segunda-feira, 14 de outubro de 2024

"O tal prazer da escrita" - Texto de Eugénio Lisboa

 

Nikolai Ge (Russian painter, 1831–1894), Leo Tolstoy, 1882.
 

O tal prazer da escrita

 
A escrita é muitas coisas mas é também uma forma de salvação: ela descobre, ela acicata a memória, fecha-nos às aflições do momento, mergulhando-nos num universo prodigioso, escudado e inacessível às turbulências exteriores.

E cura-nos, pela alegria que nos dá o encontrar as palavras certas para exprimir o inefável.

A escrita é a melhor arma de defesa e de ataque de que dispomos. Nenhuma nos defende tão bem de uma ferida ou faz, nos outros, uma ferida tão perene.

A escrita foi inventada por alguém que precisava muito dela, para registar informações. Assim, começou por ser útil e passou a ser agonicamente necessária.

Escrevo, logo existo.
Mas também: escrevo, logo não sofro.

Quando escrevo, falo de um sofrimento que já foi, mas que deixa de o ser, no momento em que o escrevo. A funda alegria de o escrever mata o sofrimento que já se sentiu, mas se apaga ante o fulgor da escrita.

Como dizia Montherlant, o escritor é aquele ser peculiar, que sofre, não sofrendo.

O Camões que escreveu o “Alma minha” não sentia, no momento em que a invocava, saudades da morta, sua amada. O que ele sentia, no momento da escrita, era a alegria de escrever uma saudade, que sentira, antes de a escrever, mas que não podia sentir, no momento em que a escrevia.

O escritor é um monstro que mata, sem escrúpulos, no momento de o celebrar, o mais profundo sentimento que antes o afligira, para melhor o poder glosar, com os utensílios da sua arte.

A alegria de escrever, o tal prazer da escrita tem muito de inumano.

O grande escritor é, na sociedade em que vive, um suspeito a vigiar, porque pode ser perigoso. Por isso, o escritor Tonio Kröger, da famosa novela de Thomas Mann, ao regressar um dia, no tarde da sua vida, coberto de glória, à sua terra natal, torna-se suspeito, aos olhos da polícia local, que o toma por um malfeitor…

Não nos esqueçamos de que o grande William Faulkner declarou um dia que seria capaz de matar meia dúzia de velhinhas, se isso lhe permitisse escrever a belíssima ODE A UMA URNA GREGA, do poeta John Keats.

Um poeta é capaz de tudo, mesmo de vender a alma ao diabo, para acertar um verso ou colocar uma vírgula no lugar certo.

Quem não compreende isto não compreende nada deste ofício nem dos seus oficiantes.

 
 
Eugénio Lisboa (daqui)
 

Eugénio Lisboa, escritor e engenheiro português nasceu a 25 de maio de 1930, em Lourenço Marques (atual Maputo), e morreu a 9 de abril de 2024 vítima de doença oncológica.

Colaborou em diversos jornais e revistas e foi autor de programas radiofónicos de divulgação de teatro.

Dedicou-se ao estudo da literatura portuguesa e particularmente do Neorrealismo, tendo publicado, entre outros títulos, José Régio - A Obra e o Homem (1976), O Segundo Modernismo em Portugal (1977) e Poesia Portuguesa: do "Orpheu" ao Neorrealismo (1980).

Ocupou ainda o cargo de adido cultural da Embaixada de Portugal em Londres durante dezassete anos seguidos, entre 1978 e 1995.

Usou os pseudónimos literários Armando Vieira de Sá, John Land e Lapiro da Fonseca devido à censura do Estado Novo. (daqui)

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