quinta-feira, 30 de julho de 2015

"Amar e ser amado" - Poema de Castro Alves


(Suzanne Valadon and Paul Lhote), 1883, 



Amar e ser amado


Amar e ser amado! Com que anelo
Com quanto ardor este adorado sonho
Acalentei em meu delírio ardente
Por essas doces noites de desvelo!
Ser amado por ti, o teu alento
A bafejar-me a abrasadora frente!
Em teus olhos mirar meu pensamento, 
Sentir em mim tu’alma, ter só vida
P’ra tão puro e celeste sentimento:
Ver nossas vidas quais dois mansos rios, 
Juntos, juntos perderem-se no oceano —,
Beijar teus dedos em delírio insano
Nossas almas unidas, nosso alento, 
Confundido também, amante — amado —
Como um anjo feliz... que pensamento!?


in Obras completas (Vol. I), 1921 

quarta-feira, 29 de julho de 2015

"Não sabes" - Poema de Castro Alves


(Aline Charigot and Paul Lhote), 1883,
  Musée d'Orsay, Paris



Não sabes 


Quando alta noite n'amplidão flutua
Pálida a lua com fatal palor,
Não sabes, virgem, que eu por ti suspiro
E que deliro a suspirar de amor.

Quando no leito entre subtis cortinas
Tu te reclinas indolente aí,
Ai! Tu não sabes que sozinho e triste
Um ser existe que só pensa em ti.

Lírio dest'alma, sensitiva bela,
És minha estrela, meu viver, meu Deus.
Se olhas - me rio, se sorris - me inspiro,
Choras - deliro por martírios teus.

E tu não sabes deste meu segredo,
Ah! Tenho medo do teu rir cruel!...
Pois se o desprezo fosse a minha sorte
Bebera a morte neste amargo fel.

Mas dá-me a esperança num olhar quebrado,
Num ai magoado, num sorrir do céu,
Ver-me-ás dizer-te na febril vertigem;
"Não sabes, virgem? Meu futuro é teu"!


in Obras completas 

terça-feira, 28 de julho de 2015

"Para voltar a ver-te" - Poema de Alberto Pimenta


James Denmark (American, 1936 -), Full Moon, 2006


Para voltar a ver-te 


Para voltar
a ver-te
um só instante,
a ti,
que és mais bela que a lua,
antes que a manhã recolha
as estrelas
uma a uma
e as guarde
do outro lado do céu,

vou atravessar
o rio
coberto de holofotes,
que transformam o verde claro
numa fosforescência
de água assustada.

Se não me matarem
nem me apanharem vivo,
mantém-te alerta,
mantém alerta
o desejo mais antigo
e o mais novo.

Vou passar
do lado de fora
da parede
perfurada
pelas balas:

Passa-me um lenço
de seda
com o teu perfume.

Marca-o com o segredo
dos teus lábios.


in 'Marthiya de Abdel Hamid Segundo Alberto Pimenta' , 2005


segunda-feira, 27 de julho de 2015

"O Primeiro Filho" - Poema de António Nobre





O Primeiro Filho


A virgem de ontem é já hoje Mãe: 
O leito azul e branco do noivado 
Ei-lo, em bem pouco tempo, transformado 
Num berço onde existe mais alguém. 

Na rósea alcova atapetada, além, 
Uma velhota, ex-noiva do passado, 
Beijando o pequenito com cuidado, 
Diz: — Bom tempo em que eu fui assim, também. 

No entanto a boa Mãe cheia de Graça, 
Estende-se no leito, exausta e lassa, 
Cercada duma auréola de luz. 

E beijando o filhito que adormece, 
Olhada assim, de súbito, parece 
A Virgem Mãe a acalentar Jesus... 


António Nobre, in 'Antologia Poética'


sexta-feira, 24 de julho de 2015

"Fiei-me nos Sorrisos da Ventura" - Soneto de Bocage





Fiei-me nos Sorrisos da Ventura


Fiei-me nos sorrisos da Ventura, 
Em mimos feminis. Como fui louco!
Vi raiar o prazer; porém tão pouco
Momentâneo relâmpago não dura.

No meio agora desta selva escura, 
Dentro deste penedo húmido e oco,
Pareço, até no tom lúgubre e rouco,
Triste sombra a carpir na sepultura. 

Que estância para mim tão própria é esta!
Causais-me um doce e fúnebre transporte, 
Áridos matos, lôbrega floresta! 

Ah!, não me roubou tudo a negra Sorte:
Inda tenho este abrigo, inda me resta 
O pranto, a queixa, a solidão e a morte. 


 

quarta-feira, 22 de julho de 2015

"Falta Pouco" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Tjalf Sparnaay,  Sandwich Ham-Egg, oil on canvas, 2014, 95x150cm



Falta Pouco


Falta pouco para acabar 
o uso desta mesa pela manhã 
o hábito de chegar à janela da esquerda 
aberta sobre enxugadores de roupa. 
Falta pouco para acabar 
a própria obrigação de roupa 
a obrigação de fazer barba 
a consulta a dicionários 
a conversa com amigos pelo telefone. 

Falta pouco 
para acabar o recebimento de cartas 
as sempre adiadas respostas 
o pagamento de impostos ao país, à cidade 
as novidades sangrentas do mundo 
a música dos intervalos. 

Falta pouco para o mundo acabar 
sem explosão 
sem outro ruído 
além do que escapa da garganta com falta de ar. 

Agora que ele estava principiando 
a confessar 
na bruma seu semblante e melodia. 



 in 'A Falta que Ama' 


terça-feira, 21 de julho de 2015

"Poema para Iludir a Vida" - Fernando Namora


Suzanne Valadon, Nus, 1919
 

Poema para Iludir a Vida


Tudo na vida está em esquecer o dia que passa. 
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste, 
um cedro, areias, raízes, 
ou asa de anjo 
caída num paul. 
O navio que passou além da barra 
já não lembra a barra. 
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar 
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos portos.

Hoje corre-te um rio dos olhos 
e dos olhos arrancas limos e morcegos. 
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje o fim 
e que há certezas, firmes e belas, 
que nem os olhos vesgos 
podem negar. 
Hoje é o dia de amanhã. 


Fernando Namora, in "Mar de Sargaços (1940)"

segunda-feira, 20 de julho de 2015

"Congresso Internacional do Medo" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


John Everett MillaisThe North West Passage, 1874



Congresso Internacional do Medo


Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.



domingo, 19 de julho de 2015

"A morte devagar" - Texto de Martha Medeiros


Claudia SoriaA Walk in the Woods2013, Acrílico e colagem de papel sobre madeira



A morte devagar

Morre lentamente quem é escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos itinerários. Quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor, e não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos 'is' a um redemoinho de emoções, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos, coração aos tropeços e os sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca trocar o certo pelo duvidoso para ir atrás de um sonho, quem não se permite fugir dos conselhos sensatos, pelo menos uma vez na vida.

Morre lentamente quem não viaja quem não lê quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente quem não tem amor-próprio, quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da sua falta de sorte, da chuva incessante.

Morre lentamente quem abandona um projeto antes de iniciá-lo. Quem não pergunta sobre um assunto que desconhece ou não responde quando lhe perguntam sobre algo que sabe.

Evitamos a morte em pequenas doses, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o simples ato de respirar. Somente a paciência ardente fará que conquistemos uma felicidade plena.


[Trecho da crónica "A Morte Devagar", publicada por Martha Medeiros no dia 1 de novembro de 2000, muitas vezes, equivocadamente, atribuído a Pablo Neruda.]


Martha Medeiros

Martha Medeiros
, brasileira, nasceu no dia 20 de agosto de 1961. Colunista do jornal “Zero Hora” de Porto Alegre, e “O Globo” do Rio de Janeiro, desistiu da carreira de Publicitária para ingressar no mundo da literatura, como escritora, jornalista, aforista e poeta.

sábado, 18 de julho de 2015

"Clara" - Poema de Casimiro de Abreu


 


Clara


Não sabes, Clara, que pena
eu teria se — morena
tu fosses em vez de clara!
Talvez... quem sabe... não digo...
mas refletindo comigo
talvez nem tanto te amara!

A tua cor é mimosa,
brilha mais da face a rosa
tem mais graça a boca breve.
O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
és clara da cor da neve!

A morena é predileta,
mas a clara é do poeta:
assim se pintam arcanjos.
Qualquer, encantos encerra, 
mas a morena é da terra
enquanto a clara é dos anjos!

