hinário
De alívio à Mãe aflita, áureas Virtudes
Que haveis de segui-la até o Calvário!)

* * *
 
Alphonsus de Guimaraens,
Setenário das Dores de Nossa Senhora

[Além do lirismo, os versos de Alphonsus Guimaraens refletem a preocupação pelo sentimento religioso e pela meditação cristã. De família católica, o poeta tornou-se o maior cantor da Virgem, dedicando a Nossa Senhora um conjunto de 49 sonetos, reunidos sob o título de Setenário das Dores de Nossa Senhora.]  (Daqui)
 
  
c. 1660-1665,  Madrid, Prado Museum
 
 

Imaculada Conceição
Solenidade religiosa que evoca a História de Portugal

 
Primeira celebração do culto da Imaculada Conceição decorreu no dia 8 de dezembro de 1320, em Coimbra, e consagrou-se com a coroação da Imagem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa como Rainha e Padroeira de Portugal durante as cortes de 1646.
 
A Igreja Católica assinala anualmente a 8 de dezembro, feriado nacional em Portugal, um reconhecimento à importância desta data na espiritualidade e identidade do país.

O dogma da Imaculada Conceição de Maria foi proclamado a 8 de dezembro de 1854, através da bula ‘Ineffabilis Deus’, a qual declara a santidade da Virgem Santa Maria desde o primeiro momento da sua existência, sendo preservada do pecado original.

A primeira celebração do culto da Imaculada Conceição aconteceu na Sé Velha de Coimbra, no dia 8 de dezembro de 1320, há 700 anos, que este ano são assinalados pela Diocese, após D. Raimundo Evrard, bispo diocesano da altura, ter assinado, no dia 17 de outubro de 1320, a constituição diocesana que instituiu a festividade da Conceição de Maria.

A ligação entre Portugal e a Imaculada Conceição ganhara destaque em 1385, quando as tropas comandadas por D. Nuno Alvares Pereira derrotaram o exército castelhano e os seus aliados, na batalha de Aljubarrota.

Em honra a esta vitória, o Santo Condestável fundou a igreja de Nossa Senhora do Castelo, em Vila Viçosa, e fez consagrar aquele templo a Nossa Senhora da Conceição.

A antiga igreja de Nossa Senhora do Castelo, espaço onde se ergue atualmente o santuário nacional, afirmou-se nos finais do século XIV como um sinal desta devoção, em toda a Península Ibérica.

Depois, deu-se durante o movimento de restauração da independência que acabou com o domínio castelhano em Portugal e que culminou com a coroação de D. João IV como rei de Portugal, a 15 de dezembro de 1640, no Terreiro do Paço, em Lisboa.

O mesmo D. João IV, atento a uma religiosidade que também já envolvera a construção de monumentos como o Mosteiro da Batalha, o Convento do Carmo e o Mosteiro da Conceição, coroou a Imagem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa como Rainha e Padroeira de Portugal durante as cortes de 1646.

A Universidade de Coimbra tem um papel importante em todo este processo, já que todos os seus intelectuais defenderam o dogma sob forma de juramento solene.

Após a proclamação dogmática, surgiu em Portugal um movimento no sentido de erguer um monumento nacional que assinalasse a definição de Pio IX.

Em 1869 concluiu-se esse primeiro monumento, no Sameiro, em Braga, seguindo-se-lhe a construção dum santuário dedicado à Imaculada Conceição de Maria, cuja imagem foi coroada solenemente em 1904. (Daqui) 

Importa referir que durante séculos, o Dia da Mãe era comemorado no dia 8 de dezembro, tendo sido mudado para maio, por ser considerado o mês de Nossa Senhora.

 

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

"O Instante" - Poema de Haroldo de Campos


O Instante

o instante
é pluma

seu holograma
radia estável

como quem olha pelo cristal
do tempo

feixe fixo
de luz

(já não se vê se o olho deixa sua seteira)
prisma

o sol
chove
de um teto
zenital

elipse: um estilo de persianas 


Haroldo de Campos,
Signantia: Quasi Coelum / Signância: Quase Céu
São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 35. (Signos, 7).
 
