sexta-feira, 9 de agosto de 2024

"No mundo há muitas armadilhas" - Poema de Ferreira Gullar



Albert Edelfelt (Finnish-Swedish painter, 1854 - 1905), At Sea, 1883.



No mundo há muitas armadilhas


No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha.

Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Troia
há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
(e depois foi traído, preso, enforcado).

No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca.
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
que a vida é louca?

Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
que não sabe
que afoito se entranha à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga.

A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade.

Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e aguentarás até o fim.

O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje.

A estrela mente
o mar sofisma. De facto,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los.
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las.”


Ferreira Gullar
, Dentro da Noite Veloz, 1975.

 

Ferreira Gullar, "Dentro da Noite Veloz"
 Companhia das Letras, 2018
 
 
Resumo

 
Lançado em 1975, este volume de poemas de Ferreira Gullar é marcado pela intensa carga política.
Ao aliar excecional qualidade literária e aguda preocupação com as questões sociais, Dentro da noite veloz é um livro altamente engajado. Em poemas célebres como "Não há vagas" e "Homem comum", Ferreira Gullar, em tom questionador e inquieto, denuncia a realidade cruel e desigual do país.
No prefácio a esta edição, Armando Freitas Filho aponta: "É isso que este livro imenso nos mostra: a vida, a aventura, o perigo do universo que nos convida para a peripécia existencial de cada um de nós. Ninguém melhor que Ferreira Gullar para nos fazer viver e morrer, com sua experiência humana e destemida que passa dentro dessa noite feroz e veloz, sempre a postos para uma nova e — se necessário for — combativa manhã". (daqui)
 

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