segunda-feira, 30 de abril de 2018

"A rapariga inglesa, uma loura, tão jovem, tão boa" - Poema de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa


Richard Edward Miller (American Impressionist painter, 1875 –1943),
 At The Window, c. 1910-1912.



A rapariga inglesa


A rapariga inglesa, uma loura, tão jovem, tão boa
Que queria casar comigo...
Que pena eu não ter casado com ela...
Teria sido feliz
Mas como é que eu sei se teria sido feliz?
Como é que eu sei qualquer coisa a respeito do que teria sido
Do que teria sido, que é o que nunca foi?

Hoje arrependo-me de não ter casado com ela,
Mas antes que até a hipótese de me poder arrepender de ter casado com ela.
E assim é tudo arrependimento,
E o arrependimento é pura abstração.
Dá um certo desconforto
Mas também dá um certo sonho...

Sim, aquela rapariga foi uma oportunidade da minha alma.
Hoje o arrependimento é que é afastado da minha alma.
Santo Deus! que complicação por não ter casado com uma inglesa que já me deve ter esquecido!...
Mas se não me esqueceu?
Se (porque há disso) me lembra ainda e é constante
(Escuso de me achar feio, porque os feios também são amados
E às vezes por mulheres!)
Se não me esqueceu, ainda me lembra.
Isto, realmente, é já outra espécie de arrependimento.
E fazer sofrer alguém não tem esquecimento.

Mas, afinal, isto são conjeturas da vaidade.
Bem se há de ela lembrar de mim, com o quarto filho nos braços,
Debruçada sobre o Daily Mirror a ver a Pussy Maria.

Pelo menos é melhor pensar que é assim.
É um quadro de casa suburbana inglesa,
É uma boa paisagem íntima de cabelos louros,
E os remorsos são sombras...
Em todo o caso, se assim é, fica um bocado de ciúme.
O quarto filho do outro, o Daily Mirror na outra casa.
O que podia ter sido...
Sim, sempre o abstrato, o impossível, o irreal mas perverso —
O que podia ter sido.
Comem marmelade ao pequeno almoço em Inglaterra...
Vingo-me em toda a linguagem inglesa de ser um parvo português.

Ah, mas ainda vejo
O teu olhar realmente tão sincero como azul
A olhar como uma outra criança para mim...
E não é com piadas de sal do verso que te apago da imagem
Que tens no meu coração;
Não te disfarço, meu único amor, e não quero nada da vida.


29-6-1930

Álvaro de Campos,
Heterónimo de Fernando Pessoa


Richard Edward Miller, Reverie, 1916, oil on canvas.


"Quem quiser ter saúde no corpo, procure tê-la na alma."



domingo, 29 de abril de 2018

"Jura" - Poema de Antero de Quental




Jura



Pelas rugas da fronte que medita...
Pelo olhar que interroga — e não vê nada...
Pela miséria e pela mão gelada
Que apaga a estrela que nossa alma fita...

Pelo estertor da chama que crepita
No último arranco d'uma luz minguada...
Pelo grito feroz da abandonada
Que um momento de amante fez maldita...

Por quanto há de fatal, que quanto há misto
De sombra e de pavor sob uma lousa...
Oh pomba meiga, pomba de esperança!

Eu te juro, menina, tenho visto
Coisas terríveis — mas jamais vi coisa
Mais feroz do que um riso de criança!
 in "Sonetos"