["Signantia: Quasi Coelum / Signância: Quase Céu"  é  uma reunião de poemas de Haroldo de Campos, lançada no ano de 1979 em comemoração aos 50 anos de idade do poeta e de seus 30 anos de carreira literária. O livro ganha corpo com o ensaio interpretativo de João Alexandre Barbosa e os estudos críticos de Severo Sarduy, Andrés Sánchez Robayna e Benedito Nunes acerca da vasta e rica obra do autor.]

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

"Gaivota" - Poema de Alexandre O’Neill


 
 


Gaivota


Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor, na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro
dos sete mares andarilho
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor, na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
morreria no meu peito,
meu amor, na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração. 

 
 
[Letra de Alexandre O’Neill, música de Alain Oulman,
 Amália RodriguesSónia Tavares (The Gift) cantam a “Gaivota” (aqui)]
 

  
Laurie Snow Hein, Seagull


"O correr das águas, a passagem das nuvens, o brincar das crianças, o sangue nas veias. 
Esta é a música de Deus."

(Hermann Hesse)
 
 
Hermann Hesse tinha uma cativante predileção por gatos
(Acervo: Arquivo Suíço de Literatura)
 (daqui)
 

Hermann Hesse, romancista e poeta alemão, nasceu em 1877, na pequena cidade de Calw, na orla da Floresta Negra e no estado de Wüttenberg, faleceu a 9 de agosto de 1962, durante o sono, vítima de uma hemorragia cerebral.

Filho de Johannes Hesse, cidadão russo nascido em Weissenstein, na Estónia e de Marie Gundert, nascida em Talatscheri, na Índia, e ela própria filha de um missionário Pietista perito em Indologia, Hermann Gundert, também editor religioso.

Como os pais depositavam esperanças no facto de Hermann Hesse poder vir a seguir a tradição familiar em teologia, já que eles mesmos haviam servido como missionários na Índia, enviaram-no para o seminário protestante de Maulbronn, em 1891, mas acabou por ser expulso. Passando a uma escola secular, o jovem Hermann tornou a revelar inadaptação, pelo que abandonou os seus estudos.

Hermann Hesse começou depois a trabalhar, primeiro como aprendiz de relojoeiro, como empregado de balcão numa livraria, como mecânico, e depois como livreiro em Tübingen, onde se teria juntado a uma tertúlia literária, "Le Petit Cénacle", que teria, não só grandemente fomentado a voracidade de leitura em Hesse, como também determinado a sua vocação para a escrita. Assim, em 1899, Hermann Hesse publicou os seus primeiros trabalhos, Romantischer Lieder e Eine Stunde Hinter Mitternacht, volumes de poesia de juventude.

Depois da aparição de Peter Camenzind, em 1904, Hesse tornou-se escritor a tempo inteiro. Na obra, refletindo o ideal de Jean-Jacques Rousseau do regresso à Natureza, o protagonista resolve abandonar a grande cidade para viver como São Francisco de Assis. O livro obteve grande aceitação por parte do público.

Em 1911, e durante quatro meses, Hermann Hesse visitou a Índia, que o teria desiludido mas, em contrapartida, constituído uma motivação no estudo das religiões orientais. No ano seguinte, o escritor e a sua família assentaram arraiais na Suíça. Nesse período, não só a sua esposa começou a dar sinais de instabilidade mental, como um dos seus filhos adoeceu gravemente. No romance Rosshalde (1914), o autor explora a questão do casamento ser ou não conveniente para os artistas, fazendo, no fundo, uma introspeção dos seus problemas pessoais.

Durante a Primeira Guerra Mundial, Hesse demonstrou ser desfavorável ao militarismo e ao nacionalismo que se faziam sentir na altura e, da sua residência na Suíça, procurou defender os interesses e a melhoria das condições dos prisioneiros de guerra, o que lhe valeu ser considerado pelos seus compatriotas como traidor.

