sábado, 24 de maio de 2014

"Envelhecer" - Texto de Sándor Márai


Theodore Roussel (English Painter, 1847-1926), The Reading Girl, 1886-7,



Envelhecer


“Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer... 

Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. 

Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exatidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal... e isso é precisamente a velhice. Porém, há ainda algo vivo no teu coração, uma recordação, algum objetivo de vida indefinido, gostarias de tornar a ver alguém, gostarias de saber ou dizer alguma coisa, e sabes bem que um dia chegará esse momento e então, de repente, já não será tão fatalmente importante saber e responder à verdade, como pensaste durante as décadas de espera. Uma pessoa compreende o mundo, pouco a pouco, e depois morre. Compreende os fenómenos e a razão das ações humanas. A linguagem inconsciente… porque as pessoas comunicam as suas razões por símbolos, já reparaste? Como se falassem numa língua estrangeira ou em chinês, sobre as coisas essenciais, e depois essa língua estrangeira tem de ser traduzida para a linguagem da realidade. Não sabemos nada de nós próprios. Falamos sempre sobre os nossos desejos, e tentamos esconder-nos desesperada e inconscientemente. A vida torna-se quase interessante, quando já aprendeste as mentiras das pessoas, e começas a desfrutar e a notar que dizem sempre uma coisa diferente daquilo que pensam e querem realmente…” 

Sándor Márai, in 'As Velas Ardem Até ao Fim' 



Sándor Márai
 
Sándor Márai (Sándor Károly Henrik Grosschmid nasceu em Košice, Eslováquia, 11 de abril de 1900 — San Diego, E.U.A, 22 de fevereiro de 1989), foi um escritor, poeta e jornalista húngaro
Escreveu seu primeiro romance aos 24 anos. Autor de mais de sessenta livros, Sándor Márai pode ser definido como um verdadeiro amante dos valores morais e civis. Em 1919, vai viver em Berlim e depois em Frankfurt, Alemanha. Começa a trabalhar como jornalista em 1920. Em 1945, é eleito membro da Academia Húngara de Ciências. No ano de 1948 saí de Budapeste num auto-exílio, inconformado com as ideias do regime comunista em seu país e deseja tornar-se cidadão americano. Um liberal acima de tudo, Sándor Márai tinha a plena convicção de que jamais poderia experimentar seu ideal de liberdade numa sociedade dominada pelo comunismo. 
Márai sempre escreveu em húngaro e produziu a maior parte de suas obras no período entre 1928 e 1948. Pagou um alto preço por suas opiniões contrárias ao regime comunista. Durante toda a sua vida Sándor Márai teve sua sorte modificada e influenciada pela guerra e pelos conflitos políticos em seu país. 
Num momento, em que era muito respeitado e estimado por todos em seu país, como um dos maiores escritores da Hungria, e da Europa, toda sua obra foi proibida e Sándor Márai, caíu no esquecimento, exceto na emigração húngara, no Ocidente, que continuou publicá-lo. 
Márai foi sempre um crítico inconformado com a ascensão do comunismo. Considerava a liberdade de pensamento fundamental, para que o homem possa conquistar respeito e conhecer a felicidade. Alguns críticos nunca aceitaram sua posição e por muito tempo desprezaram suas criações literárias, que traziam um retrato fiel da decadência da burguesia. Era considerado por muitos como um escritor de classe média. Depois de morar na Suíça e na Inglaterra, vive por algum tempo em Nova York. 
Em 1968 depois de passar um tempo em Salermo, Itália, muda-se para San Diego, na Califórnia, onde vive até suicidar-se em 1989, com um tiro na cabeça, poucos meses antes da queda do muro de Berlim. 
Foi preciso esperar várias décadas, até à queda do regime comunista, para que este extraordinário escritor fosse redescoberto no seu país e no mundo inteiro. (Daqui)

"O húngaro Sándor Márai foi o cronista perspicaz de um mundo em colapso."  
 
 (Le Monde)

Estátua de Sándor Márai em Košice


“Por vezes penso no que ganhámos com toda a nossa inteligência, orgulho e superioridade? Se não tivesse sido aquela atração penosa por uma mulher que morreu, qual teria sido o verdadeiro conteúdo da nossa vida? Sei que é uma pergunta difícil. Eu não sei responder-lhe. Vivi tudo, vi tudo, e não sei responder a essa pergunta. Vi a paz e guerra, vi miséria e grandiosidade, vi-te cobarde e vi-me a mim mesmo vaidoso, vi luta e concordância. Mas no fundo, o significado da vida e das nossas ações talvez tenha sido esse o laço que nos uniu a alguém – laço ou paixão, chama-lhe o que quiseres.”

Sándor Márai, in 'As Velas Ardem Até ao Fim'

Sem comentários: