segunda-feira, 22 de setembro de 2025

"Na frágil luz das paisagens" - Poema de Maria Azenha


 
Armand Point (French painter, engraver and designer, 1861–1932), Âme d’Automne (Autumn Soul).
Pastel on brown paper, c. 1890s. Model probably Hélène Linder, later Mme Berthelot
(1867-1955)



Na frágil luz das paisagens


No outono as cidades amarelecidas prolongam-se
para dentro de guarda-chuvas abertos
que teimam socorrer os amantes de um dilúvio universal.

Algumas folhas de árvores esvoaçam como aves
em estado de chamas na frágil luz das paisagens.

Há bilhetes de outono espalhados por toda a parte,
alguns tristes,
outros dão para uma porta fechada que se pode abrir
a qualquer instante.

Quando entrei em casa não havia ninguém lá dentro.
Nem o inverno me esperava. 
 
 
Maria Azenha, in "A Casa da Memória",
Editora Urutau, 2024
 
 

Armand Point, L'Automne, 1893 


Para iluminar o vento


para iluminar o vento
fica em silêncio

a palavra aguarda
um pássaro
no
teu coração


Maria Azenha

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

"Soneto do amigo" - Poema de Vinicius de Moraes


 
Ramon Casas (Spanish artist, 1866–1932), 
 Ramon Casas and Pere Romeu in an Automobile, 1901.
Museu Nacional d'Art de Catalunya, Barcelona


Soneto do amigo


Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica... 
 
 Los Angeles, 1946

Vinicius de Moraes, in "Poemas Esparsos"
 
 

Vinicius de Moraes, "Poemas Esparsos",
Companhia das Letras, 2008.


Poemas esparsos é um livro surpreendente. Força, beleza, humanidade e apuro estético - comuns a todas as obras de Vinicius de Moraes - acham-se aqui numa configuração imprevista: uma seleção de poemas inéditos, ou publicados postumamente, a que se juntaram aqueles que não foram incluídos na Nova antologia poética. 
O volume cobre um vasto período da produção do poeta: do início dos anos 30 a meados dos 70. Ao morrer, em 1980, Vinicius de Moraes deixou alguns livros inconclusos, e grande número de poemas já finalizados, alguns dos quais chegaram a ser publicados na imprensa. 
Este volume resulta de uma longa e minuciosa pesquisa em livros, jornais, revistas, arquivos e manuscritos. Não se trata, porém, de um levantamento com caráter documental: dispensaram-se esboços, exercícios, textos inacabados ou claramente recusados pelo autor, a fim de que viesse à luz apenas aquilo que está à altura das obras publicadas por Vinicius. 
No final, o leitor encontrará também, agrupados na secção "Arquivo", um estudo do percurso poético de Vinicius de Moraes assinado por Ferreira Gullar, crónicas de Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade que festejam e recordam o amigo, bem como um longo depoimento, inédito em livro, de Caetano Veloso. (daqui)



[Pere Romeu i Borràs (Torredembarra, 1862 - Barcelona, 1908) fue un promotor y animador cultural, titiritero, pintor amateur y empresario español, muy ligado al modernismo, propietario del célebre Els Quatre Gats.] (daqui)
 

domingo, 14 de setembro de 2025

"Mulher" - Poema de José Carlos Ary dos Santos


 Ezequiel Pereira (Pintor português, 1868 - 1943), "Lavando roupa no rio", 1894.


Mulher


A mulher não é só casa
mulher-loiça, mulher-cama
ela é também mulher-asa,
mulher-força, mulher-chama.

E é preciso dizer
dessa antiga condição
a mulher soube trazer
a cabeça e o coração.

Trouxe a fábrica ao seu lar
e ordenado à cozinha
e impôs a trabalhar
a razão que sempre tinha.

Trabalho não só de parto
mas também de construção
para um filho crescer farto
para um filho crescer são.

A posse vai-se acabar
no tempo da liberdade
o que importa é saber estar
juntos em pé de igualdade.

Desde que as coisas se tornem
naquilo que a gente quer
é igual dizer meu homem
ou dizer minha mulher.


José Carlos Ary dos Santos
(Poeta e declamador português, 1936–1984)



Ezequiel Pereira, Cruz Quebrada, 1891.


"No homem, o desejo gera o amor; na mulher o amor gera o desejo."

"In men, desire begets love, and in women, love begets desire."
 
Jonathan Swift

Citando Fitzharding, em carta de 28 de outubro de 1712 in "The works of Jonathan Swift:
containing additional letters, tracts, and poems not hitherto published;
with notes, and a life of the author"‎ - Volume 3, Página 61.

 
Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado.

