Os dois gatos
Dois bichanos se encontraram
Sobre uma trapeira um dia:
(Creio que não foi no tempo
Da amorosa gritaria).
De um deles todo o conchego
Era dormir no borralho;
O outro em leito de senhora
Tinha mimoso agasalho.
Ao primeiro o dono humilde
Espinhas apenas dava;
Com esquisitos manjares
O segundo se engordava.
Miou, e lambeu-o aquele
Por o ver da sua casta;
Eis que o brutinho orgulhoso
De si com desdém o afasta.
Aguda unha vibrando
Lhe diz: ''Gato vil e pobre,
Tens semelhante ousadia
Comigo, opulento, e nobre?
Cuidas que sou como tu?
Asneirão, quanto te enganas!
Entendes que me sustento
De espinhas, ou barbatanas?
Logro tudo o que desejo,
Dão-me de comer na mão;
Tu lazeras, e dormimos
Eu na cama, e tu no chão.
Poderás dizer-me a isto
Que nunca te conheci;
Mas para ver que não minto
Basta-me olhar para ti.''
''Ui! (responde-lhe o gatorro,
Mostrando um ar de estranheza)
És mais que eu? Que distinção
Pôs em nós a Natureza?
Tens mais valor? Eis aqui
A ocasião de o provar.''
''Nada (acode o cavalheiro)
Eu não costumo brigar.''
''Então (torna-lhe enfadado
O nosso vilão ruim)
Se tu não és mais valente,
Em que és superior a mim?
Tu não mias?'' - ''Mio.'' - ''E sentes
Gosto em pilhar algum rato?''
''Sim.'' - E o comes?'' - ''Oh! Se como!...''
''Logo não passa de um gato.
Abate, pois, esse orgulho,
Intratável criatura:
Não tens mais nobreza que eu;
O que tens é mais ventura.''
Manuel Maria Barbosa du Bocage
in BOCAGE Poemas, Editora Nova Fronteira S/A, 1987
Manuel Maria Barbosa du Bocage
Se formalmente a poesia bocagiana ainda é neoclássica, se nalgum vocabulário e nos processos de natureza alegórica ainda se sente a herança clássica, concretamente a camoniana, pelo temperamento, por grande parte dos temas (como o ciúme, a noite, a morte, o egotismo, a liberdade, o amor - muitas vezes manifestado por uma expressão erotizante) e pela insistência nalgumas imagens e verbos que denunciam uma vivência limite, pode bem dizer-se que uma parte significativa da produção poética de Bocage é já marcadamente pré-romântica, anunciando assim a nova época que se aproxima. Apesar de a sua poesia ser contraditória, irregular, e de os seus versos revelarem concessões artisticamente duvidosas, Bocage é considerado, com justeza, um dos maiores sonetistas portugueses.
As obras de Bocage encontram-se editadas atualmente nas antologias: Opera Omnia, Poesias (antologia que inclui a lírica, a sátira e a erótica) e Poesias de Bocage.
Bocage. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-01-20].
“Feliz
quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá,
guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol.”
(Fernando Pessoa)
(Fernando Pessoa)
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