sábado, 31 de outubro de 2015

"Natal cada Natal" - Poema de António Manuel Couto Viana


Paolo Veronese, Madonna and Child with Saint Elizabeth, the Infant Saint John the Baptist, 
and Saint Catherine, 1565-70, Oil on canvas



Natal cada Natal


Quando na mais sublime dor, 
A mulher dá à luz, 
Há sempre um Anjo Anunciador 
A murmurar-lhe ao coração — Jesus! 

Cada criança é o Céu que vem 
P’ra nos remir do pecado 
E as palhas d’oiro de Belém 
Espalham-se no berço, como um Sol espelhado 

Por sobre o lar presepial, o brilho 
Da estrela abre o convite dos portais: 
— Vinde adorar a floração do filho 
No alvoroço da raiz dos pais. 


in 'Mínimos'

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

"A Mulher Inteligente" - Texto de Pedro Chagas Freitas



Otar Imerlishvili, The Girl with the Book, 1970



A Mulher Inteligente 


Sou doente pela mulher inteligente. 

Sou fanático pela mulher inteligente. Sou viciado na inteligência da mulher inteligente. Preciso dela, exijo-a a toda a hora, persigo-a como um cão com fome persegue o osso. Sou obcecado pela mulher inteligente. A mulher inteligente é a criação suprema de Deus. A mulher inteligente é o próprio Deus. A mulher inteligente, suspeito, deve ser mesmo uma forma superior do próprio Deus. Até Deus tem inveja da mulher inteligente. Meu Deus. 

A mulher inteligente despreza o que a mulher não-inteligente ama. 

A mulher inteligente não quer saber da conta bancária, não quer saber da marca do carro, da maquilhagem na cara. A mulher inteligente veste Prada a cada vez que fala, a cada vez que pensa. A mulher inteligente faz do que é um estilo, do que defende uma lei, do que parece uma moda. A mulher inteligente faz do tesão um estado de alma. A mulher inteligente dá-me tesão. Mmmm. 

Partilhar a vida com uma mulher inteligente é a única forma de partilha possível. 

Só com ela consigo partilhar, só a ela consigo dizer tudo o que sinto, tudo o que sou. Só ela saberá como eu sei – e depois de pensar um pouco saberá muito melhor do que eu sei – aquilo que eu quero dizer com aquilo que eu estou a dizer. Sim: a mulher inteligente sabe mais do seu homem do que alguma vez o próprio homem saberá. E só um homem burro se sente inferiorizado com uma mulher inteligente. Viver com uma mulher inteligente é um milagre que só mentes pequenas não gozam à grande. Viver com uma mulher inteligente é um privilégio que muito poucos estão à altura de degustar. Não é qualquer um que está à altura de rastejar e de ser rastejado. Viver com uma mulher inteligente não é uma humilhação – é uma diversão, uma animação, um verdadeiro vulcão. E é só dentro de um vulcão que a temperatura aquece. Ai. 

A mulher inteligente aquece – as outras nem aquecem nem arrefecem. 


Pedro Chagas Freitas, in 'Queres Casar Comigo Todos os Dias, Bárbara?' 

sábado, 24 de outubro de 2015

"A Missão de continuar a Vida" - Crónica de Natália Correia


Henry Herbert La Thangue (1859-1929), An Autumn Morning, 1897


A Missão de continuar a Vida


Ninguém se pode possuir inteiramente, porque se ignora, porque somos um mistério. Para nós mesmos. Podemos sim, ser mais conscientes de uma determinada missão que temos no mundo. Todos nós somos uma missão. Somos a missão de continuar a vida, aperfeiçoando-a, festejando-a e não destruindo-a como se está a fazer hoje. Eu não tenho certezas, mas tenho convicções e uma das minhas convicções mais firmes é que nascemos para a liberdade. E, no entanto, veja o paradoxo: essa liberdade, esse caminho para a liberdade está a ser cada vez mais obscurecido por aquilo que observamos no nosso mundo de hoje. Nós chegamos a esta coisa terrível, o chamado equilíbrio nuclear, que é o jogo de escondidas de duas disponibilidades criminosas para suprimir a humanidade. A humanidade está hoje pronta (parece que está sempre pronta!) para pôr luto por si própria. Isto não é uma forma humana de viver. Esta tragédia tem que ser a sua «húbris», que é, digamos, a arrogância que desencadeia a catástrofe punitiva. E o que me perturba muito, o que me assusta, é que países que subscrevem, que proclamam os direitos humanos, possam entrar num jogo fatal destes, um jogo que se destina a suprimir o homem. 