Ezequiel Pereira, pintor paisagista e professor, nasceu em Lisboa em 1868. Discípulo de Silva Porto, estudou em Paris e destacou-se no ensino artístico durante 40 anos. Foi premiado em várias exposições e condecorado pelo Governo. Viveu entre Lisboa, Ponta Delgada e Faro, deixando um legado de dedicação à arte e à educação. Faleceu em 1943, tendo a sua obra sido homenageada postumamente.


 
Duarte Faria e Maia (Pintor açoriano, 1867 - 1922), 
Autorretrato, c. 1897, Museu Carlos Machado.
 
Duarte Faria e Maia estudou em Paris, em 1887, onde foi discípulo de Blanc, Dupain e Olivier Merson, destacando-se como pintor de costumes populares, da vida rural e de paisagens. Participou nas exposições do Grémio Artístico, em 1882, na Sociedade Promotora de Belas-Artes, em 1887, e na 1ª Exposição da Sociedade Nacional de Belas-Artes, em 1901. 
A principal coleção das suas pinturas encontra-se no Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, instituição que possui cerca de três dezenas de obras deste pintor. Está representado no Museu do Chiado, em Lisboa, com o Retrato do Pintor Ezequiel Pereira (1903).

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

"Silogismos" - Poema de Ana Luísa Amaral

 

William Mainwaring Palin (English painter and decorative artist, 1862-1947),
Mother and Child, 1899.



Silogismos



A minha filha perguntou-me
o que era para a vida inteira
e eu disse-lhe que era para sempre.

Naturalmente, menti,
mas também os conceitos de infinito
são diferentes: é que ela perguntou depois
o que era para sempre
e eu não podia falar-lhe em universos
paralelos, em conjunções e disjunções
de espaço e tempo,
nem sequer em morte.

A vida inteira é até morrer,
mas eu sabia ser inevitável a questão
seguinte: o que é morrer?

Por isso respondi que para sempre
era assim largo, abri muito os braços,
distraí-a com o jogo que ficara a meio.

(No fim do jogo todo,
disse-me que amanhã
queria estar comigo para a vida inteira.)


Ana Luísa Amaral, in "O Olhar Diagonal das Coisas"



"O Olhar Diagonal das Coisas" de Ana Luísa Amaral
Editor: Assírio & Alvim, 2022


SINOPSE
 
Estes são poemas de precisão, questionamento e de receitas para várias crises: O Olhar Diagonal das Coisas reúne os 17 livros de poesia de Ana Luísa Amaral, trinta anos em verso inaugurados por Minha Senhora de Quê (1990), até ao mais recente Mundo (2021).
 
Metafísico fruto

Um fruto reticente é a saudade:
a pele custosa à faca, olhos como
cavernas onde a faca não chega e

uma arte cirúrgica é precisa.
Não posso permiti-la no caixote
a insistir-me a alma. Por isso

insisto a arte e a minha perícia
em lhe arrancar a pele, os olhos
reticentes de Sibila.

Às fatias depois — tarefa
igual —
 
 

William Mainwaring Palin, Portrait of Nora Allen, 1910.


"Minhas primeiras pátrias foram os livros."

 

Marguerite Yourcenar (1903-1987), 
foto de Bernhard De Grendel, 1982.


