quarta-feira, 29 de outubro de 2025

"O camponês trata das leiras" - Poema de Bertolt Brecht



 Jules Bastien-Lepage (French painter, 1848–1884), Haymaking (Les Foins), 1877,
 Musée d'Orsay




O camponês trata das leiras 

 1

O camponês trata das leiras
Mantém em forma as vacas, paga impostos
Faz filhos pra poupar criados e
Está dependente do preço do leite.
Os da cidade falam do amor ao torrão
Da sadia cepa campesina e
Que o camponês é o fundamento da Nação.

 Os da cidade falam do amor ao torrão
Da sadia cepa campesina e
Que o camponês é o fundamento da Nação.
O camponês trata das leiras
Mantém em forma as vacas, paga impostos
Faz filhos pra poupar criados e
Está dependente do preço do leite.

 

Bertolt Brecht
in 'Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas'
Tradução de Paulo Quintela

 
 Jules Bastien-Lepage, October (Picking Potatoes), 1878,


Os poetas têm falado muito sobre amor, pouco sobre batatas, e nada sobre a relação entre o amor e as batatas. É muito triste que tenha de ser eu a preencher as lacunas que a grande literatura vai deixando.

Talvez o problema seja meu: na minha vida, o amor manifestou-se menos sob a forma de grandes gestos e mais sob a forma de batatas. Os poetas cantam beijos loucos, gritos roucos, lágrimas, ânsias, despedidas, traições, ausências – mas às batatas não dedicam nem um epigrama.

É o seguinte: quando eu era pequeno, a minha avó fazia o almoço muito antes da hora, para que nada faltasse. Ela não tinha uma inclinação natural para beijar ou abraçar, mas fazia outras coisas.

Quando o ônibus do colégio me vinha buscar ela ficava a olhar, à janela, até eu dobrar a esquina. E à tarde, quando o ônibus me trazia, ela já estava na mesma janela, à espera.

Eu tinha seis ou sete anos e ficava com a sensação de que ela ficara ali o dia todo, com a vida suspensa. Hoje sou adulto e a razão diz-me que não era assim – mas o coração continua a não ter a certeza.

No fim de semana, muito antes da hora do almoço, ela fritava batatas, punha num prato, e depois cobria com a tampa de uma panela. O vapor condensava-se no interior da tampa e depois a humidade chovia sobre as batatas. Por isso, as batatas ficavam moles.

Na casa da minha avó, nunca comi batatas que não fossem moles. Quando hoje me põem no prato batatas crocantes eu penso: essa pessoa sabe fritar batatas, mas ela não me ama. Não fez as batatas com aquela antecedência. Arriscou que as batatas não estivessem prontas quando eu quisesse almoçar.

Batatas crocantes, fica o leitor avisado, são cruéis. Têm arestas aguçadas que ferem o céu da boca, e estão muito conscientes do seu próprio mérito, reluzentes de óleo. As batatas moles, tubérculos humildes e meigos, suportam com paciência a aflição amorosa que as tornou moles, e a sua indolência morna tranquiliza quem estiver nervoso.

Penso muitas vezes naquele momento, no fim do “Cidadão Kane”, em que ele, mesmo antes de morrer, diz “Rosebud”, o nome de um trenó que tinha quando era criança. Eu, muito provavelmente, direi: “batatas moles”.

 
 

domingo, 26 de outubro de 2025

"Esqueço-me das horas transviadas" - Poema de Fernando Pessoa




Gregorio Prieto (Pintor espanhol, 1897-1992), Jardín de Aranjuez, c. 1919.
 


Esqueço-me das horas transviadas


Esqueço-me das horas transviadas...
O Outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros...
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...

Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgíaco... Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...

No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos,
E a cor do Outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância... 

s. d.

Fernando Pessoa
, «Passos da Cruz», Poesias.
(Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 33.



Gregorio Prieto, Luis Cernuda en un jardín inglés, 1937-1940


"Deus, que nos fizeste mortais, porque é que nos deste a sede de eternidade de que é feito o poeta?"
 
Luis Cernuda, do poema, "Las ruinas"

sábado, 18 de outubro de 2025

"Quando, Lídia, vier o nosso Outono" - Poema de Ricardo Reis

 


Theodore Robinson (American painter, 1852–1896), Autumn Sunlight, 1888.


