Gustavo Dall'Ara (Itália-Brasil, 1865-1923), Arcos da Lapa, Rio de Janeiro, s.d.
Outubro
Outubro eleitoral, que desabrochas
da vaga primavera de setembro,
misturando biquínis e galochas,
ardor a frio, e coisas que relembro;
outubro já verão na areia clara
de praias leblonianas, espera
um silfo, uma sereia, forma rara
a desfazer-se em rosa na atmosfera;
outubro a despertar em rebeldia
(ó meu passado!) e tropas se alinhando
no caminho do Túnel: quem diria
que a liberdade é um não sei quê nem quando?
Outubro que em tu mesmo te pintavas
para fazer do sangue o selo rubro,
penhor de novos tempos, fúrias, lavas
de puro entusiasmo, ingénuo outubro;
eis que de novo trazes no regaço,
político, um mistério, ó mês estranho.
Outubro, tem paciência, o tempo é escasso
à solução de enigma assim tamanho.
À tua brisa, outubro, se renova
nossa velha esperança malograda
depois de tanta luta e tanta prova,
rumo a Juarez e Mílton, na alvorada.
Que nos darás, amigo? Um homem puro,
numa quadra de paz e grandes feitos?
Ou temos de chorar, de encontro ao muro,
nossos erros, nos erros dos eleitos?
Voltará o passado, outubro, outubro?
Voltarão as misérias e os enganos?
(Como sacerdotisa no delubro,
a musa explora em vão os teus arcanos.)
Que depende de nós, eu sei. No entanto,
à cósmica energia de teu bojo,
o amante e o cidadão se enchem de espanto,
e sob o influxo astral tombam de rojo…
Outubro escorpional, meu aracnídeo
postado entre Balança e Sagitário:
Órion persegue Diana? em vão: agride-o
teu pungente ferrão, de efeito vário.
Outubro americano, porta aberta
a mundos novos que eram velhos mundos,
permite-nos chegar à descoberta
de nós mesmos, nos pegos mais profundos.
Outubro, que afinal não és diverso
de outro qualquer dos meses da folhinha,
perdoa a sem-razão deste meu verso,
que eu te agradeço, outubro, a croniquinha.
02/10/1955
Carlos Drummond de Andrade,
Versiprosa, 1967
da vaga primavera de setembro,
misturando biquínis e galochas,
ardor a frio, e coisas que relembro;
outubro já verão na areia clara
de praias leblonianas, espera
um silfo, uma sereia, forma rara
a desfazer-se em rosa na atmosfera;
outubro a despertar em rebeldia
(ó meu passado!) e tropas se alinhando
no caminho do Túnel: quem diria
que a liberdade é um não sei quê nem quando?
Outubro que em tu mesmo te pintavas
para fazer do sangue o selo rubro,
penhor de novos tempos, fúrias, lavas
de puro entusiasmo, ingénuo outubro;
eis que de novo trazes no regaço,
político, um mistério, ó mês estranho.
Outubro, tem paciência, o tempo é escasso
à solução de enigma assim tamanho.
À tua brisa, outubro, se renova
nossa velha esperança malograda
depois de tanta luta e tanta prova,
rumo a Juarez e Mílton, na alvorada.
Que nos darás, amigo? Um homem puro,
numa quadra de paz e grandes feitos?
Ou temos de chorar, de encontro ao muro,
nossos erros, nos erros dos eleitos?
Voltará o passado, outubro, outubro?
Voltarão as misérias e os enganos?
(Como sacerdotisa no delubro,
a musa explora em vão os teus arcanos.)
Que depende de nós, eu sei. No entanto,
à cósmica energia de teu bojo,
o amante e o cidadão se enchem de espanto,
e sob o influxo astral tombam de rojo…
Outubro escorpional, meu aracnídeo
postado entre Balança e Sagitário:
Órion persegue Diana? em vão: agride-o
teu pungente ferrão, de efeito vário.
Outubro americano, porta aberta
a mundos novos que eram velhos mundos,
permite-nos chegar à descoberta
de nós mesmos, nos pegos mais profundos.
Outubro, que afinal não és diverso
de outro qualquer dos meses da folhinha,
perdoa a sem-razão deste meu verso,
que eu te agradeço, outubro, a croniquinha.
02/10/1955
Carlos Drummond de Andrade,
Versiprosa, 1967
"Versiprosa,
palavra não dicionarizada, como tantas outras, acudiu-me para
qualificar a matéria deste livro. Nele se reúnem crónicas publicadas no Correio da Manhã e em outros jornais do país; umas poucas, no Mundo Ilustrado.
Crónicas que transferem para o verso comentários e divagações da prosa.
Não me animo a chamá-las de poesia. Prosa, a rigor, deixaram de ser.
Então, versiprosa.
Quero
lembrar que as farpas dirigidas nestes escritos à ação de políticos
jamais filtraram paixão ou interesse partidário nem assumiram cunho
pessoal. Exprimiram a reação de um observador sem compromisso, que há
muito se desligou de ilusões políticas, e, geralmente, prefere falar de
outras coisas mais gratas entre o céu e a terra." - Carlos Drummond de Andrade
Capa: Raul Loureiro
Companhia das Letras
Companhia das Letras
RESUMO
Versiprosa é composto por "crónicas que transferem para o verso comentários e divagações da prosa", conforme esclarece o próprio Drummond. O resultado é uma dicção literária original, pronta a decifrar o quotidiano e propor um enquadramento inquieto do Brasil das décadas de 1950 e 1960. Em possível diálogo com o exemplo de Machado de Assis, que também publicou crónicas em verso, o escritor itabirano apresenta, nos mais de cem textos reunidos no volume, uma voz sensível e mordaz, que persegue com tenacidade as novidades e assombros de seu tempo. Escolado nos diversos assuntos propostos pelo noticiário, o cronista-poeta de Versiprosa forja uma linguagem espirituosa, cuja agilidade se propõe a tomar o pulso à atualidade com graça e leveza. (daqui)
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