domingo, 29 de novembro de 2015

"Amanhecimento" - Poema de Elisa Lucinda


Jean-Honoré Fragonard, The Stole Kiss, 1780



Amanhecimento


De tanta noite que dormi contigo
no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.
Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam
a dura parede.
nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.
Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
Para um dia partirem em revoada.
Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada…
Ninguém repara,
nossa noite está acostumada.



sábado, 28 de novembro de 2015

"Soneto de Contrição" - Poema de Vinicius de Moraes


Friedrich von Amerling, A Pensive Moment, 1835

 

Soneto de Contrição 


Eu te amo, Maria, eu te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto. 

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa. 

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma… 

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida.


 in 'Antologia Poética'
 

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

"E assim em Nínive" - Poema de Ezra Pound


Marcus Stone (1840-1921), The End of the Story, 1900
 


E assim em Nínive


Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

Vê! não me cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou um poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

Não é, Raana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho. 
 
do livro "Ezra Pound Antologia De Poemas" 
(tradução de Augusto de Campos)

"Operário em construção" - Poema de Vinicius de Moraes

Grenade by Banksy  (Daqui)



O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
Rio de Janeiro, 1959
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo: — Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: — Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás (Lucas, cap. IV, versículos 5-8).

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Vinicius de Moraes

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

"O Cemitério Marinho" - Poema de Paul Valéry


William Orpen, Grace Reading at Howth Bay, 1902



O Cemitério Marinho


Esse teto tranquilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
Um longo olhar sobre a calma dos deuses!

Que lavor puro de brilhos consome
Tanto diamante de indistinta espuma
E quanta paz parece conceber-se!
Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria.

Tesouro estável, templo de Minerva,
Massa de calma e nítida reserva,
Água franzida, olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
— Ó meu silêncio!… Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, teto!

Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.


Trecho de “O Cemitério Marinho”
Tradução de Darcy Damasceno






Poema

Um dia, eu e meu sonho a sós,
Eu e meu sonho.
Deitei na areia a cabeça derrotada por mares vingativos
E tormentas abatidas sobre crepúsculos macios.
No bojo de meu sonho rolava um canto de vencido,
Um mar se debatia entre as minhas mãos crispadas.
Sobre a areia eu e meu sonho, derrotados,
E sobre a vida e sobre a morte
Um céu de exílio se abateu.


Darcy Damasceno
1922-1988
poeta, crítico e tradutor


domingo, 22 de novembro de 2015

"Dispersão" - Poema de Mário de Sá-Carneiro


Retrato do pintor Paulus Potter (1654) por Bartholomeus van der Helst
 


Dispersão 


Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto, 
E hoje, quando me sinto, 
É com saudades de mim. 

Passei pela minha vida 
Um astro doido a sonhar. 
Na ânsia de ultrapassar, 
Nem dei pela minha vida... 

Para mim é sempre ontem, 
Não tenho amanhã nem hoje: 
O tempo que aos outros foge 
Cai sobre mim feito ontem. 

(O Domingo de Paris 
Lembra-me o desaparecido 
Que sentia comovido 
Os Domingos de Paris: 

Porque um domingo é família, 
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza 
Não têm bem-estar nem família). 

O pobre moço das ânsias... 
Tu, sim, tu eras alguém! 
E foi por isso também 
Que te abismaste nas ânsias. 

A grande ave dourada 
Bateu asas para os céus, 
Mas fechou-as saciada 
Ao ver que ganhava os céus. 

Como se chora um amante, 
Assim me choro a mim mesmo: 
Eu fui amante inconstante 
Que se traiu a si mesmo. 

Não sinto o espaço que encerro 
Nem as linhas que projeto: 
Se me olho a um espelho, erro - 
Não me acho no que projeto. 

Regresso dentro de mim, 
Mas nada me fala, nada! 
Tenho a alma amortalhada, 
Sequinha, dentro de mim. 

Não perdi a minha alma, 
Fiquei com ela, perdida. 
Assim eu choro, da vida, 
A morte da minha alma. 

Saudosamente recordo 
Uma gentil companheira 
Que na minha vida inteira 
Eu nunca vi... Mas recordo 

A sua boca doirada 
E o seu corpo esmaecido, 
Em um hálito perdido 
Que vem na tarde doirada. 

(As minhas grandes saudades 
São do que nunca enlacei. 
Ai, como eu tenho saudades 
Dos sonhos que não sonhei!...) 

E sinto que a minha morte - 
Minha dispersão total - 
Existe lá longe, ao norte, 
Numa grande capital. 

Vejo o meu último dia 
Pintado em rolos de fumo, 
E todo azul de agonia 
Em sombra e além me sumo. 

