segunda-feira, 27 de maio de 2019

"Canção de Primavera" - Poema de José Régio


Retrato de José Régio, sd, por Júlio Resende



Canção de Primavera


Eu, dar flor, já não dou. Mas vós, ó flores,
Pois que Maio chegou,
Revesti-o de clâmides de cores!
Que eu, dar, flor, já não dou.

Eu, cantar, já não canto. Mas vós, aves,
Acordai desse azul, calado há tanto,
As infinitas naves!
Que eu, cantar, já não canto.

Eu, Invernos e Outonos recalcados
Regelaram meu ser neste arrepio…
Aquece tu, ó sol, jardins e prados!
Que eu, é de mim o frio.

Eu, Maio, já não tenho. Mas tu, Maio,
Vem com tua paixão,
Prostrar a terra em cálido desmaio!
Que eu, ter Maio, já não.

Que eu, dar flor, já não dou; cantar, não canto;
Ter sol, não tenho; e amar…
Mas, se não amo,
Como é que, Maio em flor, te chamo tanto,
E não por mim assim te chamo?


José Régio

"Mas que sei eu" - Poema de Ruy Belo


Júlio Resende, Jogando às damas, 1945



Mas que sei eu


Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?

Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono

Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha

qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha


Ruy Belo
,
Transporte no Tempo, 1973


domingo, 26 de maio de 2019

"Homem" - Poema de António Gedeão





Homem 


Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.


António Gedeão,
in 'Movimento Perpétuo'

sexta-feira, 24 de maio de 2019

"Abrigo" - Poema de Edmundo Bettencourt


Edward Hopper, New York Interior, c. 1921, Whitney Museum of American Art.



Abrigo


Presa da chuva corre a prostituta,
corre presa,
e em frente é a porta aberta do palácio que lhe acena.

Mas à entrada,
o resto duma sereia emerge do escuro,
e um lobo acorda do sono dum tapete,
com uma risonha flor nos dentes,

que a uma claridade subterrânea
o palácio está sem teto,
suas paredes transparecem,
todo ele é uma poça de água cintilando!

  Fora,
uma lira de chuva num deserto
acena à prostituta…


Edmundo Bettencourt, Poemas Surdos
Assírio & Alvim
,
1981.


quinta-feira, 23 de maio de 2019

"Devia morrer-se de outra maneira" - Poema de José Gomes Ferreira


Seymour Joseph Guy, Brooklyn in Winter



Devia morrer-se de outra maneira


Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.

Quando nos sentíssemos cansados,
fartos do mesmo sol, a fingir de novo todas as manhãs,
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer:
“Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se
em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio”.

E então, solenemente, com passos de reter tempo,
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia,
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio.

“Adeus! Adeus!”

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes…
primeiro, os olhos… em seguida, os lábios…
depois os cabelos… a carne, em vez de apodrecer,
começaria a transfigurar-se em fumo…
tão leve… tão subtil… tão pólen…
como aquela nuvem além (veem?)

Nesta tarde de Outono 
ainda tocada por um vento de lábios azuis…

terça-feira, 14 de maio de 2019

"Hoje para morrer" - Poema de Fernando Echevarria


Hessam Abrishami, Harmonic Night



Hoje para morrer


Hoje, para morrer era preciso
que a música viesse. E nos beijasse
as pálpebras por dentro. E um sorriso
desceria da água à nossa face.

Tudo seria finalmente liso
como um rio que nunca mais passasse.
Tudo seria tudo, não sendo preciso
um relógio qualquer que nos guardasse

o grande amor que então percorreria
o corpo. Chamar-lhe-iam gravidade,
ou peso, ou nada, ou, simplesmente, fria

inércia, fim. Mas quem respira sabe-
-lhe a fundo o nome. De raiz diria:
"amor irresistível. Terra. Ou nave."


 in "Sobre as Horas", 1963
 

sábado, 4 de maio de 2019

"A Lebre e a Tartaruga" - Poema de Curvo Semedo


"A Lebre e a Tartaruga", Ilustração de Milo Winter 



A Lebre e a Tartaruga

(Fábula)


«Apostemos», disse à lebre
A tartaruga matreira,
«Que eu chego primeiro ao alvo
Do que tu, que és tão ligeira!»
 
«Cala a boca, toleirona,»
Lhe disse a lebre mofando,
«Ou tens perdida a cabeça,
Ou comigo estás zombando.» 

