sábado, 7 de setembro de 2024

"Ode ao Caldo de Congro" - Poema de Pablo Neruda


Jan van Kessel, the Elder (Flemish painter, 1626-1679), Still life of fish in a harbor landscape,
possibly an allegory of the element of water, 1660
.



Ode ao Caldo de Congro


No mar
tormentoso
do Chile
vive o rosado congro,
enguia gigante
de nevada carne.

E nas panelas
chilenas,
na costa,
nasceu o caldo
grávido e suculento,
proveitoso.

Levem para a cozinha
o congro esfolado,
a sua manchada pele cede
como uma luva
e a descoberto fica
então
a uva do mar
o congro tenro
reluz
já nu,
preparado
para o nosso apetite.

Agora
pegas em
alhos,
acaricia primeiro
esse marfim
precioso,
cheira
a sua fragrância iracunda,
então
deixa o alho picado
cair com a cebola
e o tomate
até que a cebola
tenha cor de ouro.

Entretanto
cozem-se ao vapor
os régios
camarões marinhos
e quando estiverem a chegar
ao seu ponto,
quando se consolidar o sabor
num molho
formado pelo suco
do oceano
e pela água clara
que soltou a luz da cebola,
então
que entre o congro
e mergulhe na glória,
que na panela
se azeite,
se contraia e se impregne.

Já só é necessário
deixar no manjar
cair o creme
como uma rosa espessa
e ao lume
lentamente
entregar o tesouro
até que no caldo se aqueçam
as essências do Chile,
e à mesa
cheguem recém-casados
os sabores
do mar e da terra
para que nesse prato
tu conheças o céu.


Pablo Neruda, in Odes Elementares 
Tradução de Luis Pignatelli
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1977
 

 

Oda al Caldillo de Congrio
(Poema original)
 
 
En el mar
tormentoso
de Chile
vive el rosado congrio,
gigante anguila
de nevada carne.
Y en las ollas
chilenas,
en la costa,
nació el caldillo
grávido y suculento,
provechoso.
Lleven a la cocina
el congrio desollado,
su piel manchada cede
como un guante
y al descubierto queda
entonces
el racimo del mar,
el congrio tierno
reluce
ya desnudo,
preparado
para nuestro apetito.
Ahora
recoges
ajos,
acaricia primero
ese marfil
precioso,
huele
su fragancia iracunda,
entonces
deja el ajo picado
caer con la cebolla
y el tomate
hasta que la cebolla
tenga color de oro.
Mientras tanto
se cuecen
con el vapor
los regios
camarones marinos
y cuando ya llegaron
a su punto,
cuando cuajó el sabor
en una salsa
formada por el jugo
del océano
y por el agua clara
que desprendió la luz de la cebolla,
entonces
que entre el congrio
y se sumerja en gloria,
que en la olla
se aceite,
se contraiga y se impregne.
Ya sólo es necesario
dejar en el manjar
caer la crema
como una rosa espesa,
y al fuego
lentamente
entregar el tesoro
hasta que en el caldillo
se calienten
las esencias de Chile,
y a la mesa
lleguen recién casados
los sabores
del mar y de la tierra
para que en ese plato
tú conozcas el cielo.


Pablo Neruda,  
 
 
 
