Soneto do Desmantelo Azul
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
Carlos Pena Filho, in "Livro Geral", 1959
"Educai as crianças e não será preciso punir os homens." (Pitágoras - filósofo e matemático grego)
sábado, 28 de setembro de 2024
"Soneto do Desmantelo Azul" - Poema de Carlos Pena Filho
Felice Casorati (Italian painter, sculptor, and printmaker, 1883–1963), Marina, 1931
sexta-feira, 27 de setembro de 2024
"A gata" - Poema de Francisco Umbral
Bruno Liljefors (Swedish wildlife painter, 1860 –1939), Cat on flowerbed, 1887.
A gata
A gata apanha peixe quando pode.
Peixe roubado, porque é uma ladra.
Se não, não seria gata, nem tão hábil.
A gata dorme ao sol, dorme à sombra,
ou sobre o grande louceiro da sala.
A gata é um sistema de defesa,
olhos que veem crescer a erva
quando não há erva nenhuma
nem nada que cresça.
A gata abana o rabo,
radar de veludo,
controlando a noite que deixa atrás de si.
Dormiu dez sóis sucessivos
e agora estrangula urracas em copas de árvores,
tão ágil que amedronta,
e emana no escuro a sua luz roubada.
Amo a minha gata, que é mimada,
vigio-lhe as garras criminosas
e ela esconde as unhas,
inocente,
como uma imperatriz que guarda a sua adaga.
A minha gata tem muita biografia,
os animais nunca se aborrecem,
mas também não sonha fantasias,
embora beba, pouco a pouco, o cloro verde
da imensa piscina que a olha,
e depois, junto a mim, vê televisão,
e volta a dormir mais vinte horas.
Francisco Umbral, Obra Poética (1981-2001),
Tradução de Carlos Vaz Marques
Escritor, jornalista e ensaísta espanhol, Francisco Umbral, nascido a 11 de maio 1932, em Madrid,
e falecido na mesma cidade a 28 de agosto de 2007, é autor de uma vasta
obra literária que lhe proporcionou distinções como o Prémio Príncipe
das Astúrias e o Prémio Cervantes.
Na infância viveu em Valladolid e entrou muito tarde para a escola. Aos dez anos, foi expulso por mau comportamento e não retomou os estudos institucionais, tendo começado a trabalhar aos 14 anos. No entanto, por ter um grande interesse na leitura, acabou por se revelar um autodidata.
Entretanto, ainda em Valladolid começou a escrever artigos para a revista Cisne, assim como a assistir a sessões de poesia e a conferências. Aos 26 anos, deu início à sua carreira de jornalista no El Norte de Castela, passando depois pela rádio La Voz de León e pelos jornais Proa e El Diário de León.
Em 1961, mudou-se para Madrid, onde conheceu o escritor Camilo José Cela, graças ao qual veio a publicar os seus primeiros livros. Da sua vasta obra destacam-se livros como Mortal e Rosa, E Como Eram as Ligas de Bovary? e Madrid, editados em Portugal, assim como Las Ninfas, El Carnívoro Cuchillo, Trilogía de Madrid, La Leyenda del César Visionário e El Hijo de Greta Garbo.
Umbral dedicou-se igualmente a escrever ensaios biográficos e literários sobre autores famosos, como Federico Garcia Lorca e Lord Byron.
Paralelamente escreveu em diversas publicações, destacando-se as crónicas no El País, Diario 16 e El Mundo. Grande parte das suas crónicas foi posteriormente reunida em diversas coletâneas.
Em 1981, tentou a poesia com a obra Crímenes y baladas e, quatro anos mais tarde, começou a lançar uma série de obras sobre os feitos mais importantes da história de Espanha do século XX.
Ao longo da sua carreira, Umbral ganhou diversos galardões literários e de jornalismo, entre os quais se destacam o Prémio Nadal de 1975, com Las Ninfas, o Prémio Príncipe das Astúrias de Literatura de 1996, o Prémio Nacional das Letras Espanholas em 1997 e o Prémio Cervantes em 2000.
Francisco Umbral morreu a 28 de agosto de 2007, com 75 anos, num hospital de Madrid, com uma falha cardiorrespiratória. (daqui)
Na infância viveu em Valladolid e entrou muito tarde para a escola. Aos dez anos, foi expulso por mau comportamento e não retomou os estudos institucionais, tendo começado a trabalhar aos 14 anos. No entanto, por ter um grande interesse na leitura, acabou por se revelar um autodidata.
Entretanto, ainda em Valladolid começou a escrever artigos para a revista Cisne, assim como a assistir a sessões de poesia e a conferências. Aos 26 anos, deu início à sua carreira de jornalista no El Norte de Castela, passando depois pela rádio La Voz de León e pelos jornais Proa e El Diário de León.
Em 1961, mudou-se para Madrid, onde conheceu o escritor Camilo José Cela, graças ao qual veio a publicar os seus primeiros livros. Da sua vasta obra destacam-se livros como Mortal e Rosa, E Como Eram as Ligas de Bovary? e Madrid, editados em Portugal, assim como Las Ninfas, El Carnívoro Cuchillo, Trilogía de Madrid, La Leyenda del César Visionário e El Hijo de Greta Garbo.
Umbral dedicou-se igualmente a escrever ensaios biográficos e literários sobre autores famosos, como Federico Garcia Lorca e Lord Byron.
Paralelamente escreveu em diversas publicações, destacando-se as crónicas no El País, Diario 16 e El Mundo. Grande parte das suas crónicas foi posteriormente reunida em diversas coletâneas.
Em 1981, tentou a poesia com a obra Crímenes y baladas e, quatro anos mais tarde, começou a lançar uma série de obras sobre os feitos mais importantes da história de Espanha do século XX.
Ao longo da sua carreira, Umbral ganhou diversos galardões literários e de jornalismo, entre os quais se destacam o Prémio Nadal de 1975, com Las Ninfas, o Prémio Príncipe das Astúrias de Literatura de 1996, o Prémio Nacional das Letras Espanholas em 1997 e o Prémio Cervantes em 2000.
Francisco Umbral morreu a 28 de agosto de 2007, com 75 anos, num hospital de Madrid, com uma falha cardiorrespiratória. (daqui)
Bruno Liljefors, Cat hunting Birds, 1883, Gothenburg Museum of Art.
"Acredito que gatos são espíritos vindos para a Terra. Tenho certeza de que um gato andaria nas nuvens sem cair."
"Sempre me dá um calafrio quando eu vejo um gato que vê o que eu não posso ver."
