quarta-feira, 13 de novembro de 2024

"A Casa da Poesia" - Poema de José Jorge Letria


Fátima Marques (Artista plástica brasileira, n. 1956), Encontro com o Futuro, 2019.



A Casa da Poesia


A poesia tem uma casa
como as pessoas têm,
só que é diferente,
só que tem espaço
para todos quantos
nela querem entrar
com a terna alegria
de quem a vai habitar.

É um casa sem portas nem janelas,
sem teto e sem cave,
pois assim tem mais espaço
para quem nela quer morar.

É uma casa de sons,
que por vezes parecem música,
embora sejam apenas palavras,
palavras simples e graves,
agudas e tristes,
cantantes e belas,
palavras que são a pedra e a cal
dessa casa onde todos podem morar.

A poesia tem uma casa
toda feita de versos
que podem ou não rimar,
que podem fazer rir e chorar
como os palhaços do circo
que, à sua maneira,
são poetas da oficina do riso,
da festa das mais sonoras gargalhadas.

A poesia gosta de acordar cedo
para ouvir os pássaros a cantar
e os rios a correr
e os sonhos a acordar
dentro da cabeça
de quem não os quer deixar morrer.

A poesia junta os sons
com a delicadeza
das bordadeiras e dos ourives
quando querem
que aconteça beleza.

A poesia dá nome
ao que não tem nome
e se umas vezes rima,
como acontece nesta fala,
outras vezes não rima
e escreve como quem cala
por saber que a poesia
deve estar sempre acima
de quaisquer jogos de sala.

A poesia vai à escola
com um bibe feito de versos,
de mãos dadas com os meninos
que lhe querem perguntar
qual é a idade certa
para a poesia se revelar.

Na escola da poesia
ninguém tem notas para lhe dar,
pois ela não está
nem nunca esteve
ali só para passar.
Tem um desejo apenas:
ficar no coração
de quem a quiser lembrar.

A poesia tem uma casa
onde moram os poetas
e para eles terá sempre
as portas imaginárias
iluminadas e abertas.

A poesia anda de metro,
ou nos elétricos da cidade,
sem ter pressa de chegar,
porque isto de não ter pressa
é a sua liberdade
e é dessa liberdade
que gosta de se alimentar.

A poesia tem uma casa
que não é grande nem pequena,
pois tem sempre o tamanho
que tem cada poema.

A poesia vai à escola
com mil versos na mochila
e depois lança-os ao vento
para que possam chegar mais longe
do que chega o pensamento
e, num tempo sem memória,
consigam durar sempre mais
do que dura o esquecimento.

A poesia tem um jardim,
um terraço e um quintal
para receber os amigos
vindos do mundo animal:
os cães do abandono
que não têm casa nem dono,
os gatos livres e espertos
que mantêm sempre, rebeldes,
os olhos bem abertos,
as andorinhas e os pardais
e outros bichos mais,
incluindo os de conta,
e uma vez por outra
também uma barata tonta.

A poesia gosta de rir
porque o riso a alivia
dos medos e dos fantasmas
que lhe aparecem dia a dia
e também das contas certas
que não rimam com alegria
e adiam a felicidade
como quem mata a magia.

A poesia tem uma escola
onde gostava de aprender
que trovoadas e ciclones,
planetas e clones
são formas do universo
não se cansar e morrer.

A poesia tem uma casa
onde escreve à luz de velas
e que nunca há de ter teto
para poder ver as estrelas.

Não é voto de pobreza
este seu modo de ser,
é apenas a maneira
mais perfeita e certeira
de nunca se perder
nos estranhos labirintos
da aventura de escrever.

A escola da poesia
tem muitos livros num livro
que se conhece à distância,
pois é nele que se guardam
os mistérios da infância.

A poesia dá nome
ao que no falar comum
raramente nome tem
e deixa sempre em cada um
o desejo sentido
de falar com mais alguém
para que a poesia cresça
e os leitores mereça
porque lhes faz bem.

A casa da poesia
tem tom azul de mar
nas paredes que não tem
mas que dá gosto inventar,
apenas porque sabe bem
ter uma casa assim
mesmo à mão de semear.

A casa da poesia
nunca será assaltada,
porque aquilo que nela existe,
sendo um tesouro raro,
afinal não vale nada
para os ladrões escondidos
no escuro da madrugada.

A casa da poesia
está cheia de crianças,
de histórias e de lendas,
de jogos e de danças
e até a Beatriz
com um pauzinho de giz
desenha asas em vez de tranças.

A casa da poesia
tem uma mesa imensa
onde um poeta irrequieto
espalha o seu afeto
na hora de escrever
uma ode ou um soneto.

Na mesa da poesia
há sempre lugar para mais um,
e que se saiba não há poeta
que dela saia em jejum,
seja moderno ou antigo,
consagrado ou esquecido,
de elegias ou canções,
seja Cesário Verde,
Fernando Pessoa, Ruy Belo
ou mesmo Luís de Camões.
E esse livro de poemas,
vê lá onde é que o pões!

A poesia tem uma casa
que não aparece nos jornais,
talvez por iguais a ela
não existirem mais.
É uma casa hospitaleira
onde o sono é fantasia
e cada poema tem
a sua própria melodia.

A casa da poesia
cedo se abre para a festa,
espaço de luz e de sombra,
talvez canção de gesta
onde cabe a gente toda
com a alegria a circular
de uma velha canção de roda.

A poesia vai à escola
para alegrar o recreio
com uma rima daquelas
que acertam em cheio
nos medos que não largam
os meninos com receio
de estarem numa sala
com fantasmas lá no meio.

Na casa da poesia
existe sempre à mão
a poeira de magia
a que se chama inspiração
e esse jeito secreto
de juntar trabalho e emoção.

Na casa da poesia
cabem netos e avós,
pais, primos e irmãos
em páginas ímpares e pares,
e cabe sempre a nossa voz,
pois os esforços não são vãos
quando teima a poesia
em não nos deixar sós.

Na casa da poesia
há sempre uma luz acesa
e uma vela que alumia
com a intensa luz do dia
a mágoa ou a tristeza
e que convida duendes e fadas
para nos fazerem companhia
nas longas madrugadas.

A poesia vai à escola,
ainda hoje ou amanhã,
com um cesto de frutos
onde o morango e a romã
se põem a conversar,
talvez mesmo a namorar,
para que nunca seja vã
essa vontade de mostrar
aquilo que a poesia,
seja cereja ou maçã,
desde sempre guarda
para nos encantar.

Já os pais se vão deitar,
que amanhã é outro dia
e no quarto dos meninos
há uma luz que cintila
e há dez magos em fila
com a poção que anuncia
que na página em branco
irá nascer poesia,
a liberdade mais livre
que existiu algum dia.


José Jorge Letria
, "A Casa da Poesia",
Lisboa, Terramar, 2003.

 
"A Casa da Poesia" de José Jorge Letria,
Ilustração: Rui Castro
Editor: Terramar, 2003

 


Plano Nacional de Leitura

Livro recomendado para o 4º ano de escolaridade, destinado a leitura autónoma.


Fátima Marques, Liberdade, 2018
 

"Nunca se pode concordar em rastejar, quando se sente ímpeto de voar." 
 
Helen Keller
, "The story of my life" - página 393, Helen Keller, John Albert Macy, Annie Sullivan - 
Doubleday, Page & Company, 1903 - 439 páginas.
 

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