Ternura feita saudade, 
Eu beijo as minhas mãos brancas... 
Sou amor e piedade 
Em face dessas mãos brancas... 

Tristes mãos longas e lindas 
Que eram feitas para se dar... 
Ninguém mas quis apertar... 
Tristes mãos longas e lindas... 

E tenho pena de mim, 
Pobre menino ideal... 
Que me faltou afinal? 
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!... 

Desceu-me na alma o crepúsculo; 
Eu fui alguém que passou. 
Serei, mas já não me sou; 
Não vivo, durmo o crepúsculo. 

Álcool dum sono outonal 
Me penetrou vagamente 
A difundir-me dormente 
Em uma bruma outonal. 

Perdi a morte e a vida, 
E, louco, não enlouqueço... 
A hora foge vivida, 
Eu sigo-a, mas permaneço... 

. . . . . . . . . . . . . . . 
. . . . . . . . . . . . . . . 


"Os Vendilhões do Templo" - Poema de António Aleixo


A ratificação do Tratado de Münster, 15 de maio de 1648 por Gerard ter Borch, 1648



Os Vendilhões do Templo


Deus disse: faz todo o bem 
Neste mundo, e, se puderes, 
Acode a toda a desgraça 
E não faças a ninguém 
Aquilo que tu não queres 
Que, por mal, alguém te faça. 

Fazer bem não é só dar 
Pão aos que dele carecem 
E à caridade o imploram, 
É também aliviar 
As mágoas dos que padecem, 
Dos que sofrem, dos que choram. 

E o mundo só pode ser 
Menos mau, menos atroz, 
Se conseguirmos fazer 
Mais p'los outros que por nós. 

Quem desmente, por exemplo, 
Tudo o que Cristo ensinou. 
São os vendilhões do templo 
Que do templo ele expulsou. 

E o povo nada conhece... 
Obedece ao seu vigário, 
Porque julga que obedece 
A Cristo — o bom doutrinário. 


in "Este Livro que Vos Deixo..."


 Bartholomeus van der Helst, Banquete da Guarda Cívica Amsterdã em celebração da Paz de Münster,
 pintado em 1648, exposto no Rijksmuseum.

sábado, 21 de novembro de 2015

"A poesia vai acabar" - Poema de Manuel António Pina


Alicia Czechowski (American, b. 1953), Figura num patamar


A poesia vai acabar 


A poesia vai acabar, os poetas 
vão ser colocados em lugares mais úteis. 
Por exemplo, observadores de pássaros 
(enquanto os pássaros não acabarem). 
Esta certeza tive-a hoje ao 
entrar numa repartição pública. 
Um senhor míope atendia devagar 
ao balcão; eu perguntei: 
"Que fez algum poeta por este senhor?" 
E a pergunta afligiu-me tanto 
por dentro e por fora da cabeça que 
tive que voltar a ler 
toda a poesia desde o princípio do mundo. 
Uma pergunta numa cabeça. 
– Como uma coroa de espinhos: 
estão todos a ver onde o autor quer chegar? –


Manuel António Pina
in "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo.
 Calma é Apenas um Pouco Tarde"

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

"Carta (Esboço)" - Poema de Nuno Júdice


 


Carta (Esboço)


Lembro-me agora que tenho de marcar um 
encontro contigo, num sítio em que ambos 
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma 
das ocorrências da vida venha 
interferir no que temos para nos dizer. Muitas 
vezes me lembrei de que esse sítio podia 
ser, até, um lugar sem nada de especial, 
como um canto de café, em frente de um espelho 
que poderia servir de pretexto 
para refletir a alma, a impressão da tarde, 
o último estertor do dia antes de nos despedirmos, 
quando é preciso encontrar uma fórmula que 
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É 
que o amor nem sempre é uma palavra de uso, 
aquela que permite a passagem à comunicação ; 
mais exata de dois seres, a não ser que nos fale, 
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós 
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio 
ser, como se uma troca de almas fosse possível 
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e 
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas 
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde, 
isto é, a porta tinha-se fechado até outro 
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então 
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem 
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar 
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos 
para dizer um ao outro: a confissão mais exata, que 
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por 
trás disso, a certeza de que o mundo há de ser outro no dia 
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores 
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos 
encontrar, que há de ser um dia azul, de verão, em que 
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí 
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas, 
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo 
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros. 


 Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

"Anarquismo " - Texto de Fernando Pessoa


Fernando Pessoa, pintura de Júlio Pomar, 2007.
 