Eleanor Farjeon, Faithful Jenny Dove: and other illusions - Página 57.
Publicado por M. Joseph, 1963 - 159 páginas.
quinta-feira, 26 de setembro de 2024
"Requiem" - Poema de Cristovam Pavia
Paul Cézanne (French Post-Impressionist painter, 1839–1906),
The Boy in the Red Vest, 1888-1890, Oil on Canvas.
Requiem
(ao menino morto, eu próprio)
A tarde declina com uma luz ténue.
Estou grave e calmo. E não preciso de ninguém
Nem a luz da tarde me comove: entendo-a.
Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo.
Os ventos rodam, rodam, gemem e cantam
E voltam. São os mesmos.
Como os conheço desde a infância!
E a terra húmida das tapadas da quinta...
O estrume da égua morta quando eu tinha seis anos
Gira transparente nesta brisa fria...
(Na noite gotas de orvalho sumiam-se sob as folhas das ervas)
Oh, não há solidão, nas neblinas de inverno
Pela erma planície...
E foi engano julgar-te morto e tão só nas tapadas em silêncio...
Agora sei que vives mais
Porque começo a sentir a tua presença, grande como o silêncio...
Já me não vem a vaga tristeza do teu chamamento longínquo
Já me confundo contigo.
Cristóvam Pavia ou Cristovam Pavia, 35 poemas
(Pseudónimo de Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho)
quarta-feira, 25 de setembro de 2024
"Diz-me tudo" - Poema de Nuno Júdice
Harald Slott-Møller (Danish painter and ceramist, 1864 –1937), Summer Day, 1888.
Models: Danish painters Agnes Slott-Møller (1862–1937) and Marie Krøyer (1867–1940).
Models: Danish painters Agnes Slott-Møller (1862–1937) and Marie Krøyer (1867–1940).
Diz-me tudo
Há uma regra inflexível no amor: o seu horizonte
tem a vastidão do mar, para lá do qual outros
horizontes se abrem se o muro, ao longo da
praia, não impuser os seus limites a quem
deseja a viagem. O espírito, porém, seguindo
um rumo platónico, voa sobre as ondas,
afastando-se da apressada respiração das marés;
e é no alto, onde se confundem nuvens e
gaivotas, que o olhar descobre a imensidão
do oceano para que o sentimento o empurra,
se não houver pela sua frente um porto,
ou uma ilha, que ponham fim à navegação.
Mas estas são apenas as convenções que
obrigam a imaginação; porque se o amor se
libertar das palavras que o oprimem, dando
ao corpo a mesma plenitude que se encontra
neste mar, está aberto o caminho para o abismo
em que o ser se dilui no puro espaço, onde
só o azul existe. Então, os dedos tocam
o teclado do infinito, e ouvir-se-á a música
dos murmúrios que nenhum ouvido recebe
se os sons da terra o magoam. E é como
se o dia durasse, para além do tempo e
das coisas da vida, até ao fim do mundo.
Nuno Júdice, "A Pura Inscrição do Amor", 2018
Nuno Júdice, "A Pura Inscrição do Amor"
Ano de Edição / Impressão: 2018
Publicações Dom Quixote
SINOPSE
"A Pura Inscrição do Amor" reúne poemas que Nuno Júdice escreveu ao longo dos anos e que são dedicados a este tema.
Nele se incluem, a abrir, os conjuntos de poemas "Pedro, Lembrando Inês" e "Carta de Orfeu a Eurídice", ambos publicados em simultâneo em Abril de 2001 sob o título "Pedro, Lembrando Inês", que se encontrava esgotado há muito tempo.
Os poemas reunidos em "Novo Tratado de Pintura" são inéditos em Portugal embora alguns deles tenham sido publicados na Colômbia, em 2014, sob o título, "Breve Tratado de Pintura" (Frailejón Editores).
Por sua vez, "Cântico" teve uma edição em livro de artista em Espanha, em 2015, sob o título "Cântico dos Cânticos" (versão livre), com ilustrações do pintor Pedro Castrortega (Segundo Santos Ediciones).
Em ambos os casos, esta é a sua primeira edição em Portugal.
O poema "A Mulher Deitada", que fecha o livro, é inédito.
Um belíssimo livro para ler, oferecer e guardar. (daqui)
Georg Brandes
Crítico e estudioso dinamarquês, Georg Morris Cohen Brandes nasceu a 4 de fevereiro de 1842, em Copenhaga. Oriundo de uma família da classe média judaica, não foi contudo educado no ambiente religioso que é característico deste grupo étnico.
Estudou na Universidade de Copenhaga, resolvendo nesse período da sua
vida uma crise de valores com que se havia deparado ao tomar
conhecimento com a obra de Kierkegaard. Recebeu o seu diploma em
Estética em 1964, tornando-se depois leitor e crítico de teatro.
Publicou os seus primeiros escritos em Æsthetiske Studier (1868, Estudos Estéticos) e Kritiker Og Portraiter (1870). Em 1870 apresentou a sua tese de doutoramento, dedicada ao tema da Estética francesa, com especial incidência no pensamento de Taine, que o havia deslocado da Filosofia hegeliana, mas mantendo a opinião de que o génio não era uma manifestação do Zeitgeist, o espírito dos tempos.
A 3 de novembro de 1871 começou a apresentar um ciclo de conferências que marcaram profundamente os meios culturais dinamarqueses e escandinavos. Neste ciclo, intitulado Høvedstrømminger I Det 19De Aarhundredes Litteratur, e publicado posteriormente em seis volumes entre 1872 e 1887, Brandes afirmava que a Dinamarca estava cerca de quarenta anos atrasada em relação ao resto da Europa, defendendo portanto uma orientação para o modernismo na reforma da sociedade. Mal acolhidas nos círculos conservadores, trouxeram a Brandes uma reação hostil, que se manifestou na destituição da cadeira de Estética na Universidade de Estocolmo, que lhe havia sido prometida. Entre 1870 e 1871 Brandes havia viajado pela Europa, tendo visitado a Inglaterra, a Itália e a França, deixando-se impressionar pelo clima mediterrânico e pela arte renascentista.
De 1874 a 1877 publicou a revista Det Nittende Aahundrede, em parceria com o seu irmão Edvard Brandes e, com o fracasso desta publicação, abandonou a Dinamarca para ir viver para Berlim, onde esteve durante cinco anos. Aí preparou a gestação do pensamento a que os filósofos iriam chamar de Brandesianismo. Publicou, durante este período, monografias, de que se destacam Benjamin Disraëli (1879) e Ferdinand Lassalle (1881).
