quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

"Três poemas da solidão" - Fernanda de Castro


Harald Slott-Møller (Danish painter and ceramist, 1864 –1937), Interior,
 Morning sun in the garden room, c. 1930, oil on canvas



Três poemas da solidão
 
 I

Nem aqui nem ali: em parte alguma.
Não é este ou aquele o meu lugar.
Desço à praia, mergulho as mãos no mar,
mas do mar, nos meus dedos, fica a espuma.

Meu jardim, minha cerca, meu pomar.
Perpassa a Ideia e mói, como verruma.
Falar mas para quê? Só por falar?
Já nada quer dizer coisa nenhuma.

Os instintos à solta, como feras,
e eu a pensar em velhas primaveras,
no antigo sortilégio das palavras.

Agora é tudo igual, prazer e dor,
e a tua sementeira não dá flor,
ó triste solidão que as almas lavras.

II

Tão só!
Cada vez são mais longos os caminhos
que me levam à gente.
(E os pensamentos fechados em gaiolas,
as ideias em jaulas.)

Ah, não fujam de mim!
Não mordo, não arranho.
Direi:
— «Pois não! Ora essa! Tem razão».

Entanto, na gaiola,
cantarão em silêncio
os sonhos, as ideias,
como pássaros mudos.

III

Solidão.
A multidão em volta
e o pensamento à solta
como alado corcel.
E as ideias dispersas, em tropel,
como folhas ao vento
pétalas do Pensamento.

Solidão.
A angústia da Cidade,
a impossível procura da Unidade,
o clamor
do silêncio interior,
mais pungente, estridente,
que os bárbaros ruídos
que ferem, dilaceram
os nervos e os sentidos. 


Fernanda de Castro,
in "E Eu, Saudosa, Saudosa"


 
Harald Slott-Møller, A View of Lake Garda at Desenzano, Italy, 1910
 
 
"A solidão não é forçosamente negativa, pelo contrário, até me parece um privilégio. Talvez a minha solidão seja excessiva, mas eu detestei sempre as coisas mundanas. Estar com as pessoas apenas para gastar as horas é-me insuportável."

Eugénio de Andrade, Rosto Precário, 1979

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