domingo, 27 de outubro de 2024

"Poeta" - Poema de Francisco Bugalho

 

 Johannes Gumpp (Peintre autrichien, 1626–1728), Autoportrait, 1646
Premier exemple de triple autoportrait dans la peinture. Collection Privée. 
 
 

Poeta 
 
Poeta, a construíres sonhos contraditórios!
Tu tens na vida uns ideais burgueses
Que não te satisfazem!

Poeta, tu desejas
Misérias e reveses
Que te façam cantar.
E amas o conforto,
E gostas de jantar!...

Poeta, sempre em luta vã contigo,
— Que sofres de já ser aquilo que não és,
Que sofres de não ser aquilo que queres ser...

Poeta, é já bem grande o teu castigo.
É preciso viver. 
in "Canções de Entre Céu e Terra"
 
 

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

"Estranhas aventuras da infância" - Poema de Mário Quintana

 


José Antônio Moreto
 (Pintor brasileiro, n. 1938), Casa da Fazenda, s.d.


Estranhas aventuras da infância


Era um caminho tão pequenino
Que nem sabia aonde ia,
Por entre uns morros se perdia
Que ele pensava que eram montanhas…

Enquanto a tarde, lenta, caía,
Aflitamente o procuramos.
Sozinho assim, aonde iria?
Porém, deixamos para um outro dia…

Perdido e só, nós o deixamos!

E quando, enfim, ali voltamos
Já nada havia, só ervas más…
Tão vasto e triste sentiste o mundo
Que te achegaste, desamparada…

E foi bem juntos que regressamos,
Ombro com ombro, a mão na mão,
Enquanto, lenta, caía a tarde
E nos espiava a bruxa negra…

E nos seguia a bruxa negra
Que hoje se chama Solidão!


Mário Quintana, in "Baú de espantos", 1986.

 

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

"Mãe" - Poema de Antero de Quental


William-Adolphe Bouguereau (French painter, 1825-1905), The pastoral recreation, 1868.
Private collection


Mãe
 
 
Mãe — que adormente este viver dorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas ate o fio
Do meu pobre existir, meio partido...

Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio...
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido...

Eu dava o meu orgulho de homem — dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava.

Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe! 


Antero de Quental
, in "Sonetos"
 
 
William-Adolphe Bouguereau, The Bunch Of Grapes (La Grappe de raisin), 1868.
 

"O olhar dos olhos de nossa mãe é parte de nossa alma, é o olhar que nos penetra por nossos olhos."

"Le regard des yeux de notre mère est une partie de notre âme qui pénètre en nous par nos propres yeux."

Alphonse de Lamartine
, Les confidences - Página 25,  Perrotin, 1849
 

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

"Os ventos do destino" - Poema de Ella Wheeler Wilcox



Thomas Edwin Mostyn (English artist, 1864–1930), Untitled.
 
 

Os ventos do destino


Um barco sai para o leste e o outro para o oeste
Levados pelos mesmos ventos que sopram:
É a posição das velas,
E não os temporais,
Que lhes dita o curso a seguir.

Como os ventos do mar são os ventos do destino
Quando navegamos ao longo da vida:
É a posição da alma
que determina a meta,
e não a calmaria ou a borrasca.


Ella Wheeler Wilcox
, "Os ventos do destino", 1916
Tradução de Israel Belo de Azevedo 
 

terça-feira, 22 de outubro de 2024

"Desce em folhedos tenros a colina" - Poema de Camilo Pessanha


Albert Aublet (French painter, 1851-1938), Reading on the garden path, 1883.
 
 

 Desce em folhedos tenros a colina

 
Desce em folhedos tenros a colina:
— Em glaucos, frouxos tons adormecidos,
Que saram, frescos, meus olhos ardidos,
Nos quais a chama do furor declina…

Oh vem, de branco, —  do imo da folhagem!
Os ramos, leve, a tua mão aparte.
Oh vem! Meus olhos querem desposar-te,
Refletir-te virgem a serena imagem.