Finda a guerra, Hesse publicou o seu primeiro grande romance de sucesso, Demian (1919). A obra, de carácter faustiano, refletia o crescente interesse do escritor pela psicanálise de Carl Jung, e foi louvada por Thomas Mann. Assinada nas primeiras edições com o nome do seu narrador, Emil Sinclair, Hesse acabaria por confessar a sua autoria.

Deixando a sua família em 1919, Hermann Hesse mudou-se para o Sul da Suíça, para Montagnola, onde se dedicou à escrita de Siddharta (1922), romance largamente influenciado pelas culturas hindu e chinesa e que, recriando a fase inicial da vida de Buda, nos conta a vida de um filho de um Bramane que se revolta contra os ensinamentos e tradições do seu pai, até poder eventualmente encontrar a iluminação espiritual. A obra, traduzida para a língua inglesa nos anos 50, marcou definitivamente a geração Beat norte-americana.

1919 foi também o ano em que Hesse travou conhecimento com Ruth Wenger, filha da escritora suíça Lisa Wenger e bastante mais nova que o autor. O escritor renunciou à cidadania alemã, em 1923, optando pela suíça. Divorciando-se da sua primeira esposa, Maria Bernoulli, casou com Ruth Wenger em 1924, tendo o casamento durado apenas alguns meses. Dessa experiência teria resultado uma das suas obras mais importantes, Der Steppenwolf (1927). No romance, o protagonista Harry Haller confronta a sua crise de meia-idade com a escolha entre a vida da ação ou da contemplação, numa dualidade que acaba por caracterizar toda a estrutura da obra.

Em 1931 voltou a casar, desta feita com Ninon Doldin, de origem judaica. Com apenas quatorze anos, havia enviado, em 1909, uma carta a Hermann Hesse, e desde então a correspondência entre ambos não mais cessou. Conhecendo-se acidentalmente em 1926, foram viver juntos para a Casa Bodmer, estando Ninon separada do pintor B. F. Doldin, e a existência de Hesse ter-se-à tornado mais serena.

Durante o regime Nacional-Socialista, os livros de Hermann Hesse continuaram a ser publicados, tendo sido protegidos por uma circular secreta de Joseph Goebbels em 1937. Quando escreveu para o jornal pró-regime Frankfürter Zeitung, os refugiados judeus em França acusaram-no de apoiar os Nazis. Embora Hesse nunca se tivesse abertamente oposto ao regime Nacional-Socialista, procurou auxiliar os refugiados políticos. Em 1943 foi finalmente publicada a obra Das Glasperlernspiel, na qual Hesse tinha começado a trabalhar em 1931. Tendo enviado o manuscrito, em 1942, para Berlin, foi-lhe recusada a edição e o autor foi colocado na Lista Negra Nacional-Socialista. Não obstante, a obra valer-lhe-ia o prémio Nobel em 1946.

Após a atribuição do famoso galardão, Hesse não publicou mais nenhuma obra de calibre. Entre 1945 e 1962 escreveria cerca de meia centena de poemas e trinta e dois artigos para os jornais suíços. (Daqui)
 
 

sábado, 4 de dezembro de 2021

"Esperança" - Poema de Mário Quintana


Edward Burne-JonesSpes or Hope, 1871, Watercolour, 
 
 
Esperança


Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...
Texto extraído do livro Nova Antologia Poética,
 Editora Globo – São Paulo, 1998, p. 118.
 
 
 
by his son Philip Burne-Jones, 1898
 

Pintor inglês oitocentista, sir Edward Coley Burne-Jones nasceu no ano de 1833, em Birmingham, e faleceu em 1898. 
Estudou no Exeter College, em Oxford, a partir de 1853, com a intenção de seguir a carreira eclesiástica. Lá travou conhecimento com William Morris e estabeleceu contacto com a arte, a literatura e a poesia, sobretudo as da época medieval, para a qual se inclinava o seu amigo (que viria a ser um dos mentores do movimento Arts and Crafts, um retorno ao autêntico e, portanto, ao manufaturado). Esta influência acentuou-se ao travar conhecimento com Dante Gabriel Rossetti, ao visitar o Norte de França e ao ler os escritos de John Ruskin e do jornal pré-rafaelita The Germ, pelo que decidiu deixar a universidade em 1856 com o intuito de se tornar pintor. 
 