Respondeu-lhe a tartaruga:
«Nisso me estás a entender
Que receias apostar
Porque não queres perder.»

«Pois tu, vã, que és uma lesma
Queres competir com a lebre?
Isso é doença, estás vária, 
Provém do efeito da febre;

Eu, que por uma charneca
Corro dos galgos em frente,
Que os canso, sem que me possa
No lombo ferrar o dente,

Havia temer a quem
Gasta uma hora em dar um passo?»
Retrucou-lhe a tartaruga
Com todo o desembaraço:

«Leva, amiga, de bazófias
Desculpas não valem nada;
Se tem medo não aposte,
Porém, dê-se por cangada. 

Ando no mar e na terra;
Sei muito bem o que é mundo,
Propus-me a apostar contigo
Porque sei no que me fundo.»

«Pois vá feito,» diz a lebre;
«E aquele velho sobreiro
Seja a meta, e leve o prémio
A que chegar lá primeiro;

De juiz não precisamos;
Porque eu na meta vou pôr
As apostas que serão
Da primeira que lá for.» 

Eis vai cumprir o que ajusta,
E volta num breve prazo;
Não digo o que foi a aposta
Porque isso não vem ao caso.

Dado o sinal da partida,
Estando as duas a par,
A tartaruga começa
Lentamente a caminhar.

A lebre tendo vergonha
De correr diante dela,
Tratando uma tal vitória
De peta ou de bagatela,

Julga, cheia de vaidade,
Que ainda tempo lhe sobeja
Se entrar a correr já quando
Perto do sobreiro a veja.

Deita-se, e dorme o seu pouco;
Ergue-se, e põe-se a observar
De que parte corre o vento,
E depois entra a pastar;

Eis deita uma vista de olhos
Sobre a caminhante sorna,
Inda a vê longe da meta,
E a pastar de novo torna.

Olha; e depois que a vê perto,
Começa a sua carreira;
Mas então apressa os passos
A tartaruga matreira.

À meta chega primeiro,
Apanha o prémio apressada,
Pregando à lebre vencida
Uma grande surriada.

Não basta só haver posses
Para obter o que intentamos;
É preciso pôr-lhe os meios,
Quando não, atrás ficamos.

O contendor não desprezes
Por fraco, se te investir;
Porque um anão acordado
Mata um gigante a dormir.


 in Composições Poéticas  
Tradução livre das Fábulas de La Fontaine

"A Lebre e a Tartaruga" é uma das Fábulas de Esopo (Esopo (620560 a.C.), que foi posteriormente recontada por Jean de La Fontaine (16211695), na qual uma lenta tartaruga vence a corrida de uma lebre. Moral da História: 'Quem corre cansa, mas devagar se vai longe.' (Daqui) 

quinta-feira, 2 de maio de 2019

"Receita de homem" - Poema de Lúcio Cardoso


Frantisek Kupka, The Beginning of Life, c.1900 (Symbolism
 


Receita de homem


Depois deve ser alto,
sem lembrar o frio estilo da palmeira.
Moreno sem excesso para que se encontre
tons de sol de agosto em seus cabelos.
E nem louro demais para que, de repente
no olhar cintile algo da cigana pátria adormecida.
E que tenha mãos grandes, para demorados carinhos
e adeuses que se retardem ao peso do próprio gesto.
Pés grandes, também, porque não,
para que os regressos sejam breves
e haja resistência para as conjuntas caminhadas.
Os olhos falem, falem sempre, falem
de amor, de ciúme, de morte ou traição.
Mas que falem. Porque o homem sem a música dos olhos
é como sepultura exposta ao sol do meio-dia.
E que o riso relembre um pouco da infância,
para que se tenha, no fervor do beijo,
uma memória de pitanga e amora esmagadas
Ah, o corpo! Sucedam alvoradas ao longo do tórax gentil,
e escureça a penugem até o sexo velado.
(Mas não definitivamente.)
E o seu passo lembre a dança, mas com firmeza,
e o seu rastro fale de perfume, sem perfume
e escorram pausados rios em seus flancos hieráticos.
E que ele cante, sem cantar
por toda a sua humana contextura,
para que também em torno dele as coisas cantem,
quando, como o primeiro homem,
nu ele se erguer defronte ao mar.


Canto do Rio, 3/XII/55

Lúcio Cardoso
,  
Poesia completa.
 Ed. crítica de Ésio Macedo Ribeiro. 
São Paulo: Edusp, 2011