terça-feira, 15 de outubro de 2019

"Amantia Verba" - Poema de Azevedo Cruz


 


Amantia Verba

                     Ao Pereira Nunes
"Esta é a ditosa Pátria minha amada”
(Camões

Campos formosa, intrépida amazona
Do viridente plaino Goitacás!
Predileta do Luar como Verona,
Terra feita de luz e madrigais!

Na planura sem fim do teu regaço
Quem poderá dizer que o sol se esconde?
Para subir aqui — sobra-lhe espaço!
Para descer aqui — não tem por onde!

Oh Paraíba, oh mágica torrente
Soberana dos prados e vergéis!
Por onde passas, como um rei do oriente,
Os teus vassalos vêm beijar-te os pés!

De Otelo tens a cólera, alteroso,
E o quebranto das pérfidas sereias:
Ora revel, nas formidáveis cheias,
Ora em tranquilo e plácido repouso!

Pelo teu dorso quérulo e undiflavo
Vogam lamentos como nunca ouvi...
Ecos talvez das lágrimas do Schiavo,
Ou dos tristes amores de Peri!

Quanta vez fui contar-te as minhas mágoas
(Tu, rio, és meu irmão, tu também penas!)
Embalavam-me as tuas cantilenas,
O doce arfar monótono das águas!

Os meus passeios preferidos lembro :
Beirando o rio, a Lapa, a Igreja, o Asilo,
Toda aquela paisagem, tudo aquilo,
Nas luminosas tardes de Dezembro!

O sol, tamanho gasto e desperdício
De tons e tintas, pródigo, fazia,
Que todo o Paraíba parecia
Iluminado a fogo de artifício!

Nos tempos do Liceu horas inteiras,
Ao pôr do sol, passava-as no mirante:
Monologavam pelo azul distante
Os perfis solitários das palmeiras!

E vinha-me a ilusão que era o rei mouro
O último rei que governou Granada:
Sobre a cidade a púrpura abrasada
E as torres altas, minaretes de ouro!

Em caprichosa curva em face, a franca,
A límpida caudal do Paraíba;
E ao largo, alvissareiro, rio arriba,
O traço alegre de uma vela branca!

Parecias-me muito mais estreito
Visto dali, talvez pela distância,
Companheiro fiel da minha infância,
Rio que rolas dentro do meu peito!

Faixa de opala que a cidade enlaça
Pela cintura, — cíngulo de neve!
Vendo-te, — vê-se bem que a vida é breve!
Corre, vai, rio amigo, tudo passa!

Torres de usinas fumegando a um lado,
Para o poente o Itaoca e em cima e ao fundo,
Diáfano sempre, — um céu imaculado,
Céu de safira sem rival no mundo!

Noite! A esfera armilar da lua cheia
Do sudário das águas surge ao lume,
E tudo ao luar o estranho aspecto assume
Dos castelos da Espanha sobre a areia!

A extrema-unção do luar como que invade
A alma das coisas, sobre tudo esvoeja:
Faz-se toda de mármore a cidade,
Vê-se uma catedral em cada Igreja!

Junho, mês dos noctívagos, corria...
Julieta à varanda debruçada
Vinha escutar a flauta enamorada,
Nas horas mortas, pela noite fria...

Tudo no olvido cai, tudo fenece,
Banco das Cismas, tudo cai no olvido!
Teu nome hoje é vazio de sentido,
A nova geração não te conhece!

Eras outrora o nosso confidente,
O Parnaso da Roda, a nossa Ermida!
Banco das Cismas, quanto sonho ardente
Desfeito em fumo no correr da vida!

Como o rei Harfagar, meu derradeiro
Sono, em teu seio, mude-se em vigília!
Abrigo e lar dos que não têm família!
Meu amado torrão hospitaleiro!

Campos formosa, intrépida amazona
Do viridente plaino Goitacás!
Predileta do Luar como Verona,
Terra feita de luz e madrigais!

Nada iguala os teus dons, os teus primores,
Vai de delícias, o teu céu azul!
Minha terra natal, ninho de amores,
Urna de encantos, pérola do sul!

1901
(Profissão de Fé, págs. XV-XXVII.)


“Amantia Verba” (Declaração de Amor) é um poema dedicado a Campos dos Goytacazes.
Versos desse poema foram utilizados pelo professor e musicista Newton Périssé Duarte ao criar a melodia do “Hino a Campos”. Seu livro póstumo, “Sonho”, reúne outros textos de alta qualidade, tendo sido editado pela Academia Campista de Letras, em 1943.


Garcia Bento, Saveiros, 1925


António Garcia Bento, (1897, Campos dos Goytacazes, RJ - 1929, Rio de Janeiro, RJ). De origem pobre, foi funcionário da Estrada de Ferro Central do Brasil e desenhista contratado pela firma Haust e Cia. Estudou pintura ao ar livre com Levino Fânzeres, na Colmeia dos Pintores do Brasil, curso livre, sempre aos domingos, na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro. No Salão Nacional de Belas Artes, conquistou menção honrosa em 1918, pequena medalha de prata em 1921 e prémio de viagem ao exterior em 1925. Acompanhado da mulher e dos filhos, viajou por dois anos pela Europa, visitando, entre outros países, Portugal, Espanha e Holanda. Os quadros que realizou na Europa, entre os melhores que produziu em sua curta carreira, foram expostos em São Paulo e no Rio de Janeiro em 1928, com sucesso de venda e de crítica. Em 1952, numa grande retrospectiva, o Museu Nacional de Belas Artes expôs mais de sessenta obras de sua autoria. O catálogo da mostra estampa um texto crítico de Gustavo Corção, que foi amigo do artista. No mesmo museu, integrou a mostra 150 Anos de Pintura de Marinha na História da Arte Brasileira (1982). Destacou-se sobretudo como marinhista. (Daqui)



Garcia Bento, Luar
 

"Um fim de mar colore os horizontes."
 
 

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