segunda-feira, 26 de julho de 2021

"Desejo do cheiro da casa da avó" - Poema de Roseana Murray


Adolf Humborg (Áustria, 1847–1921), Avó costura as calças do neto, 1921
 
 

Desejo do cheiro da casa da avó


Tudo o que a avó fabrica
em sua cozinha encantada
tem cheiro bom:
bolo de chocolate, biscoito de nata,
sonhos embrulhados
em açúcar e canela,
que são como nuvens
no céu da boca e expulsam
qualquer pesadelo.

As mãos da avó,
cheias de farinha
e tempo acumulado,
acariciam, tocam na superfície
dos pães e da pele da gente
com tanto amor
que curam qualquer defeito
do lado esquerdo ou direito.

Na casa da avó
o ar é perfumado
e parece um abraço
e até o final dos tempos
o cheiro da casa da avó
fica grudado em nosso
pensamento.

01.07.2014

Roseana Murray, in Poço dos Desejos,
Ed. Moderna, 2014
 

  
Albert Anker (Suiça, 1831-1910), Avó dá sopa à neta, 1868


"Aprendemos a ser filhos depois que somos pais. 
Só aprendemos a ser pais depois que somos avós…"

(Affonso Romano de Sant'Anna)




Em Portugal, o Dia dos Avós celebra-se a 26 de julho. Foi uma senhora natural de Penafiel, Ana Elisa Couto (1926-2007), conhecida como Dona Aninhas, que reivindicou a instituição de uma data que valorizasse a figura dos avós. Ela era avó de seis netos. Foram precisos 20 anos para que a data comemorativa fosse reconhecida, tendo-se escolhido o dia 26 de julho, por este ser o dia de Santa Ana e São Joaquim, pais de Maria e avós de Jesus Cristo. A data foi instituída pela Assembleia da República em 2003.

 

 


António Patrício (Lisboa, 1827 - 1858) teve uma carreira breve e sem brilho, marcada por uma escassa produção e pela morte prematura. As suas origens humildes e a carência de meios financeiros durante toda a vida, dificultaram o seu percurso artístico. Desde cedo exerceu funções de aprendiz na Fábrica de Tabacos em Xabregas. Iniciou os seus estudos de arte com o auxílio do capelão de um convento onde realizara trabalhos.
Foi discípulo do pintor António Manuel da Fonseca, e colega dos artistas da geração romântica na Academia Real de Belas-Artes, onde se matriculou em 1844 para estudar Pintura Histórica. Deu aulas de desenho, pintava costumes populares e cenas de género, com temas de inspiração sentimental e anedótica, numa vertente do romantismo português. Realizou ainda pinturas decorativas nos tetos das igrejas lisboetas de S. João da Praça, mais tarde destruído por um incêndio, e das Mercês.
O seu primeiro êxito foi alcançado em 1856 na 3ª Exposição Trienal da Academia com a obra A Interrupção da Leitura, mais tarde intitulada A Avó, afetuosa cena familiar. Explora situações de dramático sentimentalismo (Tempestade e Despedida), realizadas pouco antes de morrer. - Cristina Pieske (daqui)
 
 
 
