Os Vencidos
Três cavaleiros seguem lentamente
Por uma estrada erma e pedregosa.
Geme o vento na selva rumorosa,
Cai a noite do céu, pesadamente.
Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas,
Têm os corcéis poentos e abatidos,
Em desalinho trazem os vestidos,
Das feridas lhes cai o sangue, em gotas.
A derrota, traiçoeira e pavorosa,
As frontes lhes curvou, com mão potente.
No horizonte escuro do poente
Destaca-se uma mancha sanguinosa.
E o primeiro dos três, erguendo os braços,
Diz num soluço: «Amei e fui amado!
Levou-me uma visão, arrebatado,
Como em carro de luz, pelos espaços!
Com largo voo, penetrei na esfera
Onde vivem as almas que se adoram,
Livre, contente e bom, como os que moram
Entre os astros, na eterna primavera.
Porque irrompe no azul do puro amor
O sopro do desejo pestilente?
Ai do que um dia recebeu de frente
O seu hálito rude e queimador!
A flor rubra e olorosa da paixão
Abre lânguida ao raio matutino,
Mas seu profundo cálix purpurino
Só ressuma veneno e podridão.
Irmãos, amei — amei e fui amado…
Por isso vago incerto e fugitivo,
E corre lentamente um sangue esquivo
Em gotas, de meu peito alanceado.»
Responde-lhe o segundo cavaleiro,
Com sorriso de trágica amargura:
«Amei os homens e sonhei ventura,
Pela justiça heróica, ao mundo inteiro.
Pelo direito, ergui a voz ardente
No meio das revoltas homicidas:
Caminhando entre raças oprimidas,
Fi-las surgir, como um clarim fremente.
Quando há de vir o dia da justiça?
Quando há de vir o dia do resgate?
Traiu-me o gládio em meio do combate
E semeei na areia movediça!
As nações, com sorriso bestial,
Abrem, sem ler, o livro do futuro.
O povo dorme em paz no seu monturo,
Como em leito de púrpura real.
Irmãos, amei os homens e contente
Por eles combati, com mente justa…
Por isso morro à míngua e a areia adusta
Bebe agora meu sangue, ingloriamente.»
Diz então o terceiro cavaleiro:
«Amei a Deus e em Deus pus alma e tudo.
Fiz do seu nome fortaleza e escudo
No combate do mundo traiçoeiro.
Invoquei-o nas horas afrontosas
Em que o mal e o pecado dão assalto.
Procurei-o, com ânsia e sobressalto,
Sondando mil ciências duvidosas.
Que vento de ruína bate os muros
Do templo eterno, o templo sacrossanto?
Rolam, desabam, com fragor e espanto,
Os astros pelo céu, frios e escuros!
Vacila o sol e os santos desesperam…
Tédio ressuma a luz dos dias vãos…
Ai dos que juntam com fervor as mãos!
Ai dos que crêem! ai dos que inda esperam!
Irmãos, amei a Deus, com fé profunda…
Por isso vago sem conforto e incerto,
Arrastando entre as urzes do deserto
Um corpo exangue e uma alma moribunda.»
E os três, unindo a voz num ai supremo,
E deixando pender as mãos cansadas
Sobre as armas inúteis e quebradas,
Num gesto inerte de abandono extremo,
Sumiram-se na sombra duvidosa
Da montanha calada e formidável,
Sumiram-se na selva impenetrável
E no palor da noite silenciosa.
Antero de Quental,
in Sonetos Completos
publicados por J. P. Oliveira Martins, Lopes & C.ª
Editores, Porto, 1890.
Com a publicação em 1865 de Odes Modernas e do folheto Bom Senso e Bom Gosto – Carta ao Exmº Sr. António F. de Castilho, Antero dá início à grande polémica literária do século XIX em Portugal, conhecida como a Questão Coimbrã, que rompe com o Ultrarromantismo e prepara o advento da poesia moderna.
É o principal promotor e um dos oradores do ciclo Conferências do Casino, organizadas em Lisboa, em 1871, com o objetivo de se estudarem reformas conducentes a uma mudança política, literária e social porque “não pode viver e desenvolver-se um povo isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo”. Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, título da primeira conferência, é, para Eduardo Lourenço (no Prefácio, da edição Tinta da China, 2008), “o texto que desde o seu nascimento se tornou na referência mítica da cultura portuguesa moderna, ou com mais precisão, o seu próprio ato fundador.
Como poeta publicou em 1881, Sonetos e, em 1886, Sonetos Completos que, prefaciados por Oliveira Martins, são apresentados de modo a formarem uma espécie de autobiografia intelectual deste autor. O seu último ensaio filosófico, Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do século XIX, foi publicado na Revista de Portugal, dirigida por Eça de Queirós, no primeiro trimestre de 1890.
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