Recebeu aulas de Rossetti, em Londres, e colaborou com ele e com Morris na pintura do mural da Oxford Union Debating Chamber, em 1857. 
Na cidade de Londres conheceu os nomes mais importantes do movimento pré-rafaelita, como Ford Madox Brown, Arthur Hugues e Thomas Woolner, e a partir de 1861 passou a desenhar decoração de mobiliário, vitrais e tapetes para a empresa Morris, Marshall, Faulkner e Companhia, da qual foi sócio fundador. 
 
Em 1859 Burne-Jones foi pela primeira vez a Itália e contactou com as obras de Miguel Ângelo, Andrea Mantegna, Luca Signorelli, Orcagna e Sandro Botticelli, pintores cronologicamente anteriores a Rafael, e em 1862 foi a vez de conhecer, com Ruskin, a pintura de Veneza. O estilo deste pintor, presente em obras como Merlin and Nimuë, The Arming of Perseus, The Beguiling of Merlin e King Cophetua and the Beggar Maid, caracteriza-se por um ambiente etéreo, onírico, poético e indefinido onde se situam figuras andróginas, resultando numa obra marcadamente estética. 
 
A primeira exposição em que entraram as suas obras foi por volta de 1860, na Watercolour Society, mas a que lhe deu fama nacional foi a de 1877, na Grosvenor Gallery. 
Em 1885 Burne-Jones foi eleito sócio da Royal Academy, da qual se retirou em 1893, e no ano de 1894 recebeu o título de barão. 
A obra The Dephts of the Sea foi exposta na Exposição de verão de 1886 e King Cophetua and the Beggar Maid ganhou a primeira medalha na Exposição Internacional de Paris de 1889.

Notabilizou-se não só pelo seu estilo pessoal como por se ter desviado da linha moralista e vocacionada para o catolicismo reator ao anglicanismo dos primeiros pré-rafaelitas. Esta designação proveio do facto do conjunto de pintores que iniciaram o movimento se apoiarem na conceção de trabalho de pintores como os supra mencionados (chamados de primitivos italianos), num esforço de reação ao capitalismo industrial apoiado pela doutrina anglicana, utilizando com o intuito de atingir tal fim técnicas pictóricas simples para captar a "verdade" das coisas. (Daqui)
 

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

"Guerra & Paz" - Poema de Gil de Carvalho



Max Ernst, The Fireside Angel  (The Triumph of Surrealism) / L’ange du foyer
(Le triomphe du surréalisme), 1937.
Oil on canvas, 114 cm x 146 cm.
Private collection

 
[Max Ernst, pintor e escultor alemão, nascido em 1891 e falecido em 1976, foi um dos defensores da irracionalidade na arte. Esteve associado à corrente dadaísta. Dentro desta orientação estética, levou a cabo várias experiências técnicas, como a colagem e a foto-montagem. Foi também um dos criadores do Surrealismo.] (daqui)


Guerra
& Paz



Pedidos sacrifícios, as imagens
Foram trazidas na maré, enxutas.
Treme a escada torpe, e o cão ladra -
São os antepassados, fixos,
Na água das janelas.
Que podemos fazer, o fumo
Entra nas casas é preciso
Uma porta que nos leve ao mar.


Gil de Carvalho

De Fevereiro a Fevereiro,
Lisboa: Centelha, 1987


[Gil de Carvalho (1954, Lisboa) é um escritor, poeta, crítico literário, sinólogo, tradutor e autor de várias obras, incluindo “Uma Antologia de Poesia Chinesa”, publicada em 1989. O livro abarca vários séculos, começando com o Shijing (Livro dos Cantares), considerado o clássico da poesia chinesa, integrando ainda a colecção Chuci (Canções de Chu), datada de cerca de 300 a.C., e obras de poetas da Dinastia Tang, como Du Fu, Li Bai e Wang Wei, continuando até ao século XVIII.