Tornando-se a figura de vanguarda do movimento naturalista da literatura escandinava, e estabelecendo contacto com nomes com August Strindberg, Henrik Ibsen e Bjørnstjerne Bjørnson, teve discípulos significativos, como Jens Peter Jacobsen.
Em 1888, num outro ciclo de conferências, apresentou a sua interpretação do pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que o desprezou. Brandes considerava os génios como os melhores produtos de uma civilização avançada. Publicou biografias de grandes figuras históricas, como William Shakespeare, Goethe, Voltaire, Júlio César e Michelangelo.
Na fase final da sua vida viajou extensivamente. Foi-lhe dada uma cadeira na Universidade de Copenhaga, em reconhecimento pelos seus trinta anos de serviço. Manteve-se, porém, uma figura controversa quando se opôs à Primeira Grande Guerra e professou o seu ceticismo religioso. Recebeu, portanto, protestos com a publicação de Sagnet Om Jesus (1925).
Faleceu a 19 de fevereiro de 1927. (daqui)
Publicou os seus primeiros escritos em Æsthetiske Studier (1868, Estudos Estéticos) e Kritiker Og Portraiter (1870). Em 1870 apresentou a sua tese de doutoramento, dedicada ao tema da Estética francesa, com especial incidência no pensamento de Taine, que o havia deslocado da Filosofia hegeliana, mas mantendo a opinião de que o génio não era uma manifestação do Zeitgeist, o espírito dos tempos.
A 3 de novembro de 1871 começou a apresentar um ciclo de conferências que marcaram profundamente os meios culturais dinamarqueses e escandinavos. Neste ciclo, intitulado Høvedstrømminger I Det 19De Aarhundredes Litteratur, e publicado posteriormente em seis volumes entre 1872 e 1887, Brandes afirmava que a Dinamarca estava cerca de quarenta anos atrasada em relação ao resto da Europa, defendendo portanto uma orientação para o modernismo na reforma da sociedade. Mal acolhidas nos círculos conservadores, trouxeram a Brandes uma reação hostil, que se manifestou na destituição da cadeira de Estética na Universidade de Estocolmo, que lhe havia sido prometida. Entre 1870 e 1871 Brandes havia viajado pela Europa, tendo visitado a Inglaterra, a Itália e a França, deixando-se impressionar pelo clima mediterrânico e pela arte renascentista.
De 1874 a 1877 publicou a revista Det Nittende Aahundrede, em parceria com o seu irmão Edvard Brandes e, com o fracasso desta publicação, abandonou a Dinamarca para ir viver para Berlim, onde esteve durante cinco anos. Aí preparou a gestação do pensamento a que os filósofos iriam chamar de Brandesianismo. Publicou, durante este período, monografias, de que se destacam Benjamin Disraëli (1879) e Ferdinand Lassalle (1881).
Tornando-se a figura de vanguarda do movimento naturalista da literatura escandinava, e estabelecendo contacto com nomes com August Strindberg, Henrik Ibsen e Bjørnstjerne Bjørnson, teve discípulos significativos, como Jens Peter Jacobsen.
Em 1888, num outro ciclo de conferências, apresentou a sua interpretação do pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que o desprezou. Brandes considerava os génios como os melhores produtos de uma civilização avançada. Publicou biografias de grandes figuras históricas, como William Shakespeare, Goethe, Voltaire, Júlio César e Michelangelo.
Na fase final da sua vida viajou extensivamente. Foi-lhe dada uma cadeira na Universidade de Copenhaga, em reconhecimento pelos seus trinta anos de serviço. Manteve-se, porém, uma figura controversa quando se opôs à Primeira Grande Guerra e professou o seu ceticismo religioso. Recebeu, portanto, protestos com a publicação de Sagnet Om Jesus (1925).
Faleceu a 19 de fevereiro de 1927. (daqui)
terça-feira, 24 de setembro de 2024
"É ela! É ela!" - Poema de Álvares de Azevedo
É ela! É ela!
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
e o eco ao longe murmurou — é ela!
Eu a vi... minha fada aérea e pura —
a minha lavadeira na janela.
Dessas águas furtadas onde eu moro
eu a vejo estendendo no telhado
os vestidos de chita, as saias brancas;
eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido,
nas telhas que estalavam nos meus passos,
ir espiar seu venturoso sono,
vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso...
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
um bilhete que estava ali metido...
Oh! decerto... (pensei) é doce página
onde a alma derramou gentis amores;
são versos dela... que amanhã decerto
ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! é ela! — repeti tremendo;
mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim tão bela... eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
É ela! é ela, meu amor, minh'alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!
e o eco ao longe murmurou — é ela!
Eu a vi... minha fada aérea e pura —
a minha lavadeira na janela.
Dessas águas furtadas onde eu moro
eu a vejo estendendo no telhado
os vestidos de chita, as saias brancas;
eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido,
nas telhas que estalavam nos meus passos,
ir espiar seu venturoso sono,
vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso...
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
um bilhete que estava ali metido...
Oh! decerto... (pensei) é doce página
onde a alma derramou gentis amores;
são versos dela... que amanhã decerto
ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! é ela! — repeti tremendo;
mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim tão bela... eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
É ela! é ela, meu amor, minh'alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!
segunda-feira, 23 de setembro de 2024
"As aves migram em setembro" - Poema de Vasco Graça Moura
William Anderson Coffin (American painter and art critic, 1855–1925),
September, c. 1907, Smithsonian American Art Museum.
As aves migram em setembro
as aves migram em setembro.
nem vou com elas, nem
guardo delas
a mínima memória.
escurece mais cedo,
o tempo não se rouba,
escoa-se como o frio
por uma camisola
até dentro da pele.
as aves migram
calmamente, eu
permaneço aqui
de guarda à água lisa
nem vou com elas, nem
guardo delas
a mínima memória.
escurece mais cedo,
o tempo não se rouba,
escoa-se como o frio
por uma camisola
até dentro da pele.
as aves migram
calmamente, eu
permaneço aqui
de guarda à água lisa
que viu passar seus bandos
e em que hás de
e em que hás de
William Anderson Coffin, Summer, c. 1890.
Recomendação
Neste botânico setembro,
que pelo menos você plante
com eufórica
emoção ecológica
num pote de plástico
uma flor de retórica.
Carlos Drummond de Andrade,
in Discurso de Primavera e Algumas Sombras, 1977
domingo, 22 de setembro de 2024
"Voz do Outono" - Poema de Antero de Quental
Anna Ancher (Danish artist associated with the Skagen Painters, 1859–1935),
The pear tree in Ancher's front garden, autumn, Unknown date.