Mulher morena é ardente:
prende o amante demente
nos fios do seu cabelo;
— A clara é sempre mais fria,
mas dá-me licença um dia
que eu vou arder no teu gelo! 

A cor morena é bonita,
mas nada, nada te imita
nem mesmo sequer de leve.
— O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
és clara da cor da neve!



Henri de Toulouse-Lautrec, La Toilette, 1896


"A vida é puro ruído entre dois silêncios abismais. Silêncio antes de nascer, silêncio após a morte."



sexta-feira, 17 de julho de 2015

"No Coração talvez" - Poema de José Saramago


Portrait of a heart by Christian Schloe



No Coração talvez


No coração, talvez, ou diga antes: 
Uma ferida rasgada de navalha, 
Por onde vai a vida, tão mal gasta. 
Na total consciência nos retalha. 
O desejar, o querer, o não bastar, 
Enganada procura da razão 
Que o acaso de sermos justifique, 
Eis o que dói, talvez no coração. 


José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"


The Heartache by Christian Schloe


"O coração tem razões que a própria razão desconhece." 
"Le cœur a ses raisons que la raison ne connaît point"


"Pensées, fragments et lettres de Blaise Pascal: publiés pour la première fois conformément aux manuscrits, originaux en grande partie inédits" - Volume 2, Página 172, Blaise Pascal, Prosper Faugère - Andrieux, 1814



"Love Is the Key" by Christian Schloe
 

quinta-feira, 16 de julho de 2015

"A Língua Portuguesa" - Poema de Alberto de Lacerda


 Fotografia de Rui Videira - Rio Douro, Porto, Portugal 



A Língua Portuguesa 


Esta língua que eu amo
Com seu bárbaro lanho
Seu mel
Seu helénico sal
E azeitona
Esta limpidez
Que se nimba
De surda
Quanta vez
Esta maravilha
Assassinadíssima
Por quase todos os que a falam
Este requebro
Esta ânfora
Cantante
Esta máscula espada
Graciosíssima
Capaz de brandir os caminhos todos
De todos os ares
De todas as danças
Esta voz
Esta língua
Soberba
Capaz de todas as cores
Todos os riscos
De expressão
(E ganha sempre a partida)
Esta língua portuguesa
Capaz de tudo
Como uma mulher realmente
Apaixonada
Esta língua
É minha Índia constante
Minha núpcia ininterrupta
Meu amor para sempre
Minha libertinagem
Minha eterna
Virgindade.


«A Língua Portuguesa» in Exílio in Oferenda I,
 Lisboa, IN-­CM, 1984, pp. 316-317)


quarta-feira, 8 de julho de 2015

"Eu sei, mas não devia" - Texto de Marina Colasanti



Anna Ancher, A cottage with light blue curtains and Blue Clematis, 1913
 (Skagen Painters)


Eu sei, mas não devia


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. 

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Marina Colasanti, in "Eu sei, mas não devia"


Anna Ancher, Luz solar na Sala Azul, 1891 


"Quando sentimos que a mão da morte nos pousa no ombro, a vida ilumina-se de outra maneira e descobrimos em nós mesmos coisas maravilhosas de que nem sequer suspeitávamos." 

terça-feira, 7 de julho de 2015

"Limites do Amor" - Poema de Affonso Romano de Sant'Anna


Henri de Toulouse-Lautrec (French, 1864-1901), In bed, 1893, Musée d'Orsay, Paris



Limites do Amor


Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.

O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:

- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta. 



domingo, 5 de julho de 2015

"Ausência" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Paula Rego, Snow White Swallows the Poisoned Apple, 1995


Ausência


Num deserto sem água
Numa noite sem luar
Num país sem nome
Ou numa terra nua 

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.






