quinta-feira, 4 de agosto de 2022

"Ando pelas ruas desta incerta cidade" - Poema de Graça Pires

 
Francisco Smith ou Francis Smith (Pintor português, 1881–1961),  
As escadinhas, c. 1934, óleo sobre tela, 73 x 60 cm

 
 
 Ando pelas ruas desta incerta cidade
 
 
Ando pelas ruas desta incerta cidade.
Deixo que o meu olhar
se ajuste ao olhar dos outros.
Entre ruas e rostos há fragmentos de solidão
que denunciam a trágica expressão da vida.
Todos conhecem a oralidade da mudez,
a vigília da revolta, a senha do desdém,
a estranheza de golpes imolando os sonhos.
Eu, com uma fala colada na língua,
somente me consinto
a áspera caligrafia do silêncio. 
 

Graça Pires
,
in 'Uma claridade que cega'
 
 
Francisco Smith ou Francis Smith, Alfama - Lisboa, 1920


[Esta obra emblemática da pintura de Francis Smith e da coleção que o CAM possui do pintor, representa Alfama, um dos bairros populares de  Lisboa
Quando Francis Smith realizou a sua primeira exposição individual em Paris, na Galerie Dewambez, em 1914, as suas preferências apareceram claramente definidas, tanto no plano da técnica como no da escolha dos temas, onde desde logo predominaram as cenas da vida portuguesa.
Para a historiografia de arte francesa, o carácter sentimental e a estrutura arquitetónica das paisagens citadinas de Smith revelam as suas origens portuguesas. Do ponto de vista da historiografia de arte portuguesa, será interessante sublinhar que esta orgânica casa vermelha, em que Smith concentra as suas recordações dos bairros populares, precede a uniformização a amarelo da cidade decretada pela câmara de Lisboa nos anos 1930, com o intuito de pôr “ordem” na sua policromia. Semelhante decisão provocaria a repulsa dos pintores, expressa por Abel Manta em resposta a um inquérito conduzido por Artur Portela na década de 1940 (Rui Mário Gonçalves, catálogo da exposição O Imaginário da Cidade de Lisboa, 1985): «Aquela fina grisaille de madre-pérola, onde sobretudo os brancos eram de uma riqueza de tentar Cézannes, Renoirs, Friezes e Utrillos, levou-as o diabo». (Daqui)]


 
Fotografia de Francis Smith, in Periódico Portugal,
nº 6, Nov-Dez, 1937, p3 (daqui)
 

Francisco Smith
foi um pintor português nascido em 1881, em Lisboa. Estava destinado a seguir a carreira militar, já que o seu pai e o seu avô eram oficiais da Marinha. No entanto, as suas aptidões para o desenho foram detetadas pelos seus primeiros mestres, José Ribeiro Júnior e Constantino Fernandes. Estes aconselharam o pai de Francis Smith a deixá-lo ir aperfeiçoar-se em Paris. Nesta cidade vem a conhecer Eduardo Viana, Emmérico Nunes, Amadeo de Souza-Cardoso, entre outros artistas, depressa se integrando na vida de Montparnasse, acabando mesmo por casar, em 1911, com uma escultora francesa, Yvonne Mortier. Em 1907 o pai de Francis Smith recebe uma carta assinada por muitos artistas portugueses que viviam em Paris, testemunhando o mérito do seu filho. Convencido, o pai passou a oferecer uma pensão que permitiu a Francis Smith dedicar-se inteiramente à sua arte sem grandes preocupações de ordem económica.
Naturalizou-se francês mas permaneceu sentimentalmente muito ligado a Portugal e à família, tornando-se um pintor de recordações da terra em que nasceu. Paisagens, recantos de cidades, cenas populares. No meio das mais diversas pessoas representadas, ou nalgum recanto, aparece com muita frequência, de quadro para quadro, uma figura humana, de fato preto e camisa branca, chapéu inclinado: é a representação do pai do pintor, em homenagem comovida a quem oportunamente o auxiliou.
Com pequenos traços enovelados, com que forma por vezes texturas rendilhadas, surgem desenhos de pedras, de folhagens, de pessoas em suave vibração. A cor é pura, entre o impressionismo e o fauvismo, aproximando-se das conceções de Bonnard. Na sua obra não existe rigidez de contornos mas sim o gosto pelos planos de cor rebatidos, pela utilização de pequenas pinceladas, não para efeitos impressionísticos de luz, mas para tornar mais apetecível o contacto com a matéria, desse modo animada. O lirismo de Francis Smith emana naturalmente da sua bonomia, como homem delicado, discreto, amigo dos seus amigos. Nunca nas suas pinturas se representam dramas, mas ambientes moderadamente festivos, uma vida quotidiana feita de doçura e serenidade. 
Francis Smith morreu em Paris em 1961, cidade onde se formou a Association des Amis de Francis Smith, em 1962, que lhe organizou uma exposição retrospetiva da sua obra no Musée Galliéra (1963) e todos os anos atribui um Prémio Smith. (Daqui)
 
 

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