Anarquismo


A Noite e o Caos são parte de mim. Dato do silêncio das estrelas. Sou o efeito de uma causa do tempo do Universo [e que o excede, talvez]. Para me encontrar tenho de me procurar nas flores, e nas aves, nos campos e nas cidades, nos atos, nas palavras e pensamentos dos homens, na luz do sol e nos escombros esquecidos de mundos que já pereceram.
Quanto mais cresço, menos sou eu. Quanto mais me encontro, mais me perco. Quanto mais me sinto mais vejo que sou flor e ave e estrela e Universo. Quanto mais me defino, menos limites tenho. Transbordo Tudo. No fundo sou o mesmo que Deus.
Na minha presença hodierna têm parte as idades anteriores à Vida, os tempos mais antigos do que a Terra, os ocos do espaço antes que o mundo fosse.
Na noite onde nasceram as estrelas comecei a constelar-me de ser.
Não há um único átomo da mais longínqua estrela que não colaborasse no meu ser.
Porque Afonso Henriques existiu, eu sou. Porque Nun'Álvares combateu, existo. Seria outro - não serei, portanto - se Vasco da Gama não tivesse achado o Caminho da Índia nem Pombal tivesse governado (...) anos.
Shakespeare é parte de mim. Para mim trabalhou Cromwell quando arquitetou a Inglaterra. Ao ganhar com Roma, Henrique Oitavo fez-me ser hoje o que eu sou.
Para mim pensou Aristóteles e cantou Homero. Neste sentido místico e profundo deveras [...], Cristo morreu por mim. Um místico índio que eu não sei se existiu, há 2000 anos colaborou no meu ser atual. Pregou moral Confúcio à minha presença de hoje. O primeiro homem que achou o fogo, o que inventou a roda, o primeiro que ideou a seta - se hoje eu sou eu é porque eles existiram.
s.d.

Fernando Pessoa, Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa
Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990. - 325.
 

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

"Tal a Vida" - Poema de Casimiro de Brito




Tal a Vida


Em declive trepamos pela nuvem 
dos dias — em declive circundamos 
obscuros cristais 
transportados no sangue— e somos e 
levantamos 
as cores primitivas da fonte a luz 
que resvala corpo a corpo 
a semente sazonada de quem roubou 
o fogo — em declive canto 
a ternura diluída a luz reflectida 
neste muro onde vejo 
a secreção da fala onde ouço 
um caminho de metáforas: tal 
a vida — 


in "Negação da Morte" 

domingo, 15 de novembro de 2015

"Cenário de Natal sem o Natal" - Poema de António Manuel Couto Viana


Paolo Veronese, The Holy Family with the Infant St. John the Baptist



Cenário de Natal sem o Natal


Nenhuma estrela luz, com mais brilho no céu. 
Não oiço rumor d’asa ou de vagido 
É meia-noite já. E ainda não nasceu. 
O que terá acontecido? 

Eu, para aqui ajoelhado, 
A memória da infância a pedir-me alegria, 
Todo o presépio armado 
... E a mangedoira vazia! 

O silêncio apavora: 
Nem uma loa, nem o som de um sino. 
Porquê tanta demora? 
Não mais irá nascer o meu menino? 

Nenhum sinal de sobrenatural 
No cenário onde a fé não sublima nem arde. 
Por isso, o meu Natal 
Vai chegar tarde. 

(Para sempre tarde?) 



in 'Mínimos'

