quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

"Minha tia Alexandrina" - Poema de José Henrique dos Santos Barros


Anna Elizabeth Klumpke (American, 1856-1942), Seated Woman 
with a Red Kerchief, 1886
 
 
 
Minha tia Alexandrina


Minha tia Alexandrina bebia café
meia tigela de manhã e meia de tarde
o que dava mais dum litro.
Com esse rio de fogo correndo no seu corpo
punha ela dez filhos fora de casa
e lavava dez sobrados às senhoras da cidade.

E quando voltava para os Biscoitos na camioneta da carreira
deixava-me nos ouvidos a música das gargalhadas dadas
e nos olhos os demónios dos seus olhos
pretos, estrelas pequeninas fulgurantes.

Não passo pela ilha sem ir aos Biscoitos
não por vê-la, que ela já não está:
(levou-a o Canadá, a carta de chamada)
mas porque tenho consciência que são esplêndidos
os ramos das vinhas que alastram nos calhaus.


José Henrique dos Santos Barros
,
in 'S. Mateus, Outros Lugares e Nomes'
 
 

José Henrique Santos Barros 
 

José Henrique dos Santos Barros nasceu em 1946 em Angra do Heroísmo e faleceu vítima de acidente de viação, em Mérida, Espanha, em maio de 1983, com a sua mulher, a escritora Ivone Chimita.
J. H. Santos Barros viveu a infância e a juventude na ilha Terceira. Após a conclusão de estudos secundários, empregou-se como funcionário público. Anos depois, deu início àquela que viria a ser a «aventura» da sua vida: a poesia, a animação cultural, o suplementarismo e o ensaio literário, o sindicalismo, a literatura. 
A mobilização para a guerra colonial, como furriel miliciano, levou-o a Angola (entre 1969 e 1971, ano em que regressou à sua cidade natal). Foi a partir de então que nele mais se notabilizou uma extraordinária propensão para as coisas da cultura. O seu nome não pode deixar de associar-se a um movimento de renovação inscrito, nos Açores, desde a criação (por Carlos Faria) do suplemento «Glacial», no jornal angrense A União (foi seu coordenador entre 1972 e 1974).

J. H. Santos Barros acreditou na possibilidade de unir numa só frente uma postura de vanguarda ideológica, militante, com a ideia libertária de uma cultura em duplo: popular e de grupo. Com outros intelectuais angrenses, fundou a galeria de artes plásticas «Degrau»; animou cooperativas, sindicatos, rádios e jornais; fundou e dirigiu o suplemento «Cartaz» (nova série, 1972-1974) e a revista A Memória da Água-Viva, de parceria com Urbano Bettencourt (1978-1980). Mas foi no suplemento «Contexto», do jornal Açores (quando, residindo já em Lisboa, de 1979 até a data da sua morte) que mais e melhor sistematizou todo um trabalho de animação e coordenação que se estenderia à crítica, à polémica literária, à ensaística de fundo e até a uma curiosa experiência heteronímica que o levaria a subscrever, com diversos nomes, posições e conceitos propositada e provocatoriamente contraditórios. Foi assim, por exemplo, em relação à controversa questão da existência (ou não) de uma «literatura açoriana», que muito interessou os escritores açorianos da sua geração.

Como poeta, estreou-se aos 18 anos - dando-nos depois folhas, cadernos policopiados, opúsculos e excelentes livros de poemas; como ensaísta literário, interessou-lhe a conjugação da «açorianidade» (expressão sensível do local e do regional insular) com a «universalidade» potencial de toda a Literatura; como contista (autor de alguns dispersos), andou pelos imaginários oníricos e surrealizantes. Deixou inédito um diário (O Aprendiz de Mundos) e raros poemas. No essencial da sua poesia, a fidelidade da radicação aos temas insulares não é de molde a inscrevê-la no tão pouco apreciado apego ao regionalismo da escrita literária; pelo contrário, o regional e o tradicional de J. H. Santos Barros tornam-se matriz e ponto de partida da alternância ilha/Mundo, ora no tom abrasivo de uma «poética do quotidiano», ora na excelência de uma voz erguida à proclamação de versos como estes: «Pregar um prego, lavar pratos, cortar a erva / custa. Mas nunca nada me custou tanto que / carregar um verso das coisas mais difíceis. A fazer / do outro lado da literatura os nós do mundo.»

Obra Poética: (1964), poemas na Novíssima Poesia Açoriana. Angra do Heroísmo, ed. dos autores [com Gil Reis]. (1968), Aventura em Sete Poemas. Lisboa, ed. do autor. (1970), Canto de Abril. Lisboa, Ed. Panorama. (1971), Imagem Fulminante. Angra do Heroísmo, Galeria Gávea. (1913), Testes e Versos Para Andar na Rua. Angra do Heroísmo, Galeria Degrau (ed. a stencil). (1974), Topiária. Angra do Heroísmo, Galeria Degrau (ed. mimeografada). (1976), As Crónicas. Lisboa, ed. do autor (policopiado). (1979), A Humidade. Lisboa, Cooperativa Semente. (1979), Os Alicates do Tempo. Porto, Ed. Afrontamento. (1981), São Mateus, Outros Lugares e Nomes. Lisboa, Ed. Vega.
Obra Ensaística: (1977), 20 Anos de Literatura e Arte nos Açores. Lisboa, ed. do autor. (1981), O Lavrador de Ilhas. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura. (Daqui)


Anna Elizabeth Klumpke, In the Wash-house, 1888, oil on canvas.
Pennsylvania Academy of the Fine Arts


"Por vezes sentimos que aquilo que fazemos não é senão uma gota de água no oceano. Mas o mar seria menor se lhe faltasse uma gota."
 
 
Anna Elizabeth Klumpke, A Moment's Rest, Barbizon, 1891


"Temos de ir à procura das pessoas, porque podem ter fome de pão ou de amizade."
 

Sem comentários: