terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

"Indução" - Poema de Fernando Namora


 
Paul Cornoyer (American painter, 1864-1923), Winter in New York, 1901



Indução


Há em todas as coisas
a marca estranha
da minha presença.

Sons, palavras, imagens,
tudo eu desfiguro e torno falso.

As pessoas, à minha volta,
deslizam vagamente como sonâmbulos
- fantoches ocos de lenda...

Os sons,
se logram atravessar portas e janelas,
partem-se
no lajedo frio dos meus olhos.

Vai-se o sol
Onde o meu pensamento das trevas se poisa. 

Oh! as minhas ilusões de claridade!


Fernando Namora
, in 'Relevos'  
(Coimbra, 1937)


Paul Cornoyer, "After the Rain, Gloucester", c. 1920, oil on canvas, 
Widener University Collection.
 

“Nesses tempos de céus de cinzas e chumbos, nós precisamos de árvores desesperadamente verdes.” 
 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

"Tanto silêncio" - Poema de Manuel António Pina

 
Jimmy Ernst (American painter born in Germany, 1920-1984), Interior and Silence, 1967
 

 
Tanto silêncio 


Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois.
E entre mim eu, isto é, palavras,
formas indecisas
procurando um eixo que
lhes dê peso, um sentido capaz de conter
a sua inocência
uma voz (uma palavra) a que se prender
antes de se despedaçarem
contra tanto silêncio.
São elas, as tuas palavras, quem diz "eu";
se tiveres ouvidos suficientemente privados
podes escutar o seu coração
pulsando sob a palavra da tua existência,
entre o para cá de ti e o para lá de ti.
Tu és aquilo que as tuas palavras ouvem,
ouves o teu coração (as tuas palavras "o teu coração")?


Manuel António Pina
, in "Os livros", 
Assirio & Alvim, 2003
 
 
Jimmy Ernst, Recollections and Silence, 1962


Em grandes silêncios
tomava mais meu afeto
sorrateiramente
 

Capa do livro
'Ouvir o silêncio'
 
 
Súbito um suspiro
da moça silenciosa
estrela cadente 
 
 
[Carlos Viegas nasceu em Pitangui (MG), em 25 de abril de 1951. Poeta de haicai, médico, mestre e doutor em Pneumologia e Medicina do Sono, professor da UnB. 
Livros: O caminho do olhar (Coletânea de 100 haicais), 2014; Ouvir o silêncio (Coletânea de 84 haicais), 2016; Catadores de paina (Coletânea de 112 haicais), 2018; Flor do cerrado (Coletânea de 100 haicais), 2019; Hai-kais Transrosianos (Coletânea de 51 haicais), 2021; Haicais para Diadorim (Coletânea de 128 haicais), 2022.]

domingo, 19 de fevereiro de 2023

"Orgulho da serenidade" - Poema de Jorge Luis Borges

 
Charles Demuth (American, 1883–1935), Chimney and Water Tower, 1931,
 
 

Orgulho da serenidade


Escritas de luz investem pela sombra, mais prodigiosas do que meteoros.
A alta cidade irreconhecível cresce sobre o campo.
Certo da minha vida e da minha morte, olho os ambiciosos e queria
entendê-los.
O seu dia é ávido como o laço no ar.
A sua noite é a trégua da ira no ferro, rápido ao atacar.
Falam de humanidade.
A minha humanidade está em sentir que somos vozes da mesma penúria.
Falam de pátria.
A minha pátria é um ganido de guitarra, alguns retratos e uma velha espada,
a clara prece do salgueiral nos entardeceres.
O tempo está a viver-me.
Mais silencioso do que a minha sombra, cruzo o tropel da sua excitada cobiça.
Eles são imprescindíveis, únicos, merecedores do amanhã.
O meu nome é alguém e qualquer um.
Passo com lentidão, como quem vem de tão longe que não espera chegar.


Jorge Luis Borges
,

Obras Completas
 1923-1949, vol. 1. Lua Defronte (1925)
Editorial Teorema, 1998