De silva doida uma haste esquiva.
Quão delicada te osculou num dedo
Com um aljôfar cor de rosa viva!…

Ligeira a saia… Doce brisa impele-a…
Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo!
Alma de silfo, carne de camélia… 
 

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

"Reportagem" - Poema de João Guimarães Rosa


Vincent van Gogh (Dutch Post-Impressionist painter, 1853–1890),


Reportagem


O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário…

Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou…

Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles…

Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro…

O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio…

Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem costas…


João Guimarães Rosa (1908-1967), do livro 'Magma'
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 68. 


domingo, 20 de outubro de 2024

"Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo" - Poema de Fernando Pessoa

 

William Anderson Coffin (American painter and art critic, 1855–1925),
Pink sky over the haystacks.


Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo


Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo,
E a noite chega sem que eu saiba bem,
Quero considerar-me e ver aquilo
Que sou, e o que sou o que é que tem.

Olho por todo o meu passado e vejo
Que fui quem foi aquilo em torno meu,
Salvo o que o vago e incógnito desejo
De ser eu mesmo de meu ser me deu.

Como a páginas já relidas, vergo
Minha atenção sobre quem fui de mim,
E nada de verdade em mim albergo
Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

Como alguém distraído na viagem,
Segui por dois caminhos par a par.
Fui com o mundo, parte da paisagem;
Comigo fui, sem ver nem recordar.

Chegado aqui, onde hoje estou, conheço
Que sou diverso no que informe estou.
No meu próprio caminho me atravesso
Não conheço quem fui no que hoje sou.

Serei eu, porque nada é impossível,
Vários trazidos de outros mundos, e
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por estar aqui?

Serei eu, porque todo o pensamento
Podendo conceber, bem pode ser,
Um dilatado e múrmuro momento,
De tempos-seres de quem sou o viver? 

1-8-1931 

Fernando Pessoa
, Poesias.
(Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 136.

sábado, 19 de outubro de 2024

"Despedida" - Poema de Rui Knopfli


Ellen Favorin (Swedish-speaking Finnish painter, 1853–1919),
Autumn Evening, Unknown date. 


 
 Despedida

 
Tudo entre nós foi dito.
Estamos cansados e tristes
neste Outono de folhas pairando
e caindo.
Entre nós as palavras colocam um mundo
de silêncio e vazio estéril.
Os próprios sonhos se encheram de neblinas
e o tempo os amarelece.
Outono de cismo, de folhas secas
e bancos abandonados de cimento frio
Onde não cantam aves
e o vento desce em brandos rodopios.
Apenas uma vaga angústia presente,
uma saudade sem recomeços,
a lembrança, tépida a gelar como
veios de mármore.
Tudo entre nós foi dito,
olhamos o apodrecer do parque,
o vento, o repicar leve das folhas
e, sem ressentimentos dizemos adeus.
 

Rui Knopfli, Obra Poética, 2003
 
 
Ellen Favorin, Autumn Landscape, Unknown date. 


"Sim, é isso mesmo! Assim como a natureza se inclina para o outono, também o outono vive dentro de mim e em torno de mim. As folhas da minha alma vão amarelecendo, enquanto as folhas das árvores vizinhas tombam."
 

"A Vida" - Poema de Nuno Júdice



Cristiano Banti
 (Italian painter, 1824–1904), Alaide Banti in the garden, c. 1870.
Private Collection



A Vida 
 
 
A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, retângulos, nas linhas
retas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;

a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas. 


Nuno Júdice
, in "Teoria Geral do Sentimento"
Quetzal Editores, 1999
 
 
Cristiano Banti, Confidences, 1868.
 

"Não há nada em que paire tanta sedução e maldição como um segredo." 
 
Søren Kierkegaard, "Enten – Eller. Første del", 1843.
 
 
 Cristiano Banti, Woman Sewing on the Terrace, 1882, Palazzo Pitti


"Acima de tudo, não se esqueça da obrigação de amar a si mesmo."

Søren Kierkegaard, Carta a Hans Peter, primo de Kierkegaard, 1848.
 
 

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

"A Meus Irmãos" - Poema de Sebastião da Gama

 
William-Adolphe Bouguereau (French painter, 1825-1905),
L'Orage (The Storm), 1874.
 