Voz do Outono
Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
- "Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,
Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel devesa,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!
Mais valera à tua alma visionária
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,
(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com ódio e raiva e dor... que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!" -
Antero de Quental, in Sonetos
The pear tree in Ancher's front garden, autumn, Unknown date.
Voz do Outono
Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
- "Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,
Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel devesa,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!
Mais valera à tua alma visionária
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,
(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com ódio e raiva e dor... que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!" -
Antero de Quental, in Sonetos
Anna Ancher (Danish artist associated with the Skagen Painters, 1859–1935),
Pear Tree in Front Yard, Unknown date.
Pear Tree in Front Yard, Unknown date.
Outono
Manhã de outono
o verde do mar
também amarela.
sábado, 21 de setembro de 2024
"Obsessão" - Poema de Francisco Bugalho
Dentro de mim canta, intenso,
Um cantar que não é meu:
Cantar que ficou suspenso,
Cantar que já se perdeu.
Onde teria eu ouvido
Esta voz cantar assim?
Já lhe perdi o sentido:
Cantar que passa perdido,
Que não é meu estando em mim.
Depois, sonâmbulo, sonho:
Um sonho lento, tristonho,
De nuvens a esfiapar...
E, novamente, no sonho
Passa de novo o cantar...
Sobre um lago, onde em sossego
As águas olham o céu,
Roça a asa de um morcego...
E ao longe o cantar morreu.
Onde teria eu ouvido
Esta voz cantar assim?
Já lhe perdi o sentido...
E este cenário partido
Volta a voltar, repetido,
E o cantar recanta em mim.
Um cantar que não é meu:
Cantar que ficou suspenso,
Cantar que já se perdeu.
Onde teria eu ouvido
Esta voz cantar assim?
Já lhe perdi o sentido:
Cantar que passa perdido,
Que não é meu estando em mim.
Depois, sonâmbulo, sonho:
Um sonho lento, tristonho,
De nuvens a esfiapar...
E, novamente, no sonho
Passa de novo o cantar...
Sobre um lago, onde em sossego
As águas olham o céu,
Roça a asa de um morcego...
E ao longe o cantar morreu.
Onde teria eu ouvido
Esta voz cantar assim?
Já lhe perdi o sentido...
E este cenário partido
Volta a voltar, repetido,
E o cantar recanta em mim.
in "Margens"
Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), Amanhecer no Alentejo.
"Um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi o de poder dizer deste livro, quando terminasse: 'Isto é um livro sobre o Alentejo'."
Citado em "José Saramago: il bagaglio dello scrittore" - Página 41, de Giulia Lanciani.
Publicado por Bulzoni, 1996 - 256 páginas.
sexta-feira, 20 de setembro de 2024
"Lição" - Poema de Ivan Junqueira
Manuel Henrique Pinto (Pintor português, 1852 - 1912), À Porta do Convento -
Lição
À beira do claustro
o monge se inclina
e na pedra aprende
o que a pedra ensina:
que a vida é nada
com a morte por cima,
que o tempo apenas
este fim lhe adia
e que o ser carece
de não ser ainda,
pois à luz se esquiva
do que o purifica:
a doce pedra,
sem musgo ou limo,
o pátio só,
conquanto o sino,
o ermo das coisas
simples e humildes.
o monge se inclina
e na pedra aprende
o que a pedra ensina:
que a vida é nada
com a morte por cima,
que o tempo apenas
este fim lhe adia
e que o ser carece
de não ser ainda,
pois à luz se esquiva
do que o purifica:
a doce pedra,
sem musgo ou limo,
o pátio só,
conquanto o sino,
o ermo das coisas
simples e humildes.
(Jornalista, poeta e crítico literário brasileiro, 1934 - 2014)
Manuel Henrique Pinto, Convento de Figueiró dos Vinhos, 1905.
À nossa vida
A morte alheia
Dá outra partida.
Millôr Fernandes, Hai-kais,
Porto Alegre: L&PM, 1997.
O hai-kai foi criado no Japão e é, por definição, um pequeno poema composto de três versos, e não possui rima, que foi acrescentada nas suas versões ocidentais. Este tipo de verso popularizou-se no século XVII com Bashô.
Millôr Fernandes recriou o hai-kai e adaptou-o ao dia-a-dia, (olha,/ entre um pingo e outro/ a chuva não molha) tornando-o uma das suas mais conhecidas formas de expressão. Neste livro foram reunidos alguns hai-kais criados entre 1959 e 1986. Segundo o ancestral método japonês, os versos têm uma ilustração que lhes traduz ou interpreta. (daqui)
domingo, 15 de setembro de 2024
"Carta de Guia" - Poema de Sebastião da Gama
Carta de Guia
Mesmo com este calor eu quero ir.
Aos tropeções, aos bordos, de qualquer maneira,
porque há pessoas que estão à minha espera
e que nasceram pra eu me importar com elas.
Há vinte e dois anos que estou a falar de mim
e hei de falar de mim a vida inteira:
tanta coisa que eu tenho para dizer,
e passar ao papel!
A anatomia da minha alma, principalmente,
que há de ficar escrita,
pra que vejam como é esquisito um homem por dentro.
Mesmo com este calor eu quero ir.
Aos tropeções, aos bordos, de qualquer maneira,
porque há pessoas que estão à minha espera
e que nasceram pra eu me importar com elas.
Há vinte e dois anos que estou a falar de mim
e hei de falar de mim a vida inteira:
tanta coisa que eu tenho para dizer,
e passar ao papel!
A anatomia da minha alma, principalmente,
que há de ficar escrita,
pra que vejam como é esquisito um homem por dentro.
Mas agora, neste momento,
e noutros iguaizinhos a este,
ponho de parte o binóculo com que me espreito
e graças ao qual tudo o que em mim é pequeno me parece grande
e vou pra frente, apesar do calor,
apesar de ir como um bêbado.
Há mãos estendidas, lábios secos.
Casas aonde o Sol tem pudor de entrar, de tão infectas.
Aonde Deus taparia o nariz, se chegasse à porta.
Quando as palavras são como pensos de linho,
não há nada melhor para a alma, feita de carne em chaga de um homem.
Por isso é que vou indiferente a este calor de Junho.
O binóculo fica à espera.
Eu fico à espera.
Largo barcos e redes,
não aconteça que os outros todos que estão à minha espera
tenham morrido já, quando eu chegar,
ou já não tenham ouvidos para as minhas palavras,
nem lábios que percebam
a frescura de água que eu levar...