Quando, Lídia, vier o nosso Outono


Quando, Lídia, vier o nosso Outono 
Com o Inverno que há nele, reservemos 
Um pensamento, não para a futura 
Primavera, que é de outrem, 
Nem para o Estio, de quem somos mortos, 
Senão para o que fica do que passa — 
O amarelo atual que as folhas vivem 
E as torna diferentes. 

13-6-1930
(Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) 
Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). - 120. 

[1ª publ. in Presença, nº 31/32. Coimbra: Mar./Jun. 1931.] 
 
 

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

"O ABC da Vida" - Texto de Berenice Gehlen Adams


Rafał Olbiński (Polish illustrator, painter, and educator, living in the 
United States, b. 1943), Revenge of the Interpretation, 2013.
 

O ABC da Vida


Devemos amar e respeitar…

Á RVORE que dá sombra, que dá frutos.
A  B ALEIA que vive a nadar pelo mar.
A  C ACHOEIRA que vive a vida a correr.
D INOSSAURO que viveu há milhões de anos atrás…
E COLOGIA que é a ciência que estuda a vida.
A  F IGUEIRA que é uma árvore frondosa e faceira.
A  G IRAFA que é pescoçuda como uma garrafa.
H IPOPÓTAMO que é pesado e gosta de água.
Í NDIO que vive em aldeias na mata.
J ACARÉ que rasteja devagar e sabe nadar.
A  L ARANJA que guarda um suco saboroso.
M AR que é imenso e tem água salgada.
A  N ATUREZA que nos encanta com sua beleza.
O ZÓNIO que protege a Terra.
P LANETA que vive a vida a girar.
Q UATI que tem a cauda comprida com anéis de pelos pretos.
R IO que corre para o mar como quem vai se atrasar.
A  S ELVA que é um lugar habitado por animais selvagens.
A  T ERRA que é o planeta em que vivemos.
U NIVERSO que é onde existem planetas, estrelas, asteróides.
V ENTO que é o ar em movimento.
X AXIM que é planta que tem o tronco formado por raízes.
E Z ELAR pelo nosso amado Planeta Terra.

(Professora, escritora, artista plástica, ilustradora, editora de revista, 
educadora e ativista ambiental brasileira, n. 1961), 
"De quase tudo um pouco - Poemas infantis".
 


Rafał Olbiński, Superficial Analogy, 2020.
 

"O ideal, como a árvore, deve ter suas raízes na terra."

Arturo Graf, in "Ecce Homo: aforismi e parabole", 1908.
Citado in "Los hombres y las cosas: antología de pensamientos" - Página 142,
Hernán del Solar - Zig-Zag, 1959.
 

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

"Oriana" - Texto de Sophia de Mello Breyner Andresen

 

 
John Atkinson Grimshaw (English artist, 1836-1893), Spirit of Night, 1879.



Oriana

 
Era uma vez uma fada chamada Oriana.

Era uma fada boa e era muito bonita. Vivia livre, alegre e feliz dançando nos campos, nos montes, nos bosques, nos jardins e nas praias.

Um dia a Rainha das Fadas chamou-a e disse-lhe:

– Oriana, vem comigo.

E voaram as duas por cima de planícies, lagos e montanhas. Até que chegaram a um país onde havia uma grande floresta.

– Oriana – disse a Rainha das Fadas – entrego-te esta floresta. Todos os homens, animais e plantas que aqui vivem, de hoje em diante ficam à tua guarda. Tu és a fada desta floresta. Promete-me que nunca a hás de abandonar.

Oriana disse:

– Prometo.

E daí em diante Oriana ficou a morar na floresta. De noite dormia dentro do tronco dum carvalho. De manhã acordava muito cedo, acordava ainda antes das flores e dos pássaros. O seu relógio era o primeiro raio de Sol. Porque tinha muito que fazer. Na floresta todas precisavam dela. Era ela que prevenia os coelhos e os veados da chegada dos caçadores. Era ela que tomava conta dos onze filhos do moleiro. Era ela que libertava os pássaros que tinham nas ratoeiras.

À noite, quando todos dormiam, Oriana ia para os prados dançar com as outras fadas. Ou então voava sozinha por cima da floresta e, abrindo as suas asas, ficava parada, suspensa no ar entra a terra e o céu. À roda da floresta haviam campos e montanhas adormecidas e cheios de silêncio. Ao longe viam-se as luzes de uma cidade debruçada sobre o rio. De dia e vista de perto a cidade era escura, feia e triste. Mas à noite a cidade brilhava cheia de luzes verdes, roxas, amarelas, azuis, vermelhas e lilases, como se nela houvesse uma festa. Pareciam feitas de opalas, de rubis, de brilhantes, de esmeraldas e safiras.


