Dói-me o nevoeiro, dói-me o céu
Dói-me o nevoeiro, dói-me o céu
Que não está cá.
Estou cansado de ser tudo menos eu.
Onde é que está
A unidade que Deus, suponho, me deu?
Perdi-a por sentir, ou por pensar?
Não serve saber.
Extraviei-a, como um embrulho, a sonhar?
Perder por perder,
Mais vale deixar perder e não procurar.
24-8-1930
Fernando Pessoa,
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa.
Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
O Nevoeiro
Sol e azul e depois névoa. Às vezes começa
em Agosto, outras em Setembro. Uma barra ao longe anuncia-a, uma
barra que cresce em fumarada sobre a terra, ou que se dispersa
correndo para o sul, em labaredas sobre o mar esverdeado. Há
outras névoas no Verão que se descerram lentamente
como cortinas, ficando o panorama límpido como uma aguarela
acabada de pintar. Outras têm léguas de extensão
e levam dias a passar. E o mar exala um cheiro mais vivo quando
o nevoeiro parece dissolver-se, para logo voltar mais denso e
compacto. Às vezes vê-se entre a neblina um ponto
da costa cheio de luz, um rasgão no mar, uma única
pedra iluminada entre o céu infinito e o mar infinito.
Tenho visto também umas névoas esbranquiçadas
que ficam lá para muito fundo embebendo-se de luz. Névoa,
um pouco de sol e brancura, tudo emborralhado. A onda vem de longe,
irrompe da névoa, e só se vêem os grandes
rolos brancos revolvidos de espuma muito ao perto quando se despedaçam.
Em Sagres assisti a um nevoeiro extraordinário. Aparecem
primeiro uns flocos no céu, e a luz tomou-se logo mais
azul, pegando azul à pele, molhando de azul as mãos
estendidas. Depois a névoa, que no Verão dura segundos,
doirou e subiu ao ar, tornando o horizonte mais ilimitado e fantasmagórico...
As névoas anunciam o Inverno. Começam a vir os nevoeiros compactos, que se metem pelas narinas e cheiram a mar e a fumo. Há-os que têm léguas de espessura e levam dias a passar, coortes desordenadas de fantasmas enchendo todo o horizonte. O sino tange. Não se vê palmo diante do nariz. Lá fora os barcos, como cegos, só se guiam pelo som. 0 mar é um misterioso fantasma que os envolve. Cerração cada vez mais mole e espessa... Só a voz se ouve, e o lamento parece vir de mais longe e de mais fundo. Às vezes adelgaça-se um pouco na costa, e grandes rolos de fumaceira crescem do mar sobre a terra. É o Inverno que vem aí. A voz imensa tem já plangências de dor – desabar infinito de lágrimas. De sul para o norte as nuvens correm sempre, coortes sobre coortes que saem das profundas e avançam, deslizam sobre as águas sem ruído, enchendo o céu de farrapos enormes, de fantasmas criados naquele mar salgado e que se seguem em tropel num galope monstruoso para uma grande batalha desconhecida. E de quando em quando o sino chama, chama sempre pelos homens perdidos na névoa espessa que leva dias a passar.
Raul Brandão (1867-1930), em Os Pescadores, 1923.


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