Sebastião da Gama, in Itinerário Paralelo
Dominando e vigiando silenciosamente a cidade do Lis que se estende a seus pés, o castelo medieval de Leiria
foi edificado no topo de uma luxuriante e íngreme colina, constituindo
um conjunto de rara beleza entre património construído e paisagem
natural.
Para além da sua função militar, o castelo de Leiria integra, de forma soberba, uma ala do antigo Palácio de D. Dinis e acolhe ainda as ruínas da sua igreja gótica.
Os primórdios deste castelo - no período anterior à fundação de Portugal - encontram-se envoltos em bruma e esquecimento, dado que escassos ou nenhuns vestígios desse tempo sobreviveram até aos nossos dias.
Para além da sua função militar, o castelo de Leiria integra, de forma soberba, uma ala do antigo Palácio de D. Dinis e acolhe ainda as ruínas da sua igreja gótica.
Os primórdios deste castelo - no período anterior à fundação de Portugal - encontram-se envoltos em bruma e esquecimento, dado que escassos ou nenhuns vestígios desse tempo sobreviveram até aos nossos dias.
Com efeito, no contexto das guerras da Reconquista do século XII, Leiria surgia como ponto-chave da estratégia militar de defesa da fronteira sul do Condado Portucalense. Este castelo situava-se numa área de permanentes sobressaltos, zona onde a guerra entre o Islão e o mundo cristão marcava o quotidiano das inseguras povoações localizadas a sul do Rio Mondego.
Ainda príncipe e jovem, D. Afonso Henriques conquista Leiria e o seu castelo aos Mouros. Pouco depois, em 1135, uma notícia informa que a fortaleza estava a ser erguida de raiz. Defendido por uma guarnição comandada pelo cavaleiro Paio Guterres, o castelo leiriense seria alvo, dois anos mais tarde, de um impiedoso assalto das tropas almóadas. Sem o auxílio de D. Afonso Henriques, em pleito na Galiza, Paio Guterres abandona o castelo, após feroz e sangrenta resistência.
O castelo de Leiria iria mudar de mãos ainda por mais duas vezes, colocado definitivamente sob as armas cristãs nos alvores da nacionalidade portuguesa. Em 1144, o castelo é restaurado, ao mesmo tempo que a sua guarnição era reforçada.
Entretanto, Leiria desenvolvia-se e viria a receber carta de foral, sendo-lhe igualmente concedido o título de vila. D. Sancho I confirmaria este estatuto através de novo foral, atribuído cerca de 50 anos depois. Por outro lado, as muralhas estendiam o seu manto protetor às novas áreas da urbe românica.
O castelo de Leiria torna-se importante nas Cortes de 1254, mandadas convocar por D. Afonso III. A parte residencial do Paço Real, que sofreu melhoramentos significativos, assume maior protagonismo no tempo de D. Dinis - altura em que este soberano e sua mulher, a Rainha Santa Isabel, elegem o castelo de Leiria como uma das suas residências sazonais.
Da reforma românica ao tempo de D. Sancho I subsistem ainda partes da barbacã e da cerca amuralhada, reforçada por torres de vigia.
No centro ergue-se o núcleo mais forte e imponente, sob o ponto de vista de defesa militar, destacando-se a poderosa Torre de Menagem, dividida em três andares e coroada por ameias quadrangulares, obra pertencente ao período de D. Dinis.
Debruçada sobre a cidade e solidamente assente na muralha exterior avulta a graciosa Loggia do Paço Real, constituída pelos seus oito belos arcos do gótico ogival - obra que foi reconstruída neste século pelo arquiteto Ernesto Korrodi. Este Paço Real é composto por corpo central de três pisos, ladeado por torreões com arcadas e cobertos por telhados. Interiormente, a clareza dos seus salões reflete uma certa simplicidade de formas e uma grandeza de espaços.
Os panos de muralha, com as suas torres defensivas, ocultam no seu interior outra das preciosidades da Leiria Medieval: a arruinada Igreja de Nossa Senhora da Pena, singular obra religiosa do gótico trecentista, ostentando um singelo portal ogival de cinco arquivoltas apoiadas em belos colunelos. A abside ainda resiste e mostra a sua cobertura de abóbadas nervuradas. Os panos laterais da capela-mor são rasgados por frestas ogivais de dois lumes, encimadas por quadrifólios. (daqui)
Ainda príncipe e jovem, D. Afonso Henriques conquista Leiria e o seu castelo aos Mouros. Pouco depois, em 1135, uma notícia informa que a fortaleza estava a ser erguida de raiz. Defendido por uma guarnição comandada pelo cavaleiro Paio Guterres, o castelo leiriense seria alvo, dois anos mais tarde, de um impiedoso assalto das tropas almóadas. Sem o auxílio de D. Afonso Henriques, em pleito na Galiza, Paio Guterres abandona o castelo, após feroz e sangrenta resistência.
O castelo de Leiria iria mudar de mãos ainda por mais duas vezes, colocado definitivamente sob as armas cristãs nos alvores da nacionalidade portuguesa. Em 1144, o castelo é restaurado, ao mesmo tempo que a sua guarnição era reforçada.
Entretanto, Leiria desenvolvia-se e viria a receber carta de foral, sendo-lhe igualmente concedido o título de vila. D. Sancho I confirmaria este estatuto através de novo foral, atribuído cerca de 50 anos depois. Por outro lado, as muralhas estendiam o seu manto protetor às novas áreas da urbe românica.
O castelo de Leiria torna-se importante nas Cortes de 1254, mandadas convocar por D. Afonso III. A parte residencial do Paço Real, que sofreu melhoramentos significativos, assume maior protagonismo no tempo de D. Dinis - altura em que este soberano e sua mulher, a Rainha Santa Isabel, elegem o castelo de Leiria como uma das suas residências sazonais.
Da reforma românica ao tempo de D. Sancho I subsistem ainda partes da barbacã e da cerca amuralhada, reforçada por torres de vigia.
No centro ergue-se o núcleo mais forte e imponente, sob o ponto de vista de defesa militar, destacando-se a poderosa Torre de Menagem, dividida em três andares e coroada por ameias quadrangulares, obra pertencente ao período de D. Dinis.
Debruçada sobre a cidade e solidamente assente na muralha exterior avulta a graciosa Loggia do Paço Real, constituída pelos seus oito belos arcos do gótico ogival - obra que foi reconstruída neste século pelo arquiteto Ernesto Korrodi. Este Paço Real é composto por corpo central de três pisos, ladeado por torreões com arcadas e cobertos por telhados. Interiormente, a clareza dos seus salões reflete uma certa simplicidade de formas e uma grandeza de espaços.