Sophia de Mello Breyner Andresenn (1919-2004),
in "A Fada Oriana", 1958.
 
 

"A Fada Oriana" de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Ilustração: Teresa Calem. Editor: Porto Editora.
Edição: outubro de 2012.

 
SINOPSE

Dizia Sophia que as fadas são seres da natureza. Queria com isto lembrar que elas nascem da nossa capacidade de atribuir vida, vontade e intenções ao mundo da natureza.
Em A Fada Oriana, encontramos o dom da proteção sobre os seres mais frágeis que vivem numa floresta, encontramos as tão humanas oscilações entre a solidariedade, o sentido da responsabilidade, o egoísmo e a vaidade. Encontramos, como é próprio de muitos contos tradicionais e para a infância, as peripécias de uma luta entre o bem e o mal. 

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

"Menina e Moça" - Texto de Bernardim Ribeiro



William-Adolphe Bouguereau (French painter, 1825 - 1905),
Au pied de la falaise (At the Foot of the Cliff), 1886.

Memphis Brooks Museum of Art




Menina e Moça


Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, por ventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha. (…)


Bernardim Ribeiro, "Menina e Moça"
 

"Menina e Moça", romance de Bernardim Ribeiro, editado por três vezes no séc. XVI: 1554 (Ferrara, com o título História de Menina e Moça), 1557-58 (Évora, com o título Saudades) e 1559 (Colónia, a partir da 1.ª edição), incluindo a 2.ª edição um prolongamento, que se costuma aceitar como sendo do autor, até ao cap. XXIV.

O texto representa uma convergência de tópicos ficcionais, quer no plano da história literária (agregando ingredientes da novela de cavalaria, do romance pastoril e da novela sentimental), quer no plano do conteúdo (pela conversão a um lugar de encontro, feminino e lamentoso, da Menina - que inicia o livro com um monólogo de evocação de deslocação e de mudança de vida - com uma Senhora, com a qual discute histórias de amores infelizes, que se intercalam na ação central da ficção).

Lugar e mudança convertem-se em polos de uma comum nostalgia amorosa e do fatalismo do sofrimento, que fazem das histórias intercaladas, ex. Aónia e Bimuarder, Arima e Avalor, desdobramentos insistentes de uma mesma e infinita dor de constantes desencontros amorosos. Amor, natureza, mudança e distância são as constantes semânticas deste livro, o primeiro na literatura portuguesa a desprender-se relativamente das convenções da ficção coeva para assumir o estatuto de narrativa feminina da solidão e da saudade, e de texto de análise incisiva e minuciosa do sentimento amoroso, na sua faceta de consagração dedicada e dolorida. (daqui) 
 
 

William-Adolphe Bouguereau, The Young Shepherdess, 1885



Cantiga
da Menina e Moça
 

Pensando-vos estou, filha;
vossa mãe me está lembrando;
enchem-se-me os olhos d'água,
nela vos estou lavando.
Nascestes, filha, entre mágoa,
para bem inda vos seja,
que no vosso nascimento
vos houve a fortuna inveja.

Morto era o contentamento,
nenhuma alegria ouvistes;
vossa mãe era finida,
nós outros éramos tristes.
Nada em dor, em dor crescida,
não sei onde isto há de ir ter;
vejo-vos, filha, formosa,
com olhos verdes crescer.

Não era esta graça vossa
para nascer em desterro;
mal haja a desaventura
que pôs mais nisto que o erro.
Tinha aqui sua sepultura
vossa mãe, e a mágoa a nós;
não éreis vós, filha, não,
para morrerem por vós.

Não houve em fados razão,
nem se consentem rogar;
de vosso pai hei mor dó,
que de si se há de queixar.
Eu vos ouvi a vós só,
primeiro que outrem ninguém;
não fôreis vós se eu não fora;
não sei se fiz mal, se bem.

Mas não pode ser, senhora,
para mal nenhum nascentes,
com este riso gracioso
que tendes sobr’olhos verdes.
Conforto mas duvidoso,
me é este que tomo assim;
Deus vos dê melhor ventura
da que tivestes até aqui.

Que a dita e a formosura
dizem patranhas antigas,
que pelejaram um dia,
sendo dantes muito amigas.
Muitos hão que é fantasia;
eu, que vi tempos e anos,
nenhuma coisa duvido
como ela é azo de danos.

