sexta-feira, 29 de novembro de 2024

"A Grande Enchente" - Poema de Mário Quintana


Abbey Altson (British artist, 1866–1948), Flood Sufferings, 1890, oil on canvas.



A Grande Enchente


Cadáveres de Ofélias e cadelas mortas
virão parar por um instante às nossas portas.

Porém – sempre à mercê dos redemoinhos –
prosseguirão depois seus incertos caminhos...

Quando a água alcançar as mais altas janelas
eu pintarei rosas de fogo em nossas faces amarelas.

Que importa o que há de vir? Tudo é poupado aos loucos
e os loucos tudo se permitem. Vamos!

Espíritos de deuses, sobre as águas pairamos.
Alguns de nós dizem que apenas somos nuvens...
Outros, uns poucos,
dizem que somos nada mais que mortos...

Mas não avisto, lá em baixo, os nossos próprios
defuntos... E em vão, também, olho em redor...

Onde é que estão vocês,
amigos, amigas, dos primeiros e dos últimos dias?

É preciso, é preciso, é preciso continuarmos juntos!

E, então, num último, e diluído, e triste pensamento
eu sinto que o meu grito é só a voz do vento...
 
 
Mário Quintana,
"Apontamentos de História Sobrenatural", 1976.
 
 ★★★

[Entre 13 de abril e 6 de maio de 1941, o Rio Grande do Sul, sofreu uma catástrofe climática. Segundo registos da época, Porto Alegre recebeu chuva por 24 dias seguidos, vitimando dezenas de pessoas e desabrigando cerca de 70 mil famílias nas regiões do Estado. 
Mário Quintana, dos mais importantes poetas gaúchos, impressionado com os acontecimentos, escreveu um de seus mais comoventes poemas sobre a tragédia, intitulado "A Grande Enchente".]

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