"Ode marítima" - Poema de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa


Fernando Lemos Gomes, Paquete Funchal, 1961



Ode marítima
 
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue -
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,
Real, visível como cais, cais realmente,
O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado
Insensivelmente evocado,
Nós os homens construímos
Os nossos cais de pedra atual sobre água verdadeira,
Que depois de construídos se anunciam de repente
Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedra-Almas,
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem que nada se altere,
Tudo se revela diverso.
Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que águas? E porque penso eu isto?
Grandes Cais como os outros cais, mas o Único.
Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
E chegadas de comboios de mercadorias,
E sob a nuvem negra e ocasional e leve
Do fundo das chaminés das fábricas próximas
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha,
Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse sobre água sombria.
Ah, que essencialidade de mistério e sentido parados
Em divino êxtase revelador
Às horas cor de silêncios e angústias
Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!
Cais negramente refletido nas águas paradas,
Bulício a bordo dos navios,
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,
Que quando o navio volta ao porto
Há sempre qualquer alteração a bordo!
Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!
Alma eterna dos navegadores e das navegações!
Cascos refletidos devagar nas águas,
Quando o navio larga do porto!
Flutuar como alma da vida, partir como voz,
Viver o momento tremulamente sobre águas eternas.
Acordar para dias mais diretos que os dias da Europa,
Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar,
Virar cabos longínquos para súbitas vastas paisagens
Por inumeráveis encostas atónitas...
Ah, as praias longínquas, os cais vistos de longe,
E depois as praias próximas, os cais vistos de perto.
O mistério de cada ida e de cada chegada,
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
Deste impossível universo
A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
O soluço absurdo que as nossas almas derramaram
Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,
Sobre as ilhas longínquas das costas deixadas passar,
Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente,
Para o navio que se aproxima.
Ah, a frescura das manhãs em que se chega,
E a palidez das manhãs em que se parte,
Quando as nossas entranhas se arrepanham
E uma vaga sensação parecida com um medo
- O medo ancestral de se afastar e partir,
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo -
Encolhe-nos a pele e agonia-nos,
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fosse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
Uma saudade a qualquer coisa,
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento,
E só fica um grande vácuo dentro de nós,
Uma oca saciedade de minutos marítimos,
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor
Se soubesse como sê-lo...
A manhã de Verão está, ainda assim, um pouco fresca.
Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido.
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida,
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.
Na minha imaginação ele está já perto e é visível
Em toda a extensão das linhas das suas vigias.
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele,
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo.
Os navios que entram a barra,
Os navios que saem dos portos,
Os navios que passam ao longe
(Suponho-me vendo-os duma praia deserta) -
Todos estes navios abstratos quase na sua ida,
Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa
E não apenas navios, navios indo e vindo.
E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar neles,
Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,
Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das despensas,
Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto,
Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas,
Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo -
Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma coisa,
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.
Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu cismo indeterminadamente as viagens.
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico
Em que não sei por que sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sobre os nervos o fato de que aquele é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós!
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
O indico, o mais misterioso dos oceanos todos!
O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar para bater
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos,
Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!
E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, coletores, válvulas;
Caí por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
Sede vós o tesouro da minha avareza febril,
Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação,
Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,
Fornecei-me metáforas imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha pro ar,
Minha imaginação uma ancora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!
Soa no acaso do rio um apito, só um.
Treme já todo o chão do meu psiquismo.
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.
Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro
De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido!
Ah, a glória de se saber que um homem que andava connosco
Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico!
Nós que andamos com ele vamos falar nisso a todos,
Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível
Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto
Que apenas o ter-se perdido o barco onde ele ia
E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado água pros pulmões!
Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!
Vão rareando - ai de mim! - os navios de vela nos mares!
E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Atual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.
Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto.
Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.
Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horizonte
São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,
Da época lenta e veleira das navegações perigosas,
Da época de madeira e lona das viagens que duravam meses.
Toma-me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas,
Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera,
O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos,
E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das águas,
Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh'alma
E a aceleração do volante sacode-me nitidamente.
Chamam por mim as águas,
Chamam por mim os mares,
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.
Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu
Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês,
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das águas,
A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar,
Dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias perigosas.
Esse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue,
Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz,