A Meus Irmãos


Batam-me à porta
os que andam lá por fora, à neve;
batam
os que tiverem frio ou sede;
os que sintam saudades de um carinho;
os desprezados;
os que há muito não vêem uma flor
e encontram só poeira no caminho;
os que não amam já nem já os ama
ninguém;
os esquecidos de como se sorri;
os que não têm Mãe...

Batam-me à porta os Desgraçados,
os que têm os dedos calejados
dos dedos ásperos da Miséria, 
os que travam desordens nas tavernas
e brincam às facadas,
os que não têm abrigo nem Amigo,
os que o Destino escarrou,
os que não foram crianças,
os que nasceram num bordel
e por quem passam todos sem olhar.

Batei à minha porta, Irmãos,
entrai,
que eu tenho Amor pra vos dar...

E se eu também bater
(que eu também choro
muitas vezes, lá por fora;
também amargo tristezas;
que eu também sou Desgraçado)...
Pois se eu bater,
vinde logo depressa abrir-me a porta;
aquecei-me no lume;
dai-me do pão que eu parti
e do Amor que vos dei...

Deixai-me estar entre vós
como se fosse um de vós,
que eu também sou Desgraçado...

Ah! se eu bater
(mas é preciso que eu possa
ter força ainda nas mãos),
por Deus abri a porta, meus irmãos,
como se a casa fora vossa!... 


Sebastião da Gama, in Serra-Mãe, 1945
 
 
 William-Adolphe Bouguereau, Charity or The Indigent Family, 1865
 
Richmond Art Museum
 
 
"Que a sua caridade comece no lar, mas não fique circunscrita ao mesmo."

"Charity begins at home, but it does not end there."

Henry Martin (1781 - 1812) citado em "A memoir of the Rev. Henry Martyn: late fellow of St. John's College, 
Cambridge and Chaplain to the honorable East India Company". Página 436,
 John Sargent - 1832 - Published by Perkins & Marvin, 467 páginas.
 

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

"No leito fundo" - Poema de Ivan Junqueira



Edward Cucuel
(American-born painter who lived and worked in Germany, 1879–1954),
Frühlingsgarten in Starnberg, c. 1920.



No leito fundo


No leito fundo em que descansas,
em meio às larvas e aos livores,
longe do mundo e dos terrores
que te infundia o aço das lanças;

longe dos reis e dos senhores
que te esqueceram nas andanças,
longe das taças e das danças,
e dos feéricos rumores;

longe das cálidas crianças
que ateavam fogo aos corredores
e se expandiam, quais vapores,
entre as alfaias e as faianças

de tua herdade, cujas flores
eram fatídicas e mansas,
mas que se abriam, fluidas tranças,
quando as tangiam teus pastores;

longe do fel, do horror, das dores,
é que recolho essas lembranças
e as deito agora, já sem cores,
no leito fundo em que descansas.


Ivan Junqueira
, in "A sagração dos ossos".
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.



Edward Cucuel, Blausee, 1920.
 
 
"Com os dias acontece o mesmo que com as idades da vida. Nenhum dá o bastante de si, nenhum é suficientemente bom, porque cada um tem o seu tormento ou, pelo menos, a sua imperfeição. Mas, se os virmos em conjunto, veremos neles um grande caudal de vida e alegria."
 
 

"De amor nada mais resta que um outubro" - Poema de Natália Correia


Viggo Langer (Danish painter, 1860-1942), Windswept landscape near Virum, October, 1900.
 

 
De amor nada mais resta que um outubro

 
De amor nada mais resta que um outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem. 


Natália Correia, in "Poesia Completa"
Publicações Dom Quixote, 1999.
 

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

"Poema" - Cristovam Pavia


Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), Azenhas do Mar, s.d.
 

 Poema


Súbitos mergulhadores descendo nas águas inimigas
Com os olhos fitos e os peitos esmagados,
Descendo devagar, ao som lento de segundos vertiginosos como séculos,
Todos nós vos acompanhamos e juntamos todas as nossas forças na mesma meditação.
Aqui, da terra firme,
Entre nuvens e terra,
Entre o suor e o orvalho,
Esperamos o termo com todas as nossas forças.
E sabereis a nossa mensagem:
Só há saída pelo fundo.