Mas nenhum mal não é crido,
o bem só é esperado,
e na crença e na esperança,
em ambas há uma mudança,
em ambas há um cuidado.


Bernardim Ribeiro,
 

terça-feira, 7 de outubro de 2025

"A pintura do automóvel" - Conto de Fernando Pessoa

 
Tomas Castaño (Artista espanhol, n. 1953), "Chinatown, New York - 1930", 2019.
 
 

A pintura do automóvel

Eu explico como foi (disse o homem triste que estava com uma cara alegre), eu explico como foi...

Quando tenho um automóvel, limpo-o. Limpo-o por diversas razões: para me divertir, para fazer exercícios, para ele não ficar sujo.

O ano passado comprei um carro muito azul. Também limpava esse carro. Mas, cada vez que o limpava, ele teimava em se ir embora. O azul ia empalidecendo, e eu e a camurça é que ficávamos azuis. Não riam... A camurça ficava realmente azul: o meu carro ia passando para a camurça. Afinal, pensei, não estou limpando este carro: estou-o desfazendo.

Antes de acabar um ano, o meu carro estava metal puro: não era um carro, era uma anemia. O azul tinha passado para a camurça. Mas eu não achava graça a essa transfusão de sangue azul.

Vi que tinha que pintar o carro de novo.

Foi então que decidi orientar-me um pouco sobre esta questão dos esmaltes. Um carro pode ser muito bonito, mas, se o esmalte com que está pintado tiver tendências para a emigração, o carro poderá servir, mas a pintura é que não serve. A pintura deve estar pegada, como o cabelo, e não sujeita a uma liberdade repentina, como um chinó. Ora o meu carro tinha um esmalte chinó, que saía quando se empurrava.

Pensei eu: quem será o amigo mais apto a servir-me de empenho para um esmalte respeitável? Lembrei-me que deveria ser o Bastos, lavador de automóveis com uma Caneças de duas portas nas Avenidas Novas. Ele passa a vida a esfregar automóveis, e deve portanto saber o que vale a pena esfregar.

Procurei-o e disse-lhe: «Bastos amigo, quero pintar o meu carro de gente. Quero pintá-lo com um esmalte que fique lá, com um esmalte fiel e indivorciável. Com que esmalte é que o hei de pintar?»

«Com BARRYLOID», respondeu o Bastos, «e só uma criatura muito ignorante é que tem a necessidade de me vir aqui maçar com uma pergunta a que responderia do mesmo modo o primeiro chauffeur que soubesse a diferença entre um automóvel e uma lata de sardinhas».

«Perfeitamente...»

«Com que é que você quer pintar um carro», continuou o Bastos sem me ligar importância, «senão com um esmalte que seja ao mesmo tempo brilhante e permanente? E, ainda por cima fácil de aplicar... Isto do fácil de aplicar é comigo, mas é uma virtude, e as virtudes citam-se... Vá-se embora!...»

«Bom...», disse eu.

«Isto de esmaltes de nitrocelulose», prosseguiu o Bastos, dando-me um encontrão, não é um assunto de mercenaria a retalho. Tem uma coisa maçadora a que se chama ciência. Sabe o que é? Mas é maçadora para quem prepara as coisas; para nós, que as recebemos preparadas para as aplicarmos, é um alívio e uma alegria. Este BARRYLOID é o produto de longos cuidados feitos no primeiro laboratório de tintas, lacas e vernizes. Percebeu? Não é o primeiro produto do género que apareceu, porque o ser primeiro está bem se se trata de estar numa bicha, mas não se trata de tintas ou de coisas que metam estudo e provas. Não: nas tintas e na prática, a última palavra é que é a primeira.»

«Meu caro Bastos...», disse eu.

«Só BARRYLOID», respondeu o Bastos, virando-me as costas.

«Eu queria agradecer...», prossegui.

«Traga o carro», disse o Bastos.

Levei-lhe o carro e ele pintou-o a BARRYLOID. E não há camurça, nem chuva, nem poeira da pior estrada, que consiga envergonhar esse esmalte de aço. Sim: o Bastos tratou-me mal, mas tratou bem a verdade. Não há nada como o BARRYLOID.

... Tanto assim que, quando comprei o meu segundo carro, tratei logo de saber se ele vinha já pintado a BARRYLOID. Ele aí está na base da página e no fim da minha história. Passa-se a camurça, mas é preciso usar óculos fumados: o brilho deslumbra. E, o que é mais, deslumbrará, porque dura.

