sábado, 30 de novembro de 2024

"O cego" - Poema de Jorge Luis Borges

 
Charles Spencelayh (English painter, 1865–1958), The empty chair, 1922.


O cego


Foi despojado do diverso mundo,
Dos rostos, que ainda são o que eram antes,
Das ruas próximas, hoje distantes,
E do côncavo azul, ontem profundo.

Dos livros lhe restou só o que deixa
A memória, essa fórmula do olvido
Que o formato retém, não o sentido,
E que apenas os títulos enfeixa.

O desnível espreita. Cada passo
Pode levar à queda. Sou o lento
Prisioneiro de um tempo sonolento

Que não regista aurora nem ocaso.
É noite. Não há outros. Com o verso
Lavro este meu insípido universo.

II

Desde meu nascimento, lá em noventa e nove,
Da côncava parreira ao poço mais profundo,
O tempo minucioso, que na memória é breve,
Foi me furtando as formas visíveis deste mundo.

Os dias e as noites limaram os semblantes
Das palavras humanas e dos rostos amados;
Em vão interrogaram meus olhos esgotados
As vãs bibliotecas e suas vãs estantes.

O azul e o vermelho são agora uma névoa
E duas vozes inúteis. O espelho que miro
É só uma coisa cinza. No jardim aspiro,

Amigos, uma lúgubre rosa em meio à treva.
Agora só perduram as formas amarelas.
E os pesadelos são minhas únicas telas.


Jorge Luis Borges,
em "Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista".
Traduções de Augusto de Campos.
São Paulo: Terracota, 2013.
 

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