Cristóvam Pavia ou Cristovam Pavia,
pseudónimo de Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho

 

terça-feira, 15 de outubro de 2024

"Soneto Oco" - Poema de Carlos Pena Filho



Pedro Weingärtner (Pintor, desenhista e gravurista brasileiro, 1853 –1929),
 "O notário", 1892. Coleção particular.



Soneto Oco


Neste papel levanta-se um soneto,
de lembranças antigas sustentado,
pássaro de museu, bicho empalhado,
madeira apodrecida de coreto.

De tempo e tempo e tempo alimentado,
sendo em fraco metal, agora é preto.
E talvez seja apenas um soneto
de si mesmo nascido e organizado.

Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,
pois não sei como foi arquitetado
e nem me lembro quando apareceu.

Lembranças são lembranças, mesmo pobres,
olha pois este jogo de exilado
e vê se entre as lembranças te descobres.


Carlos Pena Filho, "Livro Geral", 1959
 
 
Pedro Weingärtner, "Remorso", 1902

 
"Remorso" (1902) é uma pintura de Pedro Weingärtner inserida no conjunto elaborado pelo artista acerca da Revolução Federalista
O pintor mostra um descampado onde se levantam várias cruzes, num ambiente que devia ter impressionado pela desolação e o que de factos dolorosos evocava.
Ali devia ter havido um sangrento recontro e após a peleja várias cruzes ficaram a assinalar as sepulturas dos vencidos. O homem de cabelo revolto que está ali, ajoelhado diante de uma sepultura, sobre a qual acendeu várias velas, veio trazido pelo remorso. Sobrevivente da luta, despojara dos valores que trazia o cadáver de um combatente que sucumbira e retornou ao antigo campo de batalha pedir perdão a Deus."
 
 Fonte: Pedro Weingärtner 1853-1929: Um Artista Entre o Velho e o Novo Mundo

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

"O tal prazer da escrita" - Texto de Eugénio Lisboa

 

Nikolai Ge (Russian painter, 1831–1894), Leo Tolstoy, 1882.
 

O tal prazer da escrita

 
A escrita é muitas coisas mas é também uma forma de salvação: ela descobre, ela acicata a memória, fecha-nos às aflições do momento, mergulhando-nos num universo prodigioso, escudado e inacessível às turbulências exteriores.

E cura-nos, pela alegria que nos dá o encontrar as palavras certas para exprimir o inefável.

A escrita é a melhor arma de defesa e de ataque de que dispomos. Nenhuma nos defende tão bem de uma ferida ou faz, nos outros, uma ferida tão perene.

A escrita foi inventada por alguém que precisava muito dela, para registar informações. Assim, começou por ser útil e passou a ser agonicamente necessária.

Escrevo, logo existo.
Mas também: escrevo, logo não sofro.

Quando escrevo, falo de um sofrimento que já foi, mas que deixa de o ser, no momento em que o escrevo. A funda alegria de o escrever mata o sofrimento que já se sentiu, mas se apaga ante o fulgor da escrita.

Como dizia Montherlant, o escritor é aquele ser peculiar, que sofre, não sofrendo.

O Camões que escreveu o “Alma minha” não sentia, no momento em que a invocava, saudades da morta, sua amada. O que ele sentia, no momento da escrita, era a alegria de escrever uma saudade, que sentira, antes de a escrever, mas que não podia sentir, no momento em que a escrevia.

O escritor é um monstro que mata, sem escrúpulos, no momento de o celebrar, o mais profundo sentimento que antes o afligira, para melhor o poder glosar, com os utensílios da sua arte.

A alegria de escrever, o tal prazer da escrita tem muito de inumano.