A minha camurça dura eternamente. O que se tem gasto muito são os óculos fumados; e os elogios dos amigos que veem os meus carros pintados a BARRYLOID.

Fernando Pessoa - Ficção e Teatro.
(Introdução, organização e notas de António Quadros.) 
Mem Martins: Europa-América, 1986 - 97. 

[Texto de publicidade às Tintas Baryloid. 1ª publ. in Folhas de Poesia, nº 3. Lisboa: Set. 1958, com o título «O Automóvel ia desaparecendo».]



Tomas Castano, "Blue Car in Old Havana: Reflections of the Past", 2018.


"Uma paisagem conquista-se com as solas dos sapatos, não com as rodas de um automóvel."
 
 
 

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

"Morte ao meio-dia" - Poema de Ruy Belo



Armando Anjos (Pintor português, 1931-2017), "Ferragudo", Lagoa (Algarve), s.d.
 


Morte ao meio-dia


No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
mas que fazer de toda esta cor azul
que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se
e mais nada

A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspeção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e o povo em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer


Ruy Belo, in "País Possível", 1973.
Edição/reimpressão: 01-2016 
Editor: Assírio & Alvim 
 
 
 
Armando Anjos (Pintor português, 1931-2017), Regresso da faina, s.d.


"Nada há de constante neste mundo, exceto a inconstância." 

Jonathan Swift, "Uma Modesta Proposta", 1729.
 
 

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

"Quem pudera, Cecília!" - Poema de Fernanda de Castro


 
Alfredo de Morais  (Ilustrador português, 1872-1971), "Uma Desfolhada no Minho", s.d.


Quem pudera, Cecília!


Tenho fome de campo e de verdura,
De terra bem lavrada,
E sede, muita sede de água pura.

Quero pegar no cabo de uma enxada,
Quero cheirar os troncos e as raízes,
Pisar, descalça, a terra ainda molhada,
Ver, nas noites, o rasto das perdizes.

Já Cecília Meireles o dizia,
Com imenso carinho:
“Portugal não tem campo, tem campinho.”
E ria, ria,
Rasgando as mãos nas silvas,
Comendo amoras, colhendo malmequeres, madressilvas.

Tinhas razão, Cecília.
Em Portugal, as estações são festas,
São festas de família,
Enfiadas, colares de alegrias;
Na Primavera as flores;
Os frutos no Verão, e as romarias;
No Outono o vinho novo e o ritual
Profano das vindimas;
No Inverno,
A mística alegria do Natal,
As portas bem fechadas,
A lenha a crepitar
E as rabanadas.

Quem pudera, Cecília, quem pudera,
Mandar-te para lá, para onde estás,
Um raminho da nossa Primavera.


Fernanda de Castro, in Colóquio Letras, 1987,
p. 94. - N.º 100. Lisboa : F.C.G. 

["Quem pudera, Cecília!" é um poema de Fernanda de Castro (1900–1994) que homenageia a poetisa brasileira Cecília Meireles (1901–1964), expressando um desejo de enviar-lhe um presente simbólico de Portugal e elogiando sua conexão com as tradições e a simplicidade do campo português. A obra surge após a morte de Cecília Meireles, demonstrando a forte ligação entre as duas poetisas e a admiração da poeta portuguesa pela brasileira.] 
 
 

Alfredo de Morais, "Dança minhota - o Vira", s.d.
 

"Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. 
Não sou alegre nem triste: sou poeta."


Cecília Meireles
, do poema "Motivo"
 

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

"Quadras da minha solidão" - Poema de Alda Lara

 

 
Harry Curieux Adamson (American wildlife artist, 1916 – 2012), 
 A Marsh at Dusk, Mallards, s.d.
 


Quadras da minha solidão


Fica longe o sol que vi,
aquecer meu corpo outrora…
Como é breve o sol daqui!
E como é longa esta hora…

Donde estou vejo partir
quem parte certo e feliz.
Só eu fico. E sonho ir,
rumo ao sol do meu país…

Por isso as asas dormentes,
suspiram por outro céu.
Mas ai delas! tão doentes,
não podem voar mais eu… 

Que comigo, preso a mim,
tudo quanto sei de cor…
Chamem-lhe nomes sem fim,
por todos responde a dor.

Mas dor de quê? dor de quem,
se nada tenho a sofrer?…
Saudade?…Amor?…Sei lá bem!
É qualquer coisa a morrer…

E assim, no pulso dos dias,
sinto chegar outro Outono…
passam as horas esguias,
levando o meu abandono… 


Alda Lara
, in 'Poemas'