segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

"Trova do Emigrante" - Poema de Manuel Alegre

 

Raffaello Gambogi (Italian painter, 1874-1943), The Immigrants (Gli emigranti), c. 1893,
146 x 196 cm, oil on canvas. Museo civico Giovanni Fattori, Livorno, Italy.
 
 
 
Trova do emigrante


Parte de noite e não olha
Os campos que vai deixar.
Todo por dentro a abanar
Como a terra em Agadir
Folha a folha se desfolha
Seu coração ao partir.

Não tem sede de aventura
Nem quis a terra distante.
A vida o fez viajante.
Se busca terras de França
É que a sorte lhe foi dura
E um homem também se cansa.

As rugas que o suor cava
Não são rugas são enganos.
São perdas lágrimas e danos
De suor por conta alheia
Não compensa nunca paga
Quanto suor se semeia.

Em vida vive-se a morte
Se o trabalho não dá fruto.
Morre-se em cada minuto
Se o fruto nunca se alcança.
Porque lhe foi dura a sorte
Vai para terras de França.

Não julguem que vai contente.
Leva nos olhos o verde
Dos campos onde se perde
Gente que tudo lhe deu.
Parte mas fica presente
Em tudo o que não colheu.

Verde campo verde e triste
Em ti ceifou e hoje foi-se.
Em ti ceifou mas a foice
Ceifava somente esperança.
Nem sempre um homem resiste
Vai para terras de França.

Vai-se um homem vai com ele
A marca de uma raiz.
Vai com ele a cicatriz
De um lugar que está vazio.
Leva gravada na pele
Uma aldeia, um campo, um rio.

Ficam mulheres a chorar
Por aqueles que se foram.
Ai lágrimas que se choram
Não fazem qualquer mudança.
Já foram donos do mar
Vão para terras de França. 
 in "A Praça da Canção", 1965

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