O grande escritor é, na sociedade em que vive, um suspeito a vigiar, porque pode ser perigoso. Por isso, o escritor Tonio Kröger, da famosa novela de Thomas Mann, ao regressar um dia, no tarde da sua vida, coberto de glória, à sua terra natal, torna-se suspeito, aos olhos da polícia local, que o toma por um malfeitor…

Não nos esqueçamos de que o grande William Faulkner declarou um dia que seria capaz de matar meia dúzia de velhinhas, se isso lhe permitisse escrever a belíssima ODE A UMA URNA GREGA, do poeta John Keats.

Um poeta é capaz de tudo, mesmo de vender a alma ao diabo, para acertar um verso ou colocar uma vírgula no lugar certo.

Quem não compreende isto não compreende nada deste ofício nem dos seus oficiantes.

 
 
Eugénio Lisboa (daqui)
 

Eugénio Lisboa, escritor e engenheiro português nasceu a 25 de maio de 1930, em Lourenço Marques (atual Maputo), e morreu a 9 de abril de 2024 vítima de doença oncológica.

Colaborou em diversos jornais e revistas e foi autor de programas radiofónicos de divulgação de teatro.

Dedicou-se ao estudo da literatura portuguesa e particularmente do Neorrealismo, tendo publicado, entre outros títulos, José Régio - A Obra e o Homem (1976), O Segundo Modernismo em Portugal (1977) e Poesia Portuguesa: do "Orpheu" ao Neorrealismo (1980).

Ocupou ainda o cargo de adido cultural da Embaixada de Portugal em Londres durante dezassete anos seguidos, entre 1978 e 1995.

Usou os pseudónimos literários Armando Vieira de Sá, John Land e Lapiro da Fonseca devido à censura do Estado Novo. (daqui)

domingo, 13 de outubro de 2024

"Tempestade" - Poema de Henriqueta Lisboa


Donald Zolan (American painter, 1937 - 2009)
 
 

Tempestade


– Menino, vem para dentro,
olha a chuva lá na serra,
olha como vem o vento!

– Ah, como a chuva é bonita
e como o vento é valente!

– Não sejas doido, menino,
esse vento te carrega,
essa chuva te derrete!

– Eu não sou feito de açúcar
para derreter na chuva.
Eu tenho força nas pernas
para lutar contra o vento!

E enquanto o vento soprava
e enquanto a chuva caía,
que nem um pinto molhado,
teimoso como ele só:

– Gosto de chuva com vento,
gosto de vento com chuva!


Henriqueta Lisboa
, in Lírica, 1958.
 

Donald Zolan, Rainy Day Pal., s.d.
 
 
"Se chove, tenho saudades do sol; se faz calor, tenho saudades da chuva."
 
José Lins do Rego, em dezembro de 1947; citado em "O moleque Ricardo: romance‎"
Página xiv, de José Lins do Rêgo - 1973 - 213 páginas.
 

sábado, 12 de outubro de 2024

"O susto" - Poema de Sidónio Muralha





O susto

 
Um hipopótamo turista
─ É estranho mas é verdade ─
Saiu da selva e foi ao dentista
No centro da cidade.

A rececionista ficou louca,
Fugiu toda a clientela
E quando o bicho abriu a boca
O dentista saltou pela janela.
 
"A dança dos pica-paus".

 
"A dança dos pica-paus" de Sidónio Muralha
Ilustrações de Eva Furnari, 32 páginas.
Global Editora, 10ª edição.
 
 
Sinopse


Mais uma vez o poeta português Sidónio Muralha demonstra sua versatilidade em lidar com a riqueza das palavras, sua sonoridade, seu jogo simbólico. E em A dança dos pica-paus, cria, com muito humor, 36 poemas, um para cada animal – curió, gralha, onça, tangará, siriri e todos ilustrados pelos traços incomparáveis de Eva Furnari.

Brinca flores/ um saí divertido/ de sete cores/ vestido./ Saia, saia das flores,/ por favor, saia daqui…/ E o saí-de-sete-cores/ sai saltitando das flores/ e responde: – já saí. De verso em verso, a criança conhece a força expressiva da palavra, da linguagem poética elaborada com rigor literário, e também conhece vários animais, suas características, seu hábitat. E mais: no final do livro há um glossário que dá informações precisas sobre todos eles. Sem dúvida, é um jeito gostoso de sentir a beleza do idioma e aprender sobre tantos animais. (daqui)

 

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

"Caixa mágica de surpresas" - Poema de Elias José



Donald Zolan (American painter, 1937 - 2009)



Um livro


Um livro
é uma beleza,
é caixa mágica
só de surpresa!