Os panos de muralha, com as suas torres defensivas, ocultam no seu interior outra das preciosidades da Leiria Medieval: a arruinada Igreja de Nossa Senhora da Pena, singular obra religiosa do gótico trecentista, ostentando um singelo portal ogival de cinco arquivoltas apoiadas em belos colunelos. A abside ainda resiste e mostra a sua cobertura de abóbadas nervuradas. Os panos laterais da capela-mor são rasgados por frestas ogivais de dois lumes, encimadas por quadrifólios. (daqui)
sábado, 14 de setembro de 2024
"A Canção da Vida" - Poema de Mário Quintana
Leopoldo Gotuzzo (Pintor brasileiro, 1887–1983), Paisagem, 1965.
A Canção da Vida
A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)
Mário Quintana, in 'Esconderijos do Tempo'
Leopoldo Gotuzzo (Pintor brasileiro, 1887–1983), Paisagem,s.d.
Fundo de quintal...
Silêncio. No velho muro,
uns cacos de sol...
sexta-feira, 13 de setembro de 2024
"Quase elegia" - Poema de Carlos Drummond de Andrade
Augusto Bracet (Pintor e professor brasileiro, 1881-1960), Paisagem serrana, 1932.
Quase elegia
No tempo dos afonsinhos
havia um homem Fiúza.
Tinha uma cara qualquer
e a engenharia confusa.
Vivendo só na montanha,
respirava ares lavados.
Supunham-lhe mente arguta,
pensamentos elevados.
Saberia as buenas-artes,
seus planos eram geniais.
Tiraram-no então da toca,
levaram-no aos maiorais.
Queremos — clamam as massas —
esse para presidente.
Por trás daqueles bigodes
uma alma palpita e sente.
Fiúza baixou da serra
qual novo homem do destino.
Sucede que aqui embaixo
as coisas piam mais fino.
Enquanto ele oferta às massas
o seu sorriso contente,
eis que surge na surdina
Lacerda, e ferra-lhe o dente.
Corre o pobre à sua furna
e muitos anos passaram.
Tal como os dias e as noites,
as águas surdas rolaram.
Não rolam mais hoje em dia
e os cristãos morrem de sede.
Pois vamos (diz o Velhinho)
tirar Fiúza da rede.
Que venha sem mais tardança
a esta terra comburida.
E aqui, como um taumaturgo,
faça reflorir a vida.
Seria o Velho ou o Capeta
a voz que assim lhe falava?
Se a tentação nos visita,
a razão torna-se escrava.
Descer o alcantil é doce
depois de tanto jejum.
Se der certo, muito bem;
se não, o risco é nenhum.
Chega Fiúza à planície
e vê as casas sem água.
Vê as escolas fechadas
e a moça sem sua anágua,
pois não a pode lavar,
e o jeito é vestir biquíni.
E na soalheira a cigarra,
irónica, tanto mais zine.
Viu os doentes sem banho
e os curumins sem asseio.
E tudo era triste e sujo,
e o belo tornou-se feio.
Isso para mim é sopa,
diz o sábio a seu bigode.
Quero dinheiro graúdo,
comigo a seca não pode.
Deram-lhe toda a pecúnia,
ele tirou o casaco.
Pegou de uma escavadeira,
começa a abrir um buraco.
Lá bem no centro da terra
tem água que é um desperdício.
Dentro, se tanto, de um mês,
quem não se banha é por vício.
Um mês passou-se e outro mês,
sem a menor esperança.
Água é a que corre dos olhos,
numa fluência bem mansa.
Abre-se um poço e outro poço,
a terra inteira se empoça;
mas a bica no ora-veja,
e a multidão geme: “Nossa!”
Sobre a garganta abissal
dos poços, quem se debruça
enxerga o lodo, o calcário,
ou talvez a mula ruça.
Mas água? Na Paulo Afonso,
no Niágara talvez.
(Ou mineral, na garrafa,
como um ovo para endez.)
As procissões ad petendam
comovem Nosso Senhor.
E só assim se tem água,
por obra do seu Amor.
Então, nas altas esferas
se perde a santa paciência.
Fiúza, que fim levou
a tua hidráulica ciência?
E chamando Edgard, conferem-lhe
(a história já chega ao fim)
plenos poderes: até
sobre o caudilho Delfim.
Do pensamento às palavras,
ou desta ao mundo das obras,
uma verdade indiscreta
surge: são tudo manobras.
Volta Fiúza a seu serro,
lá vai sem deixar saudade.
E fica Edgard, nesta história
sem a menor novidade.
Um dia desses o sábio
ressurge, pleno de luz.
(Diz Comte que o homem se agita,
mas a tolice o conduz.)
Edgard que se previna
para levar marretada:
em vez de nova adutora,
que faz o Governo? Nada.
18-02-1954
Carlos Drummond de Andrade,
in Versiprosa, 1967.
segunda-feira, 9 de setembro de 2024
"Felinus" - Poema de Inês Lourenço
Julius Adam (German painter, 1852-1913), Mealtime, Private Collection.
Felinus
A Maria Tobias era preta
e branca. Na parte branca era
Tobias e era Maria na preta. Morou
connosco cinco anos. No sexto, numa
quinta-feira santa pôs-se a dormir
depois de um longo jejum. Ficaram-nos
nas mãos festas desabitadas e os poucos
haveres: uma malga, uma manta, um bebedouro,
que não logramos enviar
para a nova morada.
Inês Lourenço, in "Coisas que nunca",
Editor: &etc, 2010
Felinus
A Maria Tobias era preta
e branca. Na parte branca era
Tobias e era Maria na preta. Morou
connosco cinco anos. No sexto, numa
quinta-feira santa pôs-se a dormir
depois de um longo jejum. Ficaram-nos
nas mãos festas desabitadas e os poucos
haveres: uma malga, uma manta, um bebedouro,
que não logramos enviar
para a nova morada.
Inês Lourenço, in "Coisas que nunca",
Editor: &etc, 2010
"Se você passar tempo com os animais, corre o risco de se tornar uma pessoa melhor."
Oscar Wilde (Escritor, poeta e dramaturgo irlandês, 1854–1900)
domingo, 8 de setembro de 2024
"Retrato na Praia" - Poema de Carlos Pena Filho
Retrato na Praia
Ei-la ao sol, como um claro desafio
ao tenuíssimo azul predominante.