PEIXES
 
       A raia, para ser boa, deve ser comida de caldeirada de pitau (Mira), menos em Maio, porque «raia em Maio, tumba à porta», e a faneca com três fff – fresca, fria e frita. Cada peixe tem a sua época: «a solha, no tempo do milho, come-a com o teu amigo», a sardinha antes da desova e o próprio caranguejo só lá para Agosto é que, assado na casca, atinge a perfeição. Mas todo o peixe regala quando sai da rede para o lume: tem um sabor único a mar, e até a reluzente savelha e o horrível cação, lavados e amanhados na maré, se tornam toleráveis. Quanto ao linguado, ao goraz, à corvina, à gordíssima sarda, à pescada e à saborosa sardinha, para não falar dos peixes hoje quase desaparecidos, do rodovalho, do peixe-rei, ignora-lhes o sabor e o delicado perfume quem os não trouxe do barco para casa, ainda a escorrer dentro do cabaz, sobre uma cama de algas e de limos. São então esplêndidos assados, fritos, de caldeirada, com um fio de azeite, ou preparados pelo próprio pescador sobre umas brasas. 
       Quando a maré vaza, os pescadores procuram a serrada para iscar os espinéis, e a praia fica a descoberto: as poças de água são joias cheias de reflexos entre o lodo, e cada penedo com a sua cabeleira escura de sargaço – verde húmido e translúcido – é um ser vivo. Em todas as poças faíscam as enguias que se metem nos aloques, o caranguejo traiçoeiro e voraz, que espera a presa na sua clausura de pedra, as mantas de pequenos peixes por criar, reluzindo quando, num movimento brusco, mostram ao mesmo tempo o ventre esbranquiçado, e um bicho mole como a lesma que se arrasta pelo limo. Há fragas enormes, roídas, veneráveis, cobertas de lapas aderentes, de mexilhões aos cachos que, sentindo gente, fecham logo a casa, e onde o azul empoça em buracos que refletem o universo: cabem lá dentro o céu, a luz e as estrelas.
 
       A toninha, que anda sempre atrás do banco da sardinha, afigura-se-me o ser mais feliz do mar. Tem a mesa sempre posta – e inesgotável. Folgam como um bando à solta de rapazes. Dão-me sempre uma impressão de liberdade e de vida deliciosa... Saltam, vê-se-lhes o dorso reluzente, mergulham e irrompem, com o costado azul a escorrer, quando menos se espera, lá ao fundo... Às vezes vêm pela barra dentro, na onda e na espuma, no jorro impetuoso, quando o mar, como um seio que cresce com volúpia e se dilata, se mete pela terra. Setembro – marés vivas.
       – As toninhas! – Alarido na Cantareira: os homens saltam nos barcos. Um à proa leva o arpão, espera o momento e joga-lho. Aquela morre, as outras fogem logo para o mar.
       Entre estes bichos e outros que conheço, pavorosos, há um salto enorme de pesadelo.
       Vi as tremelgas nos fundos espessos e lívidos entre os grandes penedos do Baleal, onde as águas têm a cor horrível das morgues. Pior que podridão – e lá para o fundo um remexer de vida misteriosa. Reparo, e de repente levanta-se de baixo uma revoada de pavor, panos vivos que arfam sacudidos, asas moles e disformes de morcegos que palpitam, dum verde indistinto e elétrico. São as tremelgas, que vêm aos milhares à superfície, não sei como nem para quê, vida que faz cismar e mete medo. Suponho o contacto com aquelas peles viscosas, com aquela vida obscura, nos subterrâneos esverdeados onde a luz não penetra – e fujo! fujo!...

Raul Brandão (1867-1930), em Os Pescadores, 1923.



Jan van Kessel, the Elder, Still Life with Fish and Marine Creatures in a Costal Landscape, 1661,
Städel Museum
 

"O primeiro homem que percebeu a analogia entre um grupo de sete peixes e um grupo de sete dias trouxe um notável avanço à história de pensamento."

Alfred North Whitehead
(1861-1947),
 in Alfred North Whitehead: An Anthology‎ - Página 381,
Filmer Stuart Cuckow Northrop - Macmillan, 1953 - 928 páginas.
 

Jan van Kessel, the Elder, Fighting dog and cat with a still life of marine animals and vegetables, c.1665.
 

"Contaram-me que os peixes não se importam de serem pescados, pois têm o sangue frio e não sentem dor. Mas não foi um peixe que me contou isso".


Heywood Broun
, Sitting on the World‎ - Página 17,
Publicado por G. P. Putnam's sons, 1924 - 276 páginas.
 
 
Jan van Kessel, the Elder, Cats with a still life of marine animals, fruit and vegetables, c.1665.
 

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