domingo, 23 de outubro de 2011

"Rosto Afogado" - Poema de Eugénio de Andrade


Rosto Afogado


Para sempre um luar de naufrágio 
anunciará a aurora fria. 
Para sempre o teu rosto afogado, 
entre retratos e vendedores ambulantes, 
entre cigarros e gente sem destino, 
flutuará rodeado de escamas cintilantes. 

Se me pudesse matar, 
seria pela curva doce dos teus olhos, 
pela tua fronte de bosque adormecido, 
pela tua voz onde sempre amanhecia, 
pelos teus cabelos onde o rumor da sombra 
era um rumor de festa, 
pela tua boca onde os peixes se esqueciam 
de continuar a viagem nupcial. 
Mas a minha morte é este vaguear contigo 
na parte mais débil do meu corpo, 
com uma espinha de silêncio 
atravessada na garganta. 

Não sei se te procuro ou se me esqueço 
de ti quando acaso me debruço 
nuns olhos subitamente acesos 
ao dobrar de uma esquina, 
na boca dos anjos embriagados 
de tanta solidão bebida pelos bares, 
nas mãos levemente adolescentes 
poisadas na indolência dos joelhos. 
Quem me dirá que não é verdade 
o teu rosto afogado, o teu rosto perdido, 
de sombra em sombra, nas ruas da cidade? 

Ninguém te conheceu, 
ninguém viu romper a luz na tua cama, 
ninguém sabe, ninguém, 
que o teu corpo, continente selvagem, 
se desvelava por uma pedra branca 
atirada contra o nevoeiro. 

Por isso escrevo esta elegia 
como quem oferece a luz dos olhos; 
por isso canto o teu rosto afogado 
como quem canta um funeral de espigas. 


 in As Palavras Interditas 


Autorretrato de Eliseu Visconti, 1902, 
Óleo sobre tela, 64 x 48 cm


Eliseo d'Angelo Visconti (Giffoni Valle Piana, 30 de julho de 1866 — Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1944) foi um pintor, desenhista e designer ítalo-brasileiro ativo entre os séculos XIX e XX. É considerado um dos mais importantes artistas brasileiros do período e o mais expressivo representante da pintura impressionista no Brasil.


Eliseu Visconti, Moça no Trigal - c.1916


"A educação é para a alma o que a escultura é para um bloco de mármore".

- What sculpture is to a block of marble, education is to the human soul.
"The Spectator (1711-1714)"; No. 215 (6 de novembro de 1711)


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