Esse grito tremendo que parece soar
De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu
E parece narrar todas as sinistras coisas
Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite...
(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas,
E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da boca,
Fazendo porta-voz das grandes mãos curtidas e escuras:
Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyy...
Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-oò -yyy...)
Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer coisa.
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
Sinto corarem-me as faces.
Meus olhos conscientes dilatam-se.
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança,
E com um ruído cego de arruaça acentua-se
O giro vivo do volante.
Ó clamoroso chamamento
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!...
Apelo lançado ao meu sangue
Dum amor passado, não sei onde, que volve
E ainda tem força para me atrair e puxar,
Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
Da gente real com que vivo!
Ah seja como for, seja por onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!
Todo o meu sangue raiva por asas!
Todo o meu corpo atira-se pra frente!
Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!
Atropelo-me, rujo, precipito-me
Estoiram em espuma as minhas ânsias
E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochedos!
Pensando nisto - ó raiva! pensando nisto - ó fúria!
Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,
Subitamente, tremulamente extraorbitadamente,
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo da minha imaginação.
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.
Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!
Homens que dormem co'a Morte por travesseiro!
Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso!
Eh manipuladores dos guindastes de carga!
Eh amainadores de velas, fagueiros, criados de bordo!
Homens que metem a carga nos porões!
Homens que enrolam cabos no convés!
Homens que limpam os metais das escotilhas!
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Gente de boné de pala! Gente de camisola de malha!
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,
Limpa de olhos de tanta imensidade diante deles,
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que vistes a Patagónia!
Homens que passasses pela Austrália!
Que enchesses o vosso olhar de costas que nunca verei!
Que fostes a terra em terras onde nunca descerei!
Que comprastes artigos toscos em colónias à proa de sertões!
E fizestes tudo isso como se não fosse nada,
Como se isso fosse natural,
Como se a vida fosse isso,
Como nem sequer cumprindo um destino!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens do mar atual! homens do mar passado!
Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto!
Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!
Fenícios! Cartagineses! Portugueses atirados de Sagres
Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossível!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendesses escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas
Que trouxesses ouro, miçanga, madeiras cheirosas, setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueasses tranquilas povoações africanas
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa
Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh eh-eh!
A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,
A vós todos misturados, entrecruzados.
A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
Eh-eh-eh-eh eh! Eh eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh eh-eh-eh eh!
Eh lahô-lahô laHO-lahá-á-á-à-à!
Quero ir convosco, quero ir convosco,
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda a parte pr'onde fostes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente,
Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossa
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas
Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos!
Fugir convosco à civilização!
Perder convosco a noção da moral!
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!
Beber convosco em mares do Sul
Novas selvajarias, novas balbúrdias da alma,
Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!
Ir convosco, despir de mim - ah! põe-te daqui pra fora! -
O meu traje de civilizado, a minha brandura de ações,
Meu medo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada, estática, regrada e revista!
No mar, no mar, no mar, no mar,
Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas,
A minha vida!
Salgar de espuma arremessada pelos ventos
Meu paladar das grandes viagens.
Fustigar de água chicoteante as carnes da minha aventura,
Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,
Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de sóis,
Meu ser ciclónico e atlântico,
Meus nervos postos como enxárcias,
Lira nas mãos dos ventos!
Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares,
Sobre conveses, ao som de vagas,
Que me rasgueis, mateis, fira-os!
O que quero é levar pra Morte
Uma alma a transbordar de Mar,
Ébria a cair das coisas marítimas,
Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos,
Tanto das costas longínquas como do ruído dos ventos,
Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios
Como dos tranquilos comércios,
Tanto dos mastros como das vagas,
Levar pra Morte com dor, voluptuosamente,
Um copo cheio de sanguessugas, a sugar, a sugar,
De estranhas verdes absurdas sanguessugas marítimas!
Façam enxárcias das minhas veias!
Amarras dos meus músculos!
Atranquem-me a pele, preguem-na às quilhas.
E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra aos velhos navios!
Calquem aos pés nos conveses meus olhos arrancados!
Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!
Fustiguem-me atado aos mastros, fustiguem-me!
A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes
Derramem meu sangue sobre as águas arremessadas
Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado,
Nas vascas bravas das tormentas!
Ter a audácia ao vento dos panos das velas!
Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!
A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos,
Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!
Os marinheiros que se sublevaram
Enforcaram o capitão numa verga.
Desembarcaram um outro numa ilha deserta.
Morooned!
O sol dos trópicos pôs a febre da pirataria antiga
Nas minhas veias intensivas.
Os ventos da Patagónia tatuaram a minha imaginação
De imagens trágicas e obscenas.
Fogo, fogo, fogo, dentro de mim!
Sangue! sangue! sangue! sangue!
Explode todo o meu cérebro!
Parte-se-me o mundo em vermelho!
Estoiram-me com o som de amarras as veias!
E estala em mim, feroz, voraz,
A canção do Grande Pirata,
A morte berrada do Grande Pirata a cantar
Até meter pavor plas espinhas dos seus homens abaixo.
Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:
Fifteen men on the Dead Man's Chest.
Yo-ho ho and a bottle of rum I
E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar:
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw!
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw!
Fetch a-a-aft th ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby,
Eia,, que vida essa! essa era a vida, eia!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laFIO-Iahá-á-á-à-à!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares
Conveses cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sobre amuradas!