António José Patrício, A despedida, 1858, Museu do Chiado
 
 
António Patrício associa-se ao grupo de pintores românticos e desenvolve um projeto sentimental, de dramaticidades simplistas. Nesta obra (A despedida), de cariz cenográfico, próxima de uma cena engendrada em atelier fotográfico, três gerações sofrem, com mágoa, a partida de um familiar. A carga patética exprime-se nos gestos das personagens, nas referências paisagísticas. As ruínas da aldeia, ao longe e na penumbra, metáfora da “ruína” dos sentimentos provocada pela separação, estruturam o jogo dramático, que com o teatro popular se pode relacionar. Este evidencia-se na expressão meditativa, no olhar alongado da rapariga, no lenço com que a criança acena e no abandono doloroso da velha mulher, rosto na sombra, mão na testa e costas viradas à realidade da partida. O olhar do espetador é atraído para a riqueza de pormenores dos trajos populares femininos, diluindo-se, paradoxalmente, a dramaticidade do episódio.
Este sentido populista, muito divulgado na época, relaciona-se em Patrício com as suas origens de família operária. Com poucos recursos, limitado às fronteiras nacionais, por vezes com informações de estéticas estrangeiras através de álbuns, Patrício escolhe os caminhos mais adequados à sua restrita cultura, tentando integrar-se no gosto pelo registo da pintura de costumes populares. Saliente-se a escolha do tema que, pela primeira vez, revela na pintura a pesada realidade social da emigração, contraponto inerente às fragilidades do processo civilizacional e do período político marcado pela Regeneração que então se iniciava. - Maria Aires Silveira (Daqui) 
 

terça-feira, 13 de julho de 2021

"Vaga, no azul amplo solta" - Poema de Fernando Pessoa


John Glover (1767-1849), A view of the artist's house and garden, in Mills Plains,
Van Diemen's Land, 1835
Art Gallery of South Australia



Vaga, no azul amplo solta

Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma,

E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.

20-3-1931  

Fernando Pessoa 

 

quarta-feira, 7 de julho de 2021

"Rosa, Rosae" - Poema de Merícia de Lemos



Rosa, Rosae


Dá-me rosas, outras rosas
dá-me mais rosas amor.

Já olhaste bem as rosas?
Rosas-bocas rosas-olhos
e há rosas coração.
Há rosas que são sorrisos
e rosas que são paixão
Rosa-beijo, rosa-abraços
e rosas-mãos.

Numa noite de luar
uma grande rosa aberta
acenou-me num jardim:
corri logo para ela
seria a rosa-aventura?

Pela tarde num caminho
à hora em que o sol cansado
pensa em ir-se deitar
encontrei uma roseira
com uma rosa em botão
muitas folhas e espinhos
e estava ali porquê?
Linda rosa cor-de-rosa

Era o amor feito rosa,
sem saber...


Merícia de Lemos, in Rosa, Rosae
(Escritora moçambicana, 1913-1996)


 
 
 

Caridade

 
Desfolha-se a rosa.
Parece até que floresce
O chão cor-de-rosa. 
 

Guilherme de Almeida 
(Haicai / Haikai / Haiku)

sexta-feira, 2 de julho de 2021

"Hino à Dor" - Poema de António Feijó


 
Frederick Goodall (British, 1822–1904), Orientalist painter,  
Mrs. Charles Kettlewell in Neo­classical Dress, 1890 
 


Hino à Dor 
(Aos Condes de Sabugosa) 

 
Sorri com mais doçura a boca de quem sofre,
Embora amargue o fel que os seus lábios beberam;
É mais ardente o olhar onde, como um aljofre,
A Dor se condensou e as lágrimas correram.

Soa, como se um beijo ou uma carícia fosse,
A voz que a soluçar na Desgraça aprendeu;
E não há para nós consolação mais doce
Que o regaço de quem muito amou e sofreu.

Voz, que jamais vibrou num soluço de mágoa,
Ao nosso coração nunca pode chegar...
Mas o pranto, ao cair duns olhos rasos d'água,
Torna mais penetrante e mais profundo o olhar.

Lábio, que só bebeu na fonte da Alegria,
É frio, como o olhar de quem nunca chorou;
A Bondade é uma flor que se alimenta e cria
Dos resíduos que a Dor no coração deixou.

Em tudo quanto existe o Sofrimento imprime
Uma augusta expressão... mesmo a Suprema Graça,
Dando aos versos do Poeta esse esmalte sublime
Que torna imorredoura a Inspiração que passa.

É por isso que a Dor, sem trégua nem guarida,
Dor sem resignação, Dor de estóico ou de santo,
Só de a vermos passar no tumulto da Vida
Deixa os olhos da gente enublados de pranto. 


António Feijó, in 'Sol de Inverno'