Debruçada na areia e assim, diante
do mar, é um animal rude e bravio.
Bem perto, há um comentário sobre estio,
mormaço e sonolência. Lá, distante,
muitos vagos indícios de um navio
que ela talvez contemple nesse instante.
Mas o importante mesmo é o sol, que esse desliza
por seu corpo salgado, enxuto e belo,
como se nuvem fosse, ou quase brisa.
E desce por seus braços, e rodeia
seu brevíssimo e branco tornozelo,
onde se aquece e cresce, e se incendeia.
Edward Cucuel, An elegant lady by a lake, s.d.
Edward Cucuel
Edward Alfred Cucuel (1875-1954) was a newspaper illustrator turned Impressionist, known especially for his vibrant palettes and portraits of women in dappled landscapes.
Born in San Francisco, Cucuel began his training at the San Francisco School of Design in the late 1880s; his father was a newspaper publisher, and the young Cucuel worked for several newspaper art departments in his teenage years.
Cucuel moved to Paris in 1892 to continue his artistic studies at the Academy Julian and the Ecole des Beaux-Arts. He returned to the United States in 1896, working for half a year as an illustrator in New York, then left once more for Paris. After a couple of years spent painting in that city, Cucuel struck out to travel through France, Italy, and Germany to study the old masterworks in person.
In 1907 he moved to Munich to establish a more permanent residence, training with Leo Putz to more seriously develop his Impressionist painting practice.
Cucuel remained in Germany until 1939, gradually gaining recognition, with his works being shown in Paris salons and at the Art Institute of Chicago.
The outbreak of World War II forced Cucuel to come back to the United States; he lived in Pasadena for the remainder of his life. (daqui)
Born in San Francisco, Cucuel began his training at the San Francisco School of Design in the late 1880s; his father was a newspaper publisher, and the young Cucuel worked for several newspaper art departments in his teenage years.
Cucuel moved to Paris in 1892 to continue his artistic studies at the Academy Julian and the Ecole des Beaux-Arts. He returned to the United States in 1896, working for half a year as an illustrator in New York, then left once more for Paris. After a couple of years spent painting in that city, Cucuel struck out to travel through France, Italy, and Germany to study the old masterworks in person.
In 1907 he moved to Munich to establish a more permanent residence, training with Leo Putz to more seriously develop his Impressionist painting practice.
Cucuel remained in Germany until 1939, gradually gaining recognition, with his works being shown in Paris salons and at the Art Institute of Chicago.
The outbreak of World War II forced Cucuel to come back to the United States; he lived in Pasadena for the remainder of his life. (daqui)
sábado, 7 de setembro de 2024
"Ode ao Caldo de Congro" - Poema de Pablo Neruda
Jan van Kessel, the Elder (Flemish painter, 1626-1679), Still life of fish in a harbor landscape,
possibly an allegory of the element of water, 1660.
possibly an allegory of the element of water, 1660.
Ode ao Caldo de Congro
No mar
tormentoso
do Chile
vive o rosado congro,
enguia gigante
de nevada carne.
E nas panelas
chilenas,
na costa,
nasceu o caldo
grávido e suculento,
proveitoso.
Levem para a cozinha
o congro esfolado,
a sua manchada pele cede
como uma luva
e a descoberto fica
então
a uva do mar
o congro tenro
reluz
já nu,
preparado
para o nosso apetite.
Agora
pegas em
alhos,
acaricia primeiro
esse marfim
precioso,
cheira
a sua fragrância iracunda,
então
deixa o alho picado
cair com a cebola
e o tomate
até que a cebola
tenha cor de ouro.
Entretanto
cozem-se ao vapor
os régios
camarões marinhos
e quando estiverem a chegar
ao seu ponto,
quando se consolidar o sabor
num molho
formado pelo suco
do oceano
e pela água clara
que soltou a luz da cebola,
então
que entre o congro
e mergulhe na glória,
que na panela
se azeite,
se contraia e se impregne.
Já só é necessário
deixar no manjar
cair o creme
como uma rosa espessa
e ao lume
lentamente
entregar o tesouro
até que no caldo se aqueçam
as essências do Chile,
e à mesa
cheguem recém-casados
os sabores
do mar e da terra
para que nesse prato
tu conheças o céu.
Pablo Neruda, in Odes Elementares
Tradução de Luis Pignatelli
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1977
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1977
Jan van Kessel, the Elder, Water, 1660, Detroit Institute of Arts.
Oda al Caldillo de Congrio
(Poema original)
(Poema original)
En el mar
tormentoso
de Chile
vive el rosado congrio,
gigante anguila
de nevada carne.
Y en las ollas
chilenas,
en la costa,
nació el caldillo
grávido y suculento,
provechoso.
Lleven a la cocina
el congrio desollado,
su piel manchada cede
como un guante
y al descubierto queda
entonces
el racimo del mar,
el congrio tierno
reluce
ya desnudo,
preparado
para nuestro apetito.
Ahora
recoges
ajos,
acaricia primero
ese marfil
precioso,
huele
su fragancia iracunda,
entonces
deja el ajo picado
caer con la cebolla
y el tomate
hasta que la cebolla
tenga color de oro.
Mientras tanto
se cuecen
con el vapor
los regios
camarones marinos
y cuando ya llegaron
a su punto,
cuando cuajó el sabor
en una salsa
formada por el jugo
del océano
y por el agua clara
que desprendió la luz de la cebolla,
entonces
que entre el congrio
y se sumerja en gloria,
que en la olla
se aceite,
se contraiga y se impregne.
Ya sólo es necesario
dejar en el manjar
caer la crema
como una rosa espesa,
y al fuego
lentamente
entregar el tesoro
hasta que en el caldillo
se calienten
las esencias de Chile,
y a la mesa
lleguen recién casados
los sabores
del mar y de la tierra
para que en ese plato
tú conozcas el cielo.
Pablo Neruda,
tormentoso
de Chile
vive el rosado congrio,
gigante anguila
de nevada carne.
Y en las ollas
chilenas,
en la costa,
nació el caldillo
grávido y suculento,
provechoso.
Lleven a la cocina
el congrio desollado,
su piel manchada cede
como un guante
y al descubierto queda
entonces
el racimo del mar,
el congrio tierno
reluce
ya desnudo,
preparado
para nuestro apetito.
Ahora
recoges
ajos,
acaricia primero
ese marfil
precioso,
huele
su fragancia iracunda,
entonces
deja el ajo picado
caer con la cebolla
y el tomate
hasta que la cebolla
tenga color de oro.