Natália Correia,  in 'Entrevista (1983)'


Henry Herbert La ThangueThe Connoisseur, 1887
 

"Às vezes procura-se parecer melhor do que se é. Outras vezes, procura-se parecer pior. Hipocrisia por hipocrisia, prefiro a segunda."

Jacinto Benavente, La Virtud Sospechosa

[Jacinto Benavente y Martínez (Madrid, 12 de Agosto 1866 — Madrid, 14 de Julho 1954) foi um dramaturgo e crítico espanhol. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1922.]

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

"Natal Tão Pouco" - Poema de António Manuel Couto Viana





Natal Tão Pouco


Nasceu em Belém, ou Nazaré 
(A nova teoria), 
Este que nos é 
O Pai-Nosso em cada dia? 

Que importa onde nasceu, 
Se num presépio, se num leito? 
A verdade sou eu 
A aguardá-lo no peito. 

Pois abro o coração 
P'ra o receber, 
Quer venha ou não 
Do céu ou ventre de mulher. 

Mas, ai! a adoração dura-me instantes! 
Em breve irei negá-lo 
Três vezes, antes 
De cantar o galo!


in 'Disse e Repito'

domingo, 4 de outubro de 2015

"À Sua Esperança" - Soneto de Francisco de Vasconcelos


Simon VouetLa Richesse, 1640 (Louvre)
Simon Vouet, (Paris, 9 de janeiro de 1590 — Paris, 30 de junho de 1649) foi um pintor barroco francês.



À Sua Esperança


Esta esperança vã, doce tormento, 
Com que amor lisonjeiro determina 
Acumular estragos à ruína 
Por levantar padrões ao escarmento, 

Foi crepúsculo breve de um momento, 
Delicado jasmim, frágil bonina, 
Rosa, que se murchou duma aura fina, 
Vidro, que se quebrou de um leve vento. 

Morreu minha esperança às mãos de um rogo 
E nas cinzas se alenta o meu cuidado, 
Que amor nos impossíveis mais se inflama: 

Mas se a esperança é ar, e amor é fogo, 
Justo é que nela cresça o meu agrado, 
Pois ao sopro do vento cresce a chama. 


(1665-1723),
 in 'Fénix Renascida' 

"Consciência Cósmica" - Poema de João Guimarães Rosa


 


Consciência Cósmica


Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado... 

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir, se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...


 
 

"Falando com o Mondego Estando Saudoso" - Poema de Francisco de Vasconcelos


Mondeguinho - Nascente do Rio Mondego
(Freguesia de Mangualde da Serra, Concelho de Gouveia)
 Foto de Sofia Barão



Falando com o Mondego Estando Saudoso


 Como é, Mondego, igual ao nascimento
O meu choro ao que a ti te desempenha;
Pois se o teu pranto nasce duma penha,
De um penhasco se causa o meu lamento.

Tu do mal, que padeço, estás isento,
Porque abrandas chorado a tosca brenha,
Mas Fillis mais que serra me desdenha,
Quando as ruas correntes acrescento.

Se pois a serra dura tanto zela
O teu chorar, que o áspero desterra,
E o meu pranto endurece a Fillis bela;

Por teres mais alivio, ou menos guerra
Chora tu, pois na serra tens estrela,
Eu não, que sem estrela amo uma serra. 


Francisco de Vasconcelos Coutinho 
 in 'Antologia Poética'






Francisco de Vasconcelos (Coutinho) (1665-1723) nasceu no Funchal, frequentou a Universidade de Coimbra entre 1686 e 1697 e foi nomeado ouvidor da Capitania do Funchal em 1697. É um dos mais importantes poetas da Fénix Renascida, estando representado no volume I e no volume II. Em 1729, já depois da sua morte, foram publicadas as obras "Feudo do Parnaso", um panegírico a D. João V em tercetos, e Hecatombe Métrico, obra composta por cem sonetos onde se narra a história da redenção do homem, desde o pecado de Adão até à paixão e morte de Cristo. David Mourão-Ferreira, no Hospital das Letras, afirmou que Francisco de Vasconcelos faz parte do elo indispensável que liga o lirismo camoniano ao pré-romantismo. (Daqui)



Coimbra e o Rio Mondego (Portugal) - Foto de rschnaible