sábado, 19 de agosto de 2017

"Um ofício que fosse de intensidade e calma" - Poema de António Ramos Rosa


Émile Bernard (1868-1941), Buckwheat Harvesters at Pont Aven, 1888



Um ofício


Um ofício que fosse de intensidade e calma
e de um fulgor feliz
E que durasse com a densidade ardente e contemporâneo
de quem está no elemento aceso e é a estatura
da água num corpo de alegria
 E que fosse fundo o fervor de ser a metamorfose da matéria
que já não se separa da incessante busca
que se identifica com a concavidade originária
que nos faz andar e estar de pé
expostos sempre à única face do mundo
Que a palavra fosse sempre a travessia
de um espaço em que ela própria fosse aérea
do outro lado de nós e do outro lado de cá
tão idêntica a si que unisse o dizer e o ser
e já sem distância e não-distância nada a separasse
desse rosto que na travessia é o rosto do ar e de nós próprios


António Ramos Rosa, in "Poemas Inéditos"


Émile Bernard (1868-1941), Pink Street in Pont-Aven, 1892 
Private collection


O Silêncio não existe


O silêncio não existe porque é o constante rumor de uma inexistência. O que se ouve, para além do movimento da cidade, é o monótono murmúrio do nada. Apenas sombra de nada, quem nele procura um apelo ou uma resposta não os encontra ou encontra um sinal negativo. Nada diz esse murmúrio nulo, que é o eco inalterável do vazio do mundo, mas quem o ouve sente a radicalidade da sua negação como se a cada momento nos dissesse: Não há. 

António Ramos Rosa, in 'Relâmpago de Nada'


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