Mientras tanto
se cuecen
con el vapor
los regios
camarones marinos
y cuando ya llegaron
a su punto,
cuando cuajó el sabor
en una salsa
formada por el jugo
del océano
y por el agua clara
que desprendió la luz de la cebolla,
entonces
que entre el congrio
y se sumerja en gloria,
que en la olla
se aceite,
se contraiga y se impregne.
Ya sólo es necesario
dejar en el manjar
caer la crema
como una rosa espesa,
y al fuego
lentamente
entregar el tesoro
hasta que en el caldillo
se calienten
las esencias de Chile,
y a la mesa
lleguen recién casados
los sabores
del mar y de la tierra
para que en ese plato
tú conozcas el cielo.
Pablo Neruda,
Oda al Caldillo de Congrio.
Jan van Kessel, the Elder, Fish and marine landscape, c.1656, Museo del Prado.
Jan van Kessel, the Elder, Fish and marine landscape, c.1656, Museo del Prado.
PEIXES
A
raia, para ser boa, deve ser comida de caldeirada de pitau (Mira),
menos em Maio, porque «raia em Maio, tumba à porta», e a faneca com três
fff – fresca, fria e frita. Cada peixe tem a sua época: «a solha, no
tempo do milho, come-a com o teu amigo», a sardinha antes da desova e o
próprio caranguejo só lá para Agosto é que, assado na casca, atinge a
perfeição. Mas todo o peixe regala quando sai da rede para o lume: tem
um sabor único a mar, e até a reluzente savelha e o horrível cação,
lavados e amanhados na maré, se tornam toleráveis. Quanto ao linguado,
ao goraz, à corvina, à gordíssima sarda, à pescada e à saborosa
sardinha, para não falar dos peixes hoje quase desaparecidos, do
rodovalho, do peixe-rei, ignora-lhes o sabor e o delicado perfume quem
os não trouxe do barco para casa, ainda a escorrer dentro do cabaz,
sobre uma cama de algas e de limos. São então esplêndidos assados,
fritos, de caldeirada, com um fio de azeite, ou preparados pelo próprio
pescador sobre umas brasas.
Quando
a maré vaza, os pescadores procuram a serrada para iscar os espinéis, e
a praia fica a descoberto: as poças de água são joias cheias de
reflexos entre o lodo, e cada penedo com a sua cabeleira escura de
sargaço – verde húmido e translúcido – é um ser vivo. Em todas as poças
faíscam as enguias que se metem nos aloques, o caranguejo traiçoeiro e
voraz, que espera a presa na sua clausura de pedra, as mantas de
pequenos peixes por criar, reluzindo quando, num movimento brusco,
mostram ao mesmo tempo o ventre esbranquiçado, e um bicho mole como a
lesma que se arrasta pelo limo. Há fragas enormes, roídas, veneráveis,
cobertas de lapas aderentes, de mexilhões aos cachos que, sentindo
gente, fecham logo a casa, e onde o azul empoça em buracos que refletem o
universo: cabem lá dentro o céu, a luz e as estrelas.
A
toninha, que anda sempre atrás do banco da sardinha, afigura-se-me o
ser mais feliz do mar. Tem a mesa sempre posta – e inesgotável. Folgam
como um bando à solta de rapazes. Dão-me sempre uma impressão de
liberdade e de vida deliciosa... Saltam, vê-se-lhes o dorso reluzente,
mergulham e irrompem, com o costado azul a escorrer, quando menos se
espera, lá ao fundo... Às vezes vêm pela barra dentro, na onda e na
espuma, no jorro impetuoso, quando o mar, como um seio que cresce com
volúpia e se dilata, se mete pela terra. Setembro – marés vivas.
– As toninhas! – Alarido na Cantareira: os homens saltam nos barcos. Um à proa leva o arpão, espera o momento e joga-lho. Aquela morre, as outras fogem logo para o mar.
Entre estes bichos e outros que conheço, pavorosos, há um salto enorme de pesadelo.
Vi as tremelgas nos fundos espessos e lívidos entre os grandes penedos do Baleal, onde as águas têm a cor horrível das morgues. Pior que podridão – e lá para o fundo um remexer de vida misteriosa. Reparo, e de repente levanta-se de baixo uma revoada de pavor, panos vivos que arfam sacudidos, asas moles e disformes de morcegos que palpitam, dum verde indistinto e elétrico. São as tremelgas, que vêm aos milhares à superfície, não sei como nem para quê, vida que faz cismar e mete medo. Suponho o contacto com aquelas peles viscosas, com aquela vida obscura, nos subterrâneos esverdeados onde a luz não penetra – e fujo! fujo!...
– As toninhas! – Alarido na Cantareira: os homens saltam nos barcos. Um à proa leva o arpão, espera o momento e joga-lho. Aquela morre, as outras fogem logo para o mar.
Entre estes bichos e outros que conheço, pavorosos, há um salto enorme de pesadelo.
Vi as tremelgas nos fundos espessos e lívidos entre os grandes penedos do Baleal, onde as águas têm a cor horrível das morgues. Pior que podridão – e lá para o fundo um remexer de vida misteriosa. Reparo, e de repente levanta-se de baixo uma revoada de pavor, panos vivos que arfam sacudidos, asas moles e disformes de morcegos que palpitam, dum verde indistinto e elétrico. São as tremelgas, que vêm aos milhares à superfície, não sei como nem para quê, vida que faz cismar e mete medo. Suponho o contacto com aquelas peles viscosas, com aquela vida obscura, nos subterrâneos esverdeados onde a luz não penetra – e fujo! fujo!...
Raul Brandão (1867-1930), em Os Pescadores, 1923.
Jan van Kessel, the Elder, Still Life with Fish and Marine Creatures in a Costal Landscape, 1661,
Städel Museum
"O primeiro homem que percebeu a analogia entre um grupo de sete peixes e um grupo de sete dias trouxe um notável avanço à história de pensamento."
Alfred North Whitehead (1861-1947),
in Alfred North Whitehead: An Anthology - Página 381,
Filmer Stuart Cuckow Northrop - Macmillan, 1953 - 928 páginas.
Jan van Kessel, the Elder, Fighting dog and cat with a still life of marine animals and vegetables, c.1665.
"Contaram-me que os peixes não se importam de serem pescados, pois têm o sangue frio e não sentem dor. Mas não foi um peixe que me contou isso".
Heywood Broun, Sitting on the World - Página 17,
Publicado por G. P. Putnam's sons, 1924 - 276 páginas.
Subscrever:
Mensagens (Atom)