“Os poemas foram transpostos a partir do original, mas com recurso – no meu caso indispensável – a pelo menos uma tradução em línguas ocidentais”, escreveu Gil de Carvalho numa introdução à obra. O autor lançou também em 2004 “Poemas Anónimos – Turcos, Mongóis, Chineses e Incertos”.] (Daqui)

 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

"O Infinito" - Poema de Giacomo Leopardi (3 traduções)



Léo Gausson (1860 - 1944), Les arbres au bord du chemin à Lagny, 1893,
Huile sur carton  



O Infinito 


Cara me foi sempre esta erma colina
E esta sebe, que por diversos lados
O extremo do horizonte veda ao meu olhar.
Mas, sentado e olhando, intermináveis
Espaços para além dela, e sobre-humanos
Silêncios, e sossego profundíssimo
No pensamento imagino; então por pouco
O coração se não sobressalta. E, quando o vento
Nas folhas ouço sussurrar, aquele
Infinito silêncio a esta voz
Vou comparando: e lembro-me do eterno,
E das mortas estações, e da que agora passa
E vive, do seu rumor. Assim no meio
Desta imensidade o pensamento se me afoga:
E naufragar me é doce neste mar. 
 
Tradução de Albano Martins,
em Giacomo Leopardi, Cantos, Apresentação, seleção e notas.
 Vega, Gabinete de Edições, Lisboa, s/d.
 
 [“O Infinito”, de Giacomo Leopardi, foi o poema mais traduzido em Portugal e no Brasil.  Neste breve canto, o poeta exprime o palpitar da imensidade, imaginada como um oceano misterioso onde a alma pensante encontra repouso e onde o tempo se traduz no espaço e este naquele. Trata-se de um fragmento de pura poesia, mais fácil de ser sentida do que explicada. (Daqui)


 
Léo Gausson, Le chemin creux à Gouvernes, 1892,  Huile sur toile
 
 
O Infinito

 
Sempre cara me foi esta erma altura
Com esta sebe que por tanta parte
Do último horizonte a visão exclui.
Sentado aqui, e olhando, intermináveis
Espaços para além, e sobre-humanos
Silêncios, e profunda quietude,
Eu no pensar evoco; onde por pouco
O coração não treme. E como o vento
Ouço gemer nas ervas, eu àquele
Infinito silêncio esta voz
Vou comparando: e sobrevem-me o eterno,
E as idades já mortas, e a presente
E viva, e seu ruído... Assim, por esta
Imensidade a minha ideia desce:
E o naufragar me é doce neste mar.
 
Tradução de Jorge de Sena
em Poesia de 26 Séculos, Antologia, prefácio e notas.
Fora do Texto, Coimbra, 1993.

 
Léo Gausson, Le village dans la verdure, 1892, Huile sur carton
 
 
O Infinito

 
A mim sempre foi cara esta colina
deserta e a sebe que de tantos lados
exclui o olhar do último horizonte.
Mas sentado e mirando, intermináveis
espaços longe dela e sobre-humanos
silêncios, e quietude a mais profunda,
eu no pensar me finjo; onde por pouco
não se apavora o coração. E o vento
ouço nas plantas como rufla, e aquele
infinito silêncio a esta voz
vou comparando: e me recordo o eterno,
e as mortas estações, e esta presente
e viva, e o seu rumor. É assim que nesta
imensidade afogo o pensamento:
e o meu naufrágio é doce neste mar.
 
Tradução Haroldo de Campos
em "A Arte no Horizonte do Provável e outros Ensaios."
Haroldo de Campos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977, p. 192. 

 

Léo Gausson, Les arbres du quai de la Gourdine à Lagny, 1885,
 Huile sur papier / Papier marouflé sur toile
 
 
 
L’Infinito
(poema original)

Sempre caro mi fu quest’ermo colle,
E questa siepe, che da tanta parte
Dell’ultimo orizzonte il guardo esclude.
Ma sedendo e mirando, interminati
Spazi di là da quella, e sovrumani
Silenzi, e profondissima quiete
Io nel pensier mi fingo; ove per poco
Il cor non si spaura. E come il vento
Odo stormir tra queste piante, io quello
Infinito silenzio a questa voce
Vo comparando: e mi sovvien l’eterno,
E le morte stagioni, e la presente
E viva, e il suon di lei. Cosi tra questa
Immensita s’annega il pensier mio:
E il naufragar m’è dolce in questo mare.
 