Um livro
parece mudo,
Mas nele a gente
descobre tudo.

Um livro
tem asas
longas e leves
que, de repente,
levam a gente
longe, longe.

Um livro
é parque de diversões
cheio de sonhos coloridos,
cheio de doces sortidos,
cheio de luzes e balões.

Um livro é uma floresta
com folhas e flores
e bichos e cores.
É mesmo uma festa,
um baú de feiticeiro,
um navio pirata do mar,
um foguete perdido no ar,
É amigo e companheiro.


Elias José,
in "Caixa Mágica de Surpresas", 1984. 


Elias José, "Caixa Mágica de Surpresas", 1984
Editora: PAULUS, 20º Edição, 24 páginas.
 
 
Descrição

Este livro é, de facto, uma caixa mágica de surpresa de onde surgem as histórias de animais, pessoas e situações, por meio da poesia com muito ritmo, som, imagens e rimas.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

"Lição de Biologia" - Poema de Ricardo Azevedo


 
Jenny Eugenia Nyström (Swedish painter and illustrator, 1854-1946)
 
 
 
Lição de Biologia


Eu plantei um pé de amor
no fundo da minha vida
a semente foi brotando
primeiro criou raiz
da raiz nasceu o broto
do broto nasceu o caule
do caule nasceu o galho
do galho nasceu a folha
da folha nasceu a flor
e da flor nasceu o fruto
e o fruto que era verde
depressa ficou maduro
e com ele eu fiz um doce
que eu dei pra você provar
que eu dei pra você querer
que eu dei pra você gostar.


Ricardo Azevedo

do livro "
Dezenove poemas desengonçados",
Ática, 1997.
 
 
"Dezenove poemas desengonçados" de Ricardo Azevedo.
Prémio Jabuti – Melhor Livro Infantil, 1999.
 

"As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças."
 
 

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

"Caminhos" - Poema de Francisco Bugalho


Oscar Björck (Swedish painter and a professor at the Royal Swedish Academy of Arts,
 1860 – 1929), Park Landscape.



Caminhos 



Para quê, caminhos do mundo,
Me atraís? — Se eu sei bem já
Que voltarei donde parto,
Por qualquer lado que vá.

Para quê? — Se a Terra é redonda;
E, sempre, tem de cumprir-se
A sina daquela onda
Que parece vai sumir-se,

Mas que volta, bem mais débil,
Ao meio do lago, onde
A mãe, gota d'água flébil,
Há muito tempo se esconde.

Para quê? — Se a folha viçosa
Na Primavera, feliz,
Amanhã será, gostosa,
Alimento da raiz.

Para quê, caminhos do mundo?
Para quê, andanças sem Fim?
Se todo o sonho profundo
Deste Mundo e do Outro-Mundo,
Não está neles, mas em mim. 
  in "Paisagem" 
 

terça-feira, 8 de outubro de 2024

"Outubro" - Poema de Carlos Drummond de Andrade

 

Gustavo Dall'Ara (Itália-Brasil, 1865-1923), Arcos da Lapa, Rio de Janeiro, s.d.
 

 
 Outubro

 
Outubro eleitoral, que desabrochas
da vaga primavera de setembro,
misturando biquínis e galochas,
ardor a frio, e coisas que relembro;

outubro já verão na areia clara
de praias leblonianas, espera
um silfo, uma sereia, forma rara
a desfazer-se em rosa na atmosfera;

outubro a despertar em rebeldia
(ó meu passado!) e tropas se alinhando
no caminho do Túnel: quem diria
que a liberdade é um não sei quê nem quando?

