Charles Courtney Curran, Afternoon in the Cluny Garden, Paris, 1889
Nasceste
Nasceste do outro lado,
onde o sol nunca destruiu os negros signos
da escuridão,
onde o terror do pai,
o distraído olhar da mãe,
o silêncio dos irmãos, faz crescer em ti as
imperecíveis flores da amargura.
Foste sempre
a equívoca imagem dos espelhos: um sorriso
era uma lágrima.
À tua volta estava escrito:
o amor é uma espada de fogo, às vezes mata.
Navegaste turvos oceanos cujas vagas alterosas,
nunca antes vistas,
batiam no teu assombro.
Atravessaste os ares, muito perto do céu,
mas nunca viste as altas mansões de Deus.
Eras apenas o anjo,
aquela que nunca pôde deixar as estâncias do
sono.
Entregaste, sem saber, os segredos do teu corpo,
tão predisposto à imolação.
Choraste tantas vezes,
em quartos de persianas descidas, que a morte
habitava,
sem fazer ruído.
Hoje,
não dizes nada.
Levas sobre os ombros um xaile de magoada renda.
Vestes quase sempre de negro.
Vais e vens,
ao longo dos labirintos onde em cada esquina
espreita o tigre.
Não sabes o que fazer com as mãos frias,
povoadas de angustiantes anéis.
Não bordas o livro das tuas horas,
e o dedal das avós dementes caiu sempre no
chão.
A chuva caiu sempre nos teus dias,
e caminhaste pelas ruas, à deriva, cabisbaixa,
como se pedisses perdão.
Ninguém te ouviu,
pois não havia palavras debruçadas da tua
boca.
Era sempre Inverno.
E quando ele chegou,
o filho pródigo de uma ilha,
parecia que enfim poderias cantar nos jardins da
paixão, na elevação das chamas.
Mas não.
Assassinaste sempre a ternura que ele ainda
guardava no devassado cofre da sua idade.
Suicidaste-te.
'Esta voz é quase o vento'
Assírio & Alvim, 2004
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