quarta-feira, 2 de outubro de 2024

"Ode à vida" - Poema de Pablo Neruda

 


Mark Grantham
(Canadian Painter, born 1966), "I Thought I Heard My Name" 
 (Barrington Street, Halifax), s.d.
 


Ode à vida

 
Toda a noite
com um machado
a dor me feriu,
mas o sonho
passando lavou como uma escura água
ensanguentadas pedras.
Hoje estou vivo novamente.
De novo
te levanto,
vida,
sobre os meus ombros.

Ó vida,
taça cristalina,
de súbito
enches-te
de água suja,
de vinho morto,
de agonia, de desgraças,
de pegajosas teias de aranha,
e muitos creem
que guardarás para sempre
essa cor infernal.

Não é verdade.

Uma noite lenta passa,
passa um só minuto
e tudo muda.
Enche-se
de transparência
a taça da vida.
Um longo trabalho
nos espera.
De um só golpe nascem as pombas.
Se engendra a luz sobre a terra.
Vida, os pobres
poetas
julgaram-te amarga,
não saíram da cama
contigo
com o vento do mundo.

Sofreram os amargores
sem te procurar,
barricaram-se
num negro tugúrio
e foram-se atolando
no luto
dum solitário poço.
Não é verdade, vida,
és
bela
como a minha amada
e tens entre os seios
odor a menta.

Vida
és uma máquina plena,
felicidade, rumor
de tempestade, ternura
de delicado azeite.

Vida,
és como uma vinha:
amealhas a luz e reparte-la
em cacho transformada.

Aquele que te renega
que espere
um minuto, uma noite,
um ano curto ou longo,
que saia
da sua mentirosa solidão,
que indague e lute, junte
as suas mãos a outras mãos,
que não adote nem proclame
a má-sorte,
que a estilhace dando-lhe
forma de muro,
como à pedra fazem os canteiros,
que a corte
e dela faça
umas calças.
A vida espera
todos aqueles
que amam
o selvagem
odor a mar e a menta
que ela tem entre os seios.


Pablo Neruda, Odas elementales, 1954,
Tradução de Luís Pignatelli,
Publicações Dom Quixote, 1977.
 


Mark Grantham, Homeward, s.d.
 

"A vida é um viajante que deixa a sua capa arrastar atrás de si, para que lhe apague o sinal dos passos."
 
Louis Aragon, Les Voyageurs de l'impériale: roman.‎
Publicado por Gallimard (Le Monde réel), 1942. 


terça-feira, 1 de outubro de 2024

"O lavrador percorrendo a vinha" - Poema de António Cabral



Elin Danielson-Gambogi
 (Finnish painter, 1861–1919), In the Vineyard II, 1898



O lavrador percorrendo a vinha

 
Ei-lo no meio da vinha, atento,
como se ouvisse o próprio coração.
Uma vide que toca é um músculo vibrando;
um cacho que descobre é um pensamento novo.

A terra ondula nos seus passos
e fez dele um arbusto sonhador.
Quando os seus olhos pousam num rebento
duas gotas de orvalho se iluminam.

Que ventos germinam além da montanha?
Que nuvens negras ou trovões?
Ele não sabe. Tem tempo de saber.
Esta manhã de Abril é boa, clara.

Alegremente o sol arde no rio:
amam-se as rolas no pinhal.
Ele percorre a vinha e colhe
um louro cacho de esperanças.


António Cabral
, "Poemas durienses"
 

Elin Danielson-Gambogi, In the Vineyard, 1898.
 
 
 
Sete notas para uma sinfonia


1

Só saberás a música do vinho,
quando ouvires o sol,
dedo a dedo na vinha,
esta guitarra.

2

No Douro só o nome é de ouro.
As verdades são mais ou menos assim.

3

Curvam-se os homens sob os cestos de uvas:
uma atitude de reverência.

4

Mudam-se os tempos, não muda a vindima:
a mesma lua sobre o pensamento.

5

Os homens põem capelas no cimo dos montes
para que os ouçam à distância.
Eis uma forma elegante
de dialogar com os mortos.

6

Se fores ao Tua,
esquece-te dos pronomes possessivos.

7

Certamente grandioso foi o pensamento
que antecedeu este rio.
Ainda se veem as escarpas e abundantes nevoeiros.
E as ideias perfilam-se em enormes socalcos.


António Cabral
, "Poemas durienses"

 
1. Só saberás a música do vinho, quando ouvires o sol, dedo a dedo na vinha, esta guitarra. 2. No Douro só o nome é de ouro. As verdades são mais ou menos assim. 3. Curvam-se os homens sob os cestos de uvas: uma atitude de reverência. 4. Mudam-se os tempos, não muda a vindima: a mesma lua sobre o pensamento. 5. Os homens põem capelas no cimo dos montes para que os ouçam à distância. Eis uma forma elegante de dialogar com os mortos. 6. Se fores ao Tua, esquece-te dos pronomes possessivos. 7. Certamente grandioso foi o pensamento que antecedeu este rio. Ainda se vêem as escarpas e abundantes nevoeiros. E as ideias perfilam-se em enormes socalcos.

© António Cabral - Todos os direitos reservados. Ler mais em: https://www.antoniocabral.com.pt/sete-notas-para-uma-sinfonia/ | ANTÓNIO CABRAL
i-lo no meio da vinha, atento, como se ouvisse o próprio coração. Uma vide que toca é um músculo vibrando; um cacho que descobre é um pensamento novo. A terra ondula nos seus passos e fez dele um arbusto sonhador. Quando os seus olhos pousam num rebento duas gotas de orvalho se iluminam. Que ventos germinam além da montanha? Que nuvens negras ou trovões? Ele não sabe. Tem tempo de saber. Esta manhã de Abril é boa, clara. Alegremente o sol arde no rio: amam-se as rolas no pinhal. Ele percorre a vinha e colhe um louro cacho de esperanças.

© António Cabral - Todos os direitos reservados. Ler mais em: https://www.antoniocabral.com.pt/o-lavrador-percorrendo-a-vinha/ | ANTÓNIO CABRAL