terça-feira, 16 de janeiro de 2024

"Venho de ser um corpo pelo mundo" - Poema de José Manuel Caballero Bonald



Raffaello Gambogi (Italian painter, 1874-1943)

 

Venho de ser um corpo pelo mundo


Venho de ser um corpo mais
entre os utensílios da terra.
Venho de recordar as mesmas coisas
que hoje me fazem cair ao esquecimento:
a imagem do amor, seu impetuoso sonho,
a vida que permanece no seu cárcere,
a traição que lealdade foi primeiro,
a mão do amigo onde o joio faz ninho,
todo o rigor do tempo que a si mesmo se nega.

Sou só minha paixão, a minha perdurável
liberdade. (É a hora fugidia dos indícios
onde confluem fogos apagados:
minha memória contempla um espaço vazio
no sítio em que fui meu próprio espelho.)

Nomes e nomes acrescentam minha morte:
nomes que amei sem regra na comarca
de minha fúria nativa, nomes de cegos olhos,
nomes com sua alegria e seu desterro, nomes
de recantos habitáveis, nomes enfim que insistem
do meu coração e revistam minha vida.
Não sei como salvá-los, restituí-los dentro
de seus corpos, entender que me chamam.
Todos me respondem do mesmo modo sempre
quando os reúno à margem de seus atos.
Sem eles nada sou e afundo-me com eles
nos contrafortes finais do esquecimento.
Distantes ou cingidos, os seus vultos
às rajadas percorrem o meu sonho,
insistem para eu viver conforme obriga
a recuperação daqueles nomes.
Não o esquecimento, a morte é quem os salva.

Venho de ser um corpo pelo mundo.


José Manuel Caballero Bonald
Tradução: José Bento


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