Cabeças de crianças, aqui, acolá!
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Embrulho-me em tudo isto como uma capa no frio!
Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro!
Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um toiro louco sobre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sobre isto!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
De repente estala-me sobre os ouvidos
Como um clarim a meu lado,
O velho grito, mas agora irado, metálico,
Chamando a presa que se avista,
A escuna que vai ser tomada:
Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy..
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy...
O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!
Rujo na fúria da abordagem!
Pirata-mór! César-Pirata!
Pilho, mato, esfacelo, rasgo!
Só sinto o mar, a presa, o saque!
Só sinto em mim bater, baterem-me
As veias das minhas fontes!
Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Ah piratas, piratas, piratas!
Piratas, amai-me e odiai-me!
Misturai-me convosco, piratas!
Vossa fúria, vossa crueldade corno falam ao sangue
Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive!
Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos,
Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas
Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos conveses,
Trincasse velas, remos, cordame e poleame,
Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes!
E há uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas,
Há uma orquestrarão no meu sangue de balbúrdias de crimes,
De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares,
Furlbundamente, como um vendaval de calor pelo espírito,
Nuvem de poeira quente anuviando a minha lucidez
E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!
Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora,
Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas,
E o terror dos apresados foge pra loucura - essa hora,
No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, nuvens,
Brisa, latitude, longitude, vozearia,
Queria eu que fosse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo,
Que fosse meu corpo e meu sangue, compusesse meu ser em vermelho,
Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!
Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!
Ser quanto foi no lugar dos saques!
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,
E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo!
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles
E sentir tudo isso -- todas estas coisas duma só vez - pela espinha!
Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
Amantes casuais da obliqüidade das minhas sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!
Porque ela teria convosco, mas só em espírito, raivado
Sobre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!
Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica
Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos
Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos estranguladores!
E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis,
Iria beber nos rugidos do vosso amor todo o vasto,
Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias,
E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo!
A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo!
Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis,
Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,
A minha feminilidade que vos acompanha é ser as vossas almas!
Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!
Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações
Quando tingíeis de sangue os mares altos,
Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões
Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das crianças
E leváveis as mães às amuradas para verem o que lhes acontecia!
Estar convosco na carnagem, na pilhagem!
Estar orquestrado convosco na sinfonia dos saques!
Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós!
Não era só ser-vos a fêmea, ser-vos as fêmeas, ser-vos as vítimas,
Ser-vos as vítimas - homens, mulheres, crianças, navios -,
Não era só ser a hora e os barcos e as ondas,
Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse,
Não era só ser concretamente vosso ato abstrato de orgia,
Não era só isto que eu queria ser - era mais que isto o Deus-isto!
Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário,
Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum panteísmo de sangue,
Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa,
Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade
Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias!
Ah, torturai-me para me curardes!
Minha carne - fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam
Antes de caírem sobre as cabeças e os ombros!
Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam!
Minha imaginação o corpo das mulheres que violais!
Minha inteligência o convés onde estais de pé matando!
Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo,
O grande organismo de que cada ato de pirataria que se cometeu
Fosse uma célula consciente - e todo eu turbilhonasse
Como uma imensa podridão ondeando, e fosse aquilo tudo!
Com tal velocidade desmedida, pavorosa,
A máquina de febre das minhas visões transbordantes
Gira agora que a minha consciência, volante,
E apenas um nevoento círculo assobiando no ar.
Fifteen men on tbe Dead Man's Chest.
Yo-ho-ho and a bottle of rum!
Eh-lahô-lahô-laHO - lahá-á-ááá - ààà...
Ah! a selvajaria desta selvajaria! Merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr'àqui engenheiro, pratico à força, sensível a tudo,
Pr'àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória,
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
Arre! por não poder agir de acordo com o meu delírio!
Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilização!
Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas!
Moços de esquina - todos nós o somos - do humanitarismo moderno!
Estupores de tísicos, de neurastênicos, de linfáticos,
Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
Ah, os piratas! os piratas!.
A ânsia do ilegal unido ao feroz,
A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis,
Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzimos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!
Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!
Humilhai-me e batei-me!
Fazei de mim o vosso escravo e a vossa coisa!
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
Ó meus senhores! ó meus senhores!
Tomar sempre gloriosamente a parte submissa
Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas!
Desabai sobre mim, como grandes muros pesados,
Ó bárbaros do antigo mar!
Rasgai-me e feri-me!
De leste a oeste do meu corpo
Riscai de sangue a minha carne!
Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva
O meu alegre terror carnal de vos pertencer.
A minha ânsia masoquista em me dar à vossa fúria,
Em ser objeto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade,
Dominadores, senhores, imperadores, corcéis!
Ah, torturai-me,
Rasgai-me e abri-me!
Desfeito em pedaços conscientes
Entornai-me sobre os conveses,
Espalhal-me nos mares, deixai-me
Nas praias ávidas das ilhas!
Cevai sobre mim todo o meu misticismo de vós!
Cinzelai a sangue a minh'alma
Cortai, riscai!
Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!
Esfoladores amados da minha cama submissão!
Submetei-me como quem mata um cão a pontapés!
Fazei de mim o poço para o vosso desprezo de domínio!

