A Débil
Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.
Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.
E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.
“Ela aí vem!” disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.
Via-te pela porta envidraçada;
E invejava – talvez que o não suspeites! –
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu sai. Doía-me a cabeça;
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.
Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.
Sorriam, nos seus trens, os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto
Que não te morrerá sem te casares!
Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.
Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.
"Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!"
De repente paraste, embaraçada,
Ao pé dum numeroso ajuntamento.
E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.
E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.
Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.
Sorriam, nos seus trens, os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto
Que não te morrerá sem te casares!
Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.
Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.
"Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!"
De repente paraste, embaraçada,
Ao pé dum numeroso ajuntamento.
E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.
E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.
O Livro de Cesário Verde. 1873-1886. 2.ª edição (daqui)
O Livro de Cesário Verde
Compilação póstuma de poesias de Cesário Verde escritas entre 1873 e 1886, organizada e posfaciada por Silva Pinto,
da qual se fez uma primeira edição, em 1887, para oferta a amigos do
escritor, e uma segunda edição, em 1901, destinada ao público. A edição princeps de O Livro de Cesário Verde
é constituída por 22 composições, repartidas por duas secções, "Crise
romanesca" e "Naturais", sem que se saiba se essa divisão obedeceu a
indicações do próprio autor ou ao critério do compilador. Apesar de
omitir várias poesias de Cesário contempladas em antologias posteriores,
a recolha é representativa das várias tendências convergentes na obra
poética do autor. Baseando-se na representação pictórica e na descrição
plástica da realidade, apoiada no predomínio das sensações ("Lavo,
refresco, limpo os meus sentidos./ E tangem-me, excitados, sacudidos,/ O
tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato!"), no que se aproxima do
Parnasianismo e do Realismo, Cesário supera, todavia, a captação
fotográfica do real, através de um processo de recriação poética que
opera uma transfiguração do imediato: "Subitamente - que visão de
artista ! -/ Se eu transformasse os simples vegetais,/ À luz do sol, o
intenso colorista,/ Num ser humano que se mova e exista/ Cheio de belas
proporções carnais?!" ("Num bairro moderno"). A estética anti-romântica e
naturalista ("E eu que medito um livro que exacerbe,/ Quisera que o
real e a análise mo dessem;") patenteia-se nos motivos da mulher soberba
e impassível ("Deslumbramentos", "Frígida"), da cidade mórbida e
industrial ("O sentimento dum ocidental", "Num bairro moderno"), ambos
de influência baudelairiana, na correção da subjetividade pelo
distanciamento e a ironia ("Cristalizações"), na visão não convencional
do campo, marcada pela experiência pessoal ("Em petiz", "De verão",
"Nós", "De tarde"). Esta transmudação impressionista ou fantasista da
realidade apoia-se num estilo inovador, precursor do Simbolismo, no
qual, de entre muitos aspetos, salientaremos o uso da sinestesia
("Cheira-me a fogo, a sílex, a ferrugem;/ Sabe-me a campo, a lenha, a
agricultura"), do advérbio ("Amareladamente, os cães parecem lobos"; "Um
forjador maneja um malho, rubramente"), da hipálage ("Quando arregaça e
ondula a preguiçosa saia"; "Um cheiro salutar e honesto a pão no
forno") e do assíndeto ("Vê-se a cidade, mercantil, contente:/ Madeiras,
águas, multidões, telhados!").
Em suma, a obra poética de Cesário Verde é caracterizada pelo domínio perfeito da língua, riqueza e precisão do vocabulário, rigor e originalidade na adjetivação. Recorrendo também ao verso e estrofe de características tradicionais, o autor cultivou fundamentalmente o soneto em versos decassílabos e alexandrinos, estes últimos, segundo o próprio, caracterizados pelo rigor geométrico e pela sobriedade. Tentando encontrar a "perfeição do fabricado" (parnasianismo) e transmitir " o ritmo do vivo e do real" (realismo), como um realizador cinematográfico, o autor, surpreendendo os instantâneos do quotidiano de Lisboa, regista o pulsar do coração da cidade que, vencendo "o Tempo e a Morte", resiste e sobrevive. (Daqui)
Em suma, a obra poética de Cesário Verde é caracterizada pelo domínio perfeito da língua, riqueza e precisão do vocabulário, rigor e originalidade na adjetivação. Recorrendo também ao verso e estrofe de características tradicionais, o autor cultivou fundamentalmente o soneto em versos decassílabos e alexandrinos, estes últimos, segundo o próprio, caracterizados pelo rigor geométrico e pela sobriedade. Tentando encontrar a "perfeição do fabricado" (parnasianismo) e transmitir " o ritmo do vivo e do real" (realismo), como um realizador cinematográfico, o autor, surpreendendo os instantâneos do quotidiano de Lisboa, regista o pulsar do coração da cidade que, vencendo "o Tempo e a Morte", resiste e sobrevive. (Daqui)
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