"Estar em meu estúdio é um pouco como estar dentro de um cérebro - você está totalmente livre para fazer o que quiser. Eu escondo-me e desenho o dia todo." - Paula Rego


Paula Rego


«Não gosto de pintar ao vivo. Gosto de canalizar imagens naturalistas, abstratas, ornamentais, feiticistas, infantis.» - Paula Rego (Num depoimento incluso no catálogo para a exposição "Pintura Portuguesa de Hoje", 1973)
 

Paula Rego


"Há uma parte de mim muito, muito forte em Portugal, mas faço uso disso muito melhor aqui, na Inglaterra, do que lá". - Paula Rego


Paula Rego


"Eu tinha medo do escuro, do demónio, de tudo. Passava a maior parte do meu tempo desenhando e brincando. Desenhar era uma linguagem." - Paula Rego


Paula Rego


"Grandes Mestres da Pintura" destaca Paula Rego, a única artista viva a ter seu trabalho em exposição permanente na prestigiada Sainsbury Wing da Galeria Nacional de Londres. Segundo o renomado crítico de arte inglês John McEwen, Paula Rego é "a mais conceituada artista residente na Inglaterra".

Pintura de Paula Rego


"Rego pinta garotas troncudas, ossudas, cabeludas, libidinosas - e não aqueles tipos graciosos mediterrâneos. Mas elas são, indubitavelmente, feministas". - Germaine Greer (Autora do livro-referência sobre mulheres pintoras "The Obstacle Race" - "A Corrida de Obstáculos")


Paula Rego, The Policeman's Daughter, 1987


"Seus quadros têm uma subversão profunda. Não há nada previsível, são todos espontâneos. Ela não pertence a uma determinada escola. Ela pensa com imagens - algumas delas as mais extraordinárias e distorcidas que já vi". - Germaine Greer


Paula Rego, Snow White Playing with her Father's Trophies, 1995


Paula Rego, Snow White and her Stepmother, 1995


quinta-feira, 2 de julho de 2015

"Desejos" - Poema de Affonso Romano de Sant'Anna


Anna Ancher, Evening Prayer, 1888



Desejos


Disto eu gostaria:
ver a queda frutífera dos pinhões sobre o gramado
e não a queda do operário dos andaimes
e o sobe-e-desce de ditadores nos palácios.
Disto eu gostaria:
ouvir minha mulher contar:
- Vi naquela árvore um pica-pau em plena ação,
e não: - Os preços do mercado estão um horror!

Disto eu gostaria:
que a filha me narrasse:
- As formigas neste inverno estão dando tempo às flores,
e não: - Me assaltaram outra vez no ônibus do colégio.

Disto eu gostaria:
que os jornais trouxessem notícias das migrações
dos pássaros
que me falassem da constelação de Andrômeda
e da muralha de galáxias que, ansiosas, viajam
a 300 km por segundo ao nosso encontro.

Disto eu gostaria:
saber a floração de cada planta,
as mais silvestres sobretudo,
e não a cotação das bolsas
nem as glórias literárias.

Disto eu gostaria:
ser aquele pequeno inseto de olhos luminosos
que a mulher descobriu à noite no gramado
para quem o escuro é o melhor dos mundos.


Affonso Romano de Sant'Anna
 
 

quarta-feira, 1 de julho de 2015

"Os Homens Gloriosos" - Poema de Cecília Meireles


Os Homens Gloriosos

 Sentei-me sem perguntas à beira da terra,
e ouvi narrarem-se casualmente os que passavam.
Tenho a garganta amarga e os olhos doloridos:
deixai-me esquecer o tempo,
inclinar nas mãos a testa desencantada,
e de mim mesma desaparecer,
— que o clamor dos homens gloriosos
cortou-me o coração de lado a lado.

Pois era um clamor de espadas bravias,
de espadas enlouquecidas e sem relâmpagos,
ah, sem relâmpagos...
pegajosas de lodo e sangue denso.

Como ficaram meus dias, e as flores claras que pensava!
Nuvens brandas, construindo mundos,
como se apagaram de repente!

Ah, o clamor dos homens gloriosos
atravessando ebriamente os mapas!

Antes o murmúrio da dor, esse murmúrio triste e simples
de lágrima interminável, com sua centelha ardente e eterna.

Senhor da Vida, leva-me para longe!
Quero retroceder aos aléns de mim mesma!
Converter-me em animal tranquilo,
em planta incomunicável,
em pedra sem respiração.

Quebra-me no giro dos ventos e das águas!
Reduze-me ao pó que fui!
Reduze a pó minha memória!

Reduze a pó
a memória dos homens, escutada e vivida...


Cecília Meireles, in 'Mar Absoluto'