(1819) 
 
Giacomo Leopardi,
Transcrito de Leopardi, Canti, con uno scritto di Giuseppe Ungaretti, 
Arnaldo Mondadori Editore S.p.A., Milão, 1987.

 
  Giacomo Leopardi (22 anos), retratado por S. Ferrazzi, c. 1820

Giacomo Leopardi nasceu em 1798 na vila de Recanati, nas Marcas, território então pertencente aos Estados Pontifícios. Foi o primeiro dos sete filhos do conde Monaldo, homem de ideais reacionários, arruinado após as invasões napoleónicas, e da marquesa Adelaide Antici, católica fervorosa e governanta da casa. Giacomo, à semelhança dos irmãos Carlo e Paolina, foi educado na «escola doméstica» do pai, ao cuidado dos jesuítas Torres e Sanchini, que lhe forneceram uma sólida formação nos domínios das línguas clássicas, da teologia, da filosofia, e ainda importantes rudimentos na área das ciências. 

Tendo à sua disposição a riquíssima biblioteca paterna, aos dez anos, Giacomo torna-se «senhor dos seus estudos», redigindo os seus primeiros textos em poesia e em prosa, tanto em italiano como em latim, entre os quais se destacam La morte di Ettore, o Inno a Nettuno, as Odae Adespotae e a Storia dell’Astronomia. Ao mesmo tempo, dedica-se à tradução dos clássicos antigos – como a Batracomiomachia, a Ars poetica de Horácio, os idílios de Mosco, as obras de Marco Cornélio Frontão, o segundo livro da Eneida e o poemeto Moretum de Virgílio – e à filologia grega e latina.

Em 1817 entra em contacto com o escritor Pietro Giordani, seu primeiro amigo e admirador. Começa também a trabalhar nos primeiros apontamentos do conjunto que, após publicação póstuma (1898-1900), virá a ser conhecido como Zibaldone (Pensieri di varia filosofia e di bella letteratura), obra que irá ocupar o poeta até 1832. Entre 1817 e 1821, compõe o importante Discorso di un italiano intorno alla poesia romantica (inédito até 1906), e redige os primeiros «idílios», entre os quais Il primo amore e L’infinito, e algumas canções de matriz «civil», como All’Italia, Sopra il monumento di Dante e Ad Angelo Mai. Estes últimos poemas confluirão posteriormente no volume das dez Canzoni (Bolonha: Nobili, 1824). 
 
 Após um período em que se divide entre Bolonha e Milão, publica ainda os Versi (Bolonha: Stamperia delle Muse, 1826) e a primeira edição das Operette morali (Milão: Stella, 1827). Depois de um curto regresso a Recanati, muda-se para Pisa, e a seguir para Florença. Na cidade toscana publica a primeira edição dos Canti (a edição Piatti, em que se juntam algumas composições do volume das Canzoni, parte das que foram recolhidas nos Versi, e mais algumas do período «pisano-recanatese»), iniciando com o jovem Antonio Ranieri o «sodalício» que durará até à morte do poeta.
 
Com Ranieri, Leopardi parte, em setembro de 1833, para Nápoles, cidade onde, à exceção de alguns meses passados na localidade próxima de Torre del Greco, se fixará durante os últimos anos de vida. Datam deste período as novas edições das Operette morali (1834) e dos Canti (Starita, 1835), e ainda a redação do capítulo satírico I nuovi credenti e a organização definitiva do volume dos Pensieri, redigidos e coligidos, muito provavelmente, entre 1831 e 1835, embora tenham ficado inéditos durante a vida do autor.

Leopardi morreu a 14 de junho de 1837, em Nápoles, onde está sepultado. (Daqui)