Outubro que em tu mesmo te pintavas
para fazer do sangue o selo rubro,
penhor de novos tempos, fúrias, lavas
de puro entusiasmo, ingénuo outubro;

eis que de novo trazes no regaço,
político, um mistério, ó mês estranho.
Outubro, tem paciência, o tempo é escasso
à solução de enigma assim tamanho.

À tua brisa, outubro, se renova
nossa velha esperança malograda
depois de tanta luta e tanta prova,
rumo a Juarez e Mílton, na alvorada.

Que nos darás, amigo? Um homem puro,
numa quadra de paz e grandes feitos?
Ou temos de chorar, de encontro ao muro,
nossos erros, nos erros dos eleitos?

Voltará o passado, outubro, outubro?
Voltarão as misérias e os enganos?
(Como sacerdotisa no delubro,
a musa explora em vão os teus arcanos.)

Que depende de nós, eu sei. No entanto,
à cósmica energia de teu bojo,
o amante e o cidadão se enchem de espanto,
e sob o influxo astral tombam de rojo…

Outubro escorpional, meu aracnídeo
postado entre Balança e Sagitário:
Órion persegue Diana? em vão: agride-o
teu pungente ferrão, de efeito vário.

Outubro americano, porta aberta
a mundos novos que eram velhos mundos,
permite-nos chegar à descoberta
de nós mesmos, nos pegos mais profundos.

Outubro, que afinal não és diverso
de outro qualquer dos meses da folhinha,
perdoa a sem-razão deste meu verso,
que eu te agradeço, outubro, a croniquinha.

02/10/1955

Carlos Drummond de Andrade
,
Versiprosa, 1967
 
"Versiprosa, palavra não dicionarizada, como tantas outras, acudiu-me para qualificar a matéria deste livro. Nele se reúnem crónicas publicadas no Correio da Manhã e em outros jornais do país; umas poucas, no Mundo Ilustrado. Crónicas que transferem para o verso comentários e divagações da prosa. Não me animo a chamá-las de poesia. Prosa, a rigor, deixaram de ser. Então, versiprosa
Quero lembrar que as farpas dirigidas nestes escritos à ação de políticos jamais filtraram paixão ou interesse partidário nem assumiram cunho pessoal. Exprimiram a reação de um observador sem compromisso, que há muito se desligou de ilusões políticas, e, geralmente, prefere falar de outras coisas mais gratas entre o céu e a terra." - Carlos Drummond de Andrade
 
 
Carlos Drummond de Andrade, Versiprosa
Capa: Raul Loureiro
Companhia das Letras
 
 
RESUMO
 
 
Versiprosa é composto por "crónicas que transferem para o verso comentários e divagações da prosa", conforme esclarece o próprio Drummond. O resultado é uma dicção literária original, pronta a decifrar o quotidiano e propor um enquadramento inquieto do Brasil das décadas de 1950 e 1960. Em possível diálogo com o exemplo de Machado de Assis, que também publicou crónicas em verso, o escritor itabirano apresenta, nos mais de cem textos reunidos no volume, uma voz sensível e mordaz, que persegue com tenacidade as novidades e assombros de seu tempo. Escolado nos diversos assuntos propostos pelo noticiário, o cronista-poeta de Versiprosa forja uma linguagem espirituosa, cuja agilidade se propõe a tomar o pulso à atualidade com graça e leveza. (daqui)
 
  

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

"O Vento e Eu" - Poema de Mário Quintana

 


Antônio Parreiras (Pintor, ilustrador, escritor e professor brasileiro, 1860–1937),
Ventania, 1888, Pinacoteca do Estado de São Paulo.



O vento e eu


O vento morria de tédio
Porque apenas gostava de cantar
Mas não tinha letra alguma para a sua própria voz,
Cada vez mais vazia…

Tentei então compor-lhe uma canção
Tão comprida como a minha vida
E com aventuras espantosas que eu inventava de súbito,
Como aquela em que menino eu fui roubado pelos ciganos
E fiquei vagando sem pátria, sem família, sem nada neste vasto mundo…
Mas o vento, por isso
Me julga agora como ele…
E me dedica um amor solidário, profundo!


Mário Quintana, in "Velório sem defunto", 1990.