Charles Spencelayh (English painter, 1865–1958), The empty chair, 1922.
O cego
Foi despojado do diverso mundo,
Dos rostos, que ainda são o que eram antes,
Das ruas próximas, hoje distantes,
E do côncavo azul, ontem profundo.
Dos livros lhe restou só o que deixa
A memória, essa fórmula do olvido
Que o formato retém, não o sentido,
E que apenas os títulos enfeixa.
O desnível espreita. Cada passo
Pode levar à queda. Sou o lento
Prisioneiro de um tempo sonolento
Que não regista aurora nem ocaso.
É noite. Não há outros. Com o verso
Lavro este meu insípido universo.
II
Desde meu nascimento, lá em noventa e nove,
Da côncava parreira ao poço mais profundo,
O tempo minucioso, que na memória é breve,
Foi me furtando as formas visíveis deste mundo.
Os dias e as noites limaram os semblantes
Das palavras humanas e dos rostos amados;
Em vão interrogaram meus olhos esgotados
As vãs bibliotecas e suas vãs estantes.
O azul e o vermelho são agora uma névoa
E duas vozes inúteis. O espelho que miro
É só uma coisa cinza. No jardim aspiro,
Amigos, uma lúgubre rosa em meio à treva.
Agora só perduram as formas amarelas.
E os pesadelos são minhas únicas telas.
Foi despojado do diverso mundo,
Dos rostos, que ainda são o que eram antes,
Das ruas próximas, hoje distantes,
E do côncavo azul, ontem profundo.
Dos livros lhe restou só o que deixa
A memória, essa fórmula do olvido
Que o formato retém, não o sentido,
E que apenas os títulos enfeixa.
O desnível espreita. Cada passo
Pode levar à queda. Sou o lento
Prisioneiro de um tempo sonolento
Que não regista aurora nem ocaso.
É noite. Não há outros. Com o verso
Lavro este meu insípido universo.
II
Desde meu nascimento, lá em noventa e nove,
Da côncava parreira ao poço mais profundo,
O tempo minucioso, que na memória é breve,
Foi me furtando as formas visíveis deste mundo.
Os dias e as noites limaram os semblantes
Das palavras humanas e dos rostos amados;
Em vão interrogaram meus olhos esgotados
As vãs bibliotecas e suas vãs estantes.
O azul e o vermelho são agora uma névoa
E duas vozes inúteis. O espelho que miro
É só uma coisa cinza. No jardim aspiro,
Amigos, uma lúgubre rosa em meio à treva.
Agora só perduram as formas amarelas.
E os pesadelos são minhas únicas telas.
Jorge Luis Borges,
em "Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista".
Traduções de Augusto de Campos.
São Paulo: Terracota, 2013.
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