Marguerite Yourcenar

Pseudónimo da escritora francesa Marguerite de Crayencour, nascida em 1903, em Bruxelas, Bélgica, e que veio a naturalizar-se norte-americana. A sua mãe, a aristocrata belga Fernande de Cartier, morreu 10 dias após o parto e a jovem Marguerite mudou-se para o norte de França com seu pai, onde permaneceu até 1914, altura em que a Primeira Guerra Mundial obrigou a família a fixar residência em Londres.
Já em Inglaterra, Marguerite aprendeu inglês e iniciou o estudo das línguas clássicas com o seu pai, Michel de Crayencour. Marguerite nunca frequentou a escola, tendo sempre estudado em casa com o pai ou com precetores que lhe proporcionaram uma educação esmerada. O pai, Michel, influenciou-lhe o gosto pela literatura francesa e pela literatura russa, tendo ambos encetado inúmeras viagens pela Europa e pelo Médio e Extremo Oriente durante a juventude da autora.
Aos 16 anos escreveu o seu primeiro livro, Le jardin des chimères (O Jardim das Quimeras), que foi publicado em 1921 numa edição paga pelo próprio pai, sob o pseudónimo "Marg Yourcenar". O apelido "Yourcenar", anagrama de Crayencour, o seu nome de família, foi criado por Marguerite e Michel.
Em 1926 o pai voltou a casar e a autora mudou-se para a Suíça. Publicou Feux (Fogos) em 1936 e, um ano depois, conheceu Virgínia Woolf com quem colaborou em várias traduções.
Antes de partir para os Estados Unidos publicou Nouvelles orientales (Contos Orientais) do qual fazia parte o conto "A Fuga de Wang-fô". Depois de 10 anos a viver nos Estados Unidos, Marguerite pediu a nacionalidade norte-americana. Frequentou a Universidade de Yale e ensinou literatura francesa no Sarah Lawrence College, em Nova Iorque.
Em 1951 publicou Mémoires d'Hadrien (Memórias de Adriano), fruto de quinze anos de trabalho, a sua obra maior que a tornou internacionalmente conhecida. Este sucesso seria confirmado com L'oeuvre au Noir (A Obra ao Negro), 1968, uma biografia imaginária de um herói do século XVI atraído pelo hermetismo e a ciência. Publicou ainda poemas, ensaios e memórias, manifestando uma atração pela Grécia e pelo misticismo oriental patente em trabalhos como Mishima ou la vision du vide (1981, Mishima ou a Visão do Vazio) e Comme l'eau qui coule (1982, Como a Água que Corre).
Marguerite Yourcenar foi a primeira mulher convidada para a Academia Francesa de Letras, em 1980, tendo ocupado o lugar em janeiro de 1981. A autora faleceu a 17 de dezembro de 1987, nos Estados Unidos, deixando uma marca profunda na literatura de expressão francesa. (daqui)

terça-feira, 9 de setembro de 2025

“Meditação” - Poema de Natália Correia

 

 
John George Brown (British citizen and an American painter, 1831–1913),
 Meditation, 1881.
 


Meditação


A carne é flor ou consequência do seu perfume?
Seja o que for
é intensidade que a flor resume.
A mão é gesto que a ultrapassa. O gesto é além.
Porque a mão toca o horizonte
que o gesto da mão contém.
O homem canta.
E enquanto canta o homem dura.
Porque o seu canto é perceber
que a voz prevalece à criatura. 


Natália Correia
, in "Poesia Completa"
 
 
 
"Poesia Completa" de Natália Correia
Edição/reimpressão: 1999. Páginas: 636.
Editor: Dom Quixote



SINOPSE

A reunião da Poesia Completa de Natália Correia foi preparada e em parte revista pela própria autora, que lhe atribuiu o título O Sol nas Noites e o Luar nos Dias (cf. poema VIII de "Rio de Nuvens", "E tudo se esconde / Nessa hora onde / Por estranha magia / brilha o sol de noite / e o luar de dia."). Colige a reedição de toda a sua obra poética (Rio de Nuvens (1947), Poemas (1955), Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959), Cântico do País Emerso (1961), O Vinho e a Lira (1966), Mátria (1968), A Mosca Iluminada (1972), O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973), Epístola aos Lamitas (1976), O Dilúvio e a Pomba (1979), O Armistício (1985), Sonetos Românticos (1990) e dá à estampa um volume considerável de inéditos, de que consta quer a poesia escrita entre 1941 e 1947 quer tudo o que foi escrito no intervalo da publicação das suas obras poéticas. 
Na Introdução define o ato poético como uma "recôndita disponibilidade para receber a mercê que [lhe] é dada em palavras de olhar as coisas de uma outra forma, alinhando-as num ritmo que corre para um ponto onde tudo está abrangido", através de uma "linguagem construída na esfera psíquica de fatores transpessoais que atuam como uma força unificadora". Essa totalidade impõe ao poeta uma missão social, tornando-se, então, poesia de combate, numa luta pela justiça definida como moral da vida verdadeira, alheia às leis de "moralismos utilitários" (pp. 30-31), intenso e alquímico ato de "desencantar, em penosa solidão, o engenho de fazer ouvir o sopro da Alma Universal na palavra em que se incuba a transformação da alma da humanidade" (p. 34). (daqui)

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

"Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra" - Poema de Álvaro de Campos



Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), Vista de Sintra, s.d.



Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra


Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir? 

Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa? 
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...

11-5-1928

Álvaro de Campos

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. 
Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 37.


Mota Urgeiro, Sintra, óleo s/tela, 70 x 90 cm.
 

"Tudo em Sintra é divino, não há cantinho que não seja um poema."

Eça de Queiroz
, no livro "Os Maias."
 


Mota Urgeiro, Palácio da Pena - Sintra, óleo s/tela, 70 x 90 cm.
 

"Sintra daria um bom paraíso no caso de Deus fazer outra tentativa!"

