Maria Helena Vieira da Silva, Paris, 1951
Confissão
Uma vez, uma só, graciosa e doce amante,
Teu suave braço sobre o meu
Pousou (no fundo em trevas de minha alma, o instante
Que então vivemos não morreu);
Era bem tarde; qual efígie luminosa,
A lua cheia se exibia,
Enquanto a noite, como um rio, majestosa,
Sobre Paris em calma fluía.
E junto às casas, por debaixo dos portais,
Gatos furtivos se moviam,
O ouvido alerta, ou, como sombras fraternais,
A passo lento nos seguiam.
Súbito, em meio àquela intimidade franca
Nascida a luz ainda escassa,
De ti, rico instrumento ao qual nunca se arranca
Senão a mais vibrante graça,
De ti, alegre e clara como uma fanfarra
Imersa na manhã radiante,
Uma nota queixosa, uma nota bizarra
No ar oscilou toda hesitante
Qual menino franzino e macilento e imundo,
A quem os pais, por pejo ou medo,
Longo tempo escondessem aos olhos do mundo,
Como se esconde um vil segredo.
Anjo infeliz, ela trauteava a nota aguda:
“Aqui na Terra é tudo engano,
E mesmo que a si próprio alguém sempre se iluda,
Revela-se o egoísmo humano;
Ser bela é ofício cujo preço se conhece,
É o espetáculo banal
Da bailarina louca e fria que fenece
Com um sorriso maquinal;
Semear nos corações é sucumbir ao pranto;
Finda-se o amor, vem a saudade,
Até que o Esquecimento os arremesse a um canto
E os lance enfim à Eternidade!”
Muita vez evoquei esta lua encantada,
Este silêncio noite afora,
E esta medonha confidência sussurrada
Ao coração que a escuta agora.
Charles Baudelaire, in As flores do mal
Tradução de Ivan Junqueira
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