Fazei de mim as vossas vítimas todas!
Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer
Por todas as vossas vítimas às vossas mãos,
Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados
Nos assaltos bruscos de amuradas!
Fazei de mim qualquer, cousa como se eu fosse
Arrastado - ó prazer, o beijada dor! -
Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós...
Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no MA-A-A-AR!
Eh-eh-eh-eh-eh! Eh--.h-eh-eh-eh-eh-eh! EH-EH-EHEH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR!
Yeh eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eheh-eh-eh-eh-eh'
Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos,
Marés, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar!
Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Tudo canta a gritar!
FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN'S CHEST.
YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!
Eh-eh eh-eh -eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eheh-eh! Eh eheh eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laHO-O-O-ôô-lahá-á à - ààà!
AHÓ-Ó-Ó Ó Ó Ó-Ó Ó Ó Ó Ó - yyyj...
SCHOONER AHÓ-ó-ó-ó-ó-ó-ó-o-o-o - yyyy! ...
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw!
DA.RBY M'GRAW-AW AW-AW-AW-AW-AW!
FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh!
EH-EH EH-EH-EH EH-EH EH-EH EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EFI-EH-EH-EH-EHI
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.
Senti demais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim.
Decresce sensivelmente a velocidade do volante.
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.
Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar noturno.
E logo que sinto que há um mar noturno dentro de mim,
Sabe dos longes dele, nasce do seu silêncio,
Outra vez, outra vez o vasto grito antiquíssimo.
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,
Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
Úmido e sombrio marulho humano noturno,
Voz de sereia longínqua chorando, chamando,
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,
E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos...
Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yy...
Schooner a Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yy...
Ah, o orvalho sobre a minha excitação!
O frescor noturno no meu oceano interior!
Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar
Cheia de enorme mistério humaníssimo das ondas noturnas
A lua sobe no horizonte
E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim.
O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção
Que fosse chamar ao meu passado
Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.
Era na velha casa sossegada ao pé do rio
(As janelas do meu quarto, e as da casa-de-jantar também,
Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio próximo,
Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo
Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava às mesmas janelas.
Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar alto... )
Unia inexplicável ternura,
Um remorso comovido e lacrimoso,
Por todas aquelas vítimas - principalmente as crianças -
Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo,
Emoção comovida, porque elas foram minhas vítimas;
Terna e suave, porque não o foram realmente;
Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada,
Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida.
Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas coisas?
Que longe estou do que fui há uns momentos!
Histeria das sensações - ora estas, ora as opostas!
Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe
As cousas de acordo com esta emoção - o marulho das águas.
O marulho leve das águas do rio de encontro ao cais....
A vela passando perto do outro lado do rio,
Os montes longínquos, dum azul japonês,
As casas de Almada,
E o que há de suavidade e de infância na hora matutina!...
Uma gaivota que passa,
E a minha ternura é maior.
Mas todo este tempo não estive a reparar para nada.
Tudo isto foi uma impressão só da pele, com uma carícia
Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longínquo,
Da minha casa ao pé do rio,
Da minha infância ao pé do rio,
Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite,
E a paz do luar esparso nas águas! ...
Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu...,
Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me
(Se bem que eu fosse já crescido demais para isso)...
Lembro-me e as lágrimas caem sobre o meu coração e lavam-no da vida,
E ergue-me uma leve brisa marítima dentro de mim.
As vezes ela cantava a "Nau Catrineta":
Lá vai a Nau Catrineta
Por sobre as águas do mar ...
E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,
Era a "Bela Infanta"... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim
E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto!
Como fui ingrato para ela - e afinal que fiz eu da vida?
Era a "Bela Infanta"... Eu fechava os olhos, e ela cantava:
Estando a Bela Infanta
No seu Jardim assentada...
Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar
E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.
Estando a Bela Infanta
No seu jardim assentada,
Seu pente de ouro na mão,
Seus cabelos penteava
Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!
Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,
E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!
Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha.
Pensar isto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter.
Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.
Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!
Vertigem tênue de confusas coisas na alma!
Fúrias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,
Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,
Lágrimas, lágrimas inúteis,
Leves brisas de contradição roçando pela face a alma...
Evoco, por um esforço voluntário, para sair desta emoção,
Evoco, com um esforço desesperado, seco, nulo,
A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:
Fifteen men on the Dead Man's Chest.
Yo-ho-ho and a bottle of rum!
Mas a canção é uma linha reta mal traçada dentro de mim...
Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma,
Outra vez, mas através duma imaginação quase literária,
A fúria da pirataria, da chacina, o apetite, quase do paladar, do saque,
Da chacina inútil de mulheres e de crianças,
Da tortura fútil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres
E a sensualidade de escangalhar e partir as coisas mais queridas dos outros,
Mas sonho isto tudo com um medo de qualquer coisa a respirar-me sobre a nuca.
Lembro-me de que seria interessante
Enforcar os filhos à vista das mães
(Mas sinto-me sem querer as mães deles),
Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos
Levando os pais em barcos até lá para verem
(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho
e está dormindo tranqüilo em casa).
Aguilhôo uma ânsia fria dos crimes marítimos,
Duma inquisição sem a desculpa da Fé,
Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria,
Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal,
Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo,
Como quem faz paciências a uma mesa de jantar de província com a toalha
Atirada pra o outro lado da mesa depois de jantar,
Só pelo suave gosto de cometer crimes abomináveis e não os achar grande coisa,
De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dor mas nunca deixar chegar lá...
Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me.
Um calafrio arrepia-me.
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo,
De repente - oh pavor por todas as minhas veias! -,
Oh frio repentino da porta para o Mistério
que se abriu dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar!
Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente
A velha voz do marinheiro inglês Jim Barris com quem eu falava,
Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim,
das pequenas coisas de regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã,
Mas estupendamente vinda de além da aparência das coisas,
A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Boca,
Vinda de sobre e de dentro da solidão noturna dos mares,
Chama por mim, chama por mim, chama por mim ...
Vem surdamente, como se fosse suprimida e se ouvisse,
Longinquamente, como se estivesse soando noutro lugar e aqui não se pudesse ouvir,
Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um hálito silencioso.
De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,
O grito eterno e noturno, o sopro fundo e confuso:
Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy......
Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy......
Schooner ah-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ô - - yy.....
Tremo com frio da alma repassando-me o corpo
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez!
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquetes que chegam cedo.
Já não me importa o paquete que entrava. Ainda está longe.
Só o que está perto agora me lava a alma.
A minha imaginação higiênica, forte, pratica,
Preocupa-se agora apenas com as coisas modernas e úteis,
Com os navios de carga, com os paquetes e os passageiros,
Com as fortes coisas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras.
Abranda o seu giro dentro de mim o volante.
Maravilhosa vida marítima moderna,
Toda limpeza, máquinas e saúde!
Tudo tão bem arranjado, tão espontaneamente ajustado,
Todas as peças das máquinas, todos os navios pelos mares,
Todos os elementos da atividade comercial de exportação e importação
Tão maravilhosamente combinando-se
Que corre tudo como se fosse por leis naturais,
Nenhuma coisa esbarrando com outra!
Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas
Com a sua poesia também, e todo o novo gênero de vida
Comercial, mundana, intelectual, sentimental,
Que a era das máquinas veio trazer para as almas.
As viagens agora são tão belas como eram dantes
E um navio será sempre belo, só porque é um navio.
Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve
Em parte nenhuma, graças a Deus!
Os portos cheios de vapores de muitas espécies!
Pequenos, grandes, de várias cores, com várias disposições de vigias,
De tão deliciosamente tantas companhias de navegação!
Vapores nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos!
Tão prazenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar,
No velho mar sempre o homérico, ó Ulisses!
O olhar humanitário dos faróis na distância da noite,
Ou o súbito farol próximo na noite muito escura
("Que perto da terra que estávamos passando!"
E o som da água canta-nos ao ouvido)! ...
Tudo isto hoje é como sempre foi, mas há o comércio;
E o destino comercial dos grandes vapores
Envaidece-me da minha época!
A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros
Dá-me o orgulho moderno de viver numa época onde é tão fácil
Misturarem-se as raças, transporem-se os espaços, ver com facilidade todas as coisas,
E gozar a vida realizando um grande número de sonhos.
Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em redes de arame amarelo!
Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como , gentlemen,
São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões,
Como gente perfeitamente consciente de como é higiênico respirar o ar do mar.
O dia é perfeitamente já de horas de trabalho.
Começa tudo a movimentar-se, a regularizar-se.
Com um grande prazer natural e direto percorro a alma
Todas as operações comerciais necessárias a um embarque de mercadorias.
A minha época é o carimbo que levam todas as faturas
E sinto que todas as cartas de todos os escritórios
Deviam ser endereçadas a mim.
Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade,
E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna!
Rigor comercial do princípio e do fim das cartas:
Dear Sirs - Messieurs - Amigos e Srs.,
Yours faithfully - ...nos salutations empressées...
Tudo isto não é só humano e limpo, mas também belo,
E tem ao fim um destino marítimo, um vapor onde embarquem
As mercadorias de que as cartas e as faturas tratam.
Complexidade da vida! As faturas são feitas por gente
Que tem amores, ódios, paixões políticas, às vezes crimes -
E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso!
Há quem olhe para uma fatura e não sinta isto.
Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias.
Eu é até às lágrimas que o sinto humanissimamente.
Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos escritórios!
Ora, ela entra por todos os poros... Neste ar marítimo respiro-a,
Por tudo isto vem a propósito dos vapores, da navegação moderna,
Porque as faturas e as cartas comerciais são o princípio da história
E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim.
Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras,
As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros
Duma maneira especial, como se um mistério marítimo
Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento
Patriotas transitórios duