segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

"Sob um Guarda-Chuva" - Poema de Cassiano Ricardo


Jean Béraud (Peintre français, 1849–1935), Parisienne un jour de pluie, 
place de la Concorde, c.1890.


Sob um Guarda-Chuva 

I

As luzes caíram trémulas, na calçada.
E escorrem líquidas.

São luzes de todas as cores,
em pequenos naufrágios sobre o asfalto.

Se eu pudesse gemer como este vento,
como diria o poeta...
E abro o pequeno céu com asa de morcego
mas chove em mim pelo vão de uma estrela.

A chuva me dá, sempre, uma sensação de raiz.
Tenho a impressão de estar coberto
de folhas verdes, espirrando água.
O mar estronda, carregado de prata
e peixes.
E eu logo penso em meu pai, lavrador.
Roupa cheirando chuva, o cabelo escorrido na testa.
Os sapatos no barro.

A chuva, para ele, era uma festa com arco-íris
ou sem arco-íris.

Pássaro branco sob o guarda-chuva
em exercício de ficar parado
sinto-me preso entre os quatro pontos cardeais
desta esquina pingando horas.
Nada mais falso do que um boletim meteorológico.
Ganhou da lua e da minha esperança.
Onde estarão os pequeninos barcos de papel de minha infância?

 Estarão jogados, como objetos já sem uso
no cemitério dos navios mortos?

Penso na seca do Nordeste,
no país das fatalidades cíclicas e dos contrastes
entre a rosa do sol e o Dilúvio.
A rosa do sol escondida no abismo do mapa
inteiramente cor de cinza.
A sensação da ausência, a árvore da chuva
desfeita em galhos torrenciais.
E eu, aqui, a afogar-me em água e, lá, o Nordeste
de rosto enxuto.

II

O céu me atrai, porém a terra - com este cheiro de chuva -
me dá uma sensação de raiz.
A terra pode mais que o céu, quando a chuva
me molha a memória, me fecunda,
e eu sinto peixes e orquídeas no corpo.
Mas enquanto a chuva cai, torrencial,
e o vento a arrasta pelos cabelos de prata,
fico pensando, sob o meu guarda-chuva.

Penso que é absurdo comparar com a chuva
as nossas lágrimas (isso é demais, ó poeta).
Lágrimas quentes, que nos queimam os olhos,
e caem por dentro sobre ocultas feridas,
com este choro sem sal.

Além disso, os problemas municipais já esquecidos
e os nacionais, também, renascem, sob a chuva.
Os automóveis gritam, pedindo passagem,
uns roucos, outros tocando um começo de música.
Discutem prefeitura e tarde escura
a eterna questão do trânsito.
Um trovão quis contar-me um violento segredo
mas soletrou, apenas. Que monstruosa verdade
não terá ele pretendido dizer-me?

III

Deus rabiscou no espaço uma palavra de fogo
que não pude entender, por não saber hebraico,
mas que deve estar escrita em alguma passagem da Bíblia.
Onde terá caído esta faísca elétrica?

O que vale, pra mim, é que a casinha pequenina
onde nasceu o nosso amor, tem um coqueiro ao lado.

E se Franklin inventou para-raios de luxo
para os arranha-céus, Deus botou um coqueiro
para servir de para-raios junto à casa do pobre.

Dia sem céu.
(Nisto um transeunte
saiu correndo, atrás do seu chapéu.)


Cassiano Ricardo
, in 'Poesias Completas', Rio de Janeiro, 1957.


Cassiano Ricardo (daqui)


Poeta, jornalista e ensaísta brasileiro Cassiano Ricardo, nascido a 26 de julho de 1895, em São José de Campos, São Paulo, e falecido a 14 de janeiro de 1974, no Rio de Janeiro, destacou-se enquanto autor modernista, embora também tenha assinado obras em outras áreas.
Aos dezasseis anos, Cassiano Ricardo publicou o seu primeiro livro de poesia, Dentro da Noite.
Ingressou no curso de Direito em São Paulo, que viria a concluir no Rio de Janeiro, em 1917. Ainda nesse ano, publicou o livro A Flauta de Pã ligado ao parnasianismo e ao simbolismo. Depois regressou a São Paulo onde em 1922 foi um dos líderes da reforma literária iniciada na Semana de Arte Moderna.
Um ano mais tarde, dedicou-se também ao jornalismo, passando pelo Correio Paulistano e por A Manhã, do Rio de Janeiro, do qual foi diretor. Entretanto, em 1924 havia fundado a revista literária Novíssima, dedicada essencialmente ao movimento modernista e ao intercâmbio cultural panamericano. Mais tarde, fundou ainda as revistas Planalto e Invenção.
Em 1928, lançou aquela que seria considerada a sua obra-prima, Martim Cererê, uma obra modernista. Nesta fase modernista da sua carreira dedica-se a temas nacionalistas, mas sem acompanhar a tendência da época, que se associava muito ao nazismo. Assim, incide sobre a epopeia dos Bandeirantes, passando depois a dedicar-se a temas mais intimistas e do quotidiano.
Em 1937 foi um dos fundadores do movimento político "A Bandeira", que fazia frente ao Integralismo. Nessa época, dirigiu o jornal O Anhanguer, defensor das suas ideologias. Ainda nesse ano, entrou na Academia de Letras Brasileira.
Em 1943, com o Sangue das Horas, deu início a uma nova fase da sua carreira, associada ao lirismo introspetivo-filosófico, do qual Um Dia Depois do Outro, de 1947, é o exemplo mais marcante.
Em 1950, Cassiano Ricardo foi eleito presidente do Clube de Poesia de São Paulo e uma das suas ações neste organismo foi lançar a publicação Novíssimos, destinada a divulgar a poesia brasileira.
Nas décadas de 50 e 60 surgiu associado ao concretismo e ao praxismo.
Cassiano Ricardo foi também um reconhecido ensaísta e nesta área o seu principal trabalho é Marcha Para Oeste, de 1940. (daqui)
 

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