José Saramago, no livro "Memorial do Convento."
 

domingo, 7 de setembro de 2025

"O Jardim" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen



Leo Putz
(Tyrolean painter, 1869-1940), Breakfast in the Garden, 1907. 



O Jardim


O jardim está brilhante e florido.
Sobre as ervas, entre as folhagens,
O vento passa, sonhador e distraído,
Peregrino de mil romagens.

É Maio ácido e multicolor,
Devorado pelo próprio ardor,
Que nesta clara tarde de cristal
Avança pelos caminhos
Até os fantásticos desalinhos
Do meu bem e do meu mal.

E no seu bailado levada
Pelo jardim deliro e divago,
Ora espreitando debruçada
Os jardins do fundo do lago,
Ora perdendo o meu olhar
Na indizível verdura
Das folhas novas e tenras
Onde eu queria saciar
A minha longa sede de frescura.


Sophia de Mello Breyner Andresen
,
in "Dia do Mar", 1947.



 
"Dia do Mar" de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Edição/reimpressão: 03-2014,
 Editor: Assírio & Alvim. 
 

SINOPSE 

"Dia do Mar" é o segundo livro de Sophia de Mello Breyner Andresen, publicado em 1947 após o volume «Poesia», já publicado pela Assírio & Alvim. Aqui, como de resto em muita da sua obra, a poeta busca a perfeição, a pureza e a harmonia, utilizando alguns lugares recorrentes como o mar, a praia, a casa e o jardim. 
Visitando a infância, onde aprendeu a ouvir as vozes das coisas, o mar é aqui uma fonte de purificação e um lugar onde tudo adquire sentido. Como escreve Gastão Cruz, no prefácio a esta edição, «Uma tensão dialética percorre "Dia do Mar": o poeta divide-se entre a sensação de viver intensamente o milagre do mundo […] e a consciência da impossibilidade duma vivência plena dessa maravilha, realmente apenas reservada aos deuses.»

As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim. 



Leo Putz, Frieda Blell (German landscape painter, 1874–1951), c. 1903.


"Queria de ti um país de bondade e de bruma
Queria de ti o mar de uma rosa de espuma."

 
Mário Cesariny
(Poeta, pintor, tradutor e considerado um dos grandes Mestres do Surrealismo Português, 1923–2006)
 
 

sábado, 6 de setembro de 2025

"Agora que morreste" - Poema de Teresa Rita Lopes

 
 
Herbert James Gunn (Scottish landscape and portrait painter, 1893–1964),
Portrait of Gwen and Diana Gunn, the artist's first wife and daughter, s.d.
 


Agora que morreste


Agora que morreste Mãe
e só em mim te tenho
sou mais que o meu tamanho
porque sou tu também.

Tuas mãos afagam minhas mãos
de quem são estes gestos esta pele?
Nunca me deste irmãos
só contigo reparto o meu farnel

de quotidianos fardos e alegrias
breves e desta brasa em chaga
que é tua ausência nos meus dias
órfãos mas sempre ao colo desta mágoa

de não te ter de te ter sido esquiva
de não te ter nunca aberto as portas
do meu ser de nunca te ter dado vivas
o que hoje já só são carícias mortas.


Teresa Rita Lopes
,
Diário de Uma Ausência, 27/03/1994,
in Cicatriz, Editorial Presença, 1996
 
 

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

"Solidão" - Poema de Fernanda de Castro

  

 
James Francis Day (American artist, 1863-1942), Afternoon Tea, 1931.



Solidão


Eu tinha medo à solidão. Temia
encontrar-me comigo, frente a frente,
e resignar-me a viver contente
já que viver feliz eu não podia.

Queria à minha volta muita gente,
repartia em minutos o meu dia
procurando a ilusão duma alegria
que tanto desejara inutilmente.

Mas breve compreendi que a solidão
era não ter ninguém no coração,
e buscando outro fim para os meus passos,

eu fiz da vida um canto mais profundo
e, pouco a pouco, limitei o mundo
à reduzida curva dos meus braços.


Fernanda de Castro, in "39 Poemas", 1942


quarta-feira, 3 de setembro de 2025

"Aprendimentos" - Poema de Manoel de Barros

 


Marianne North (English Victorian biologist and botanical artist, 1830–1890),
Yellow Bignonia and Swallow-Tail Butterflies with a View of Congonhas,
 Brazil, c. 1873.


Aprendimentos


O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura
é o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada.

Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs.

E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.

Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles —
esse pessoal.

Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova.
Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam
que o fascínio poético vem das raízes da fala.

Sócrates falava que as expressões mais eróticas
são donzelas. E que a Beleza se explica melhor
por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei
sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.


Manoel de Barros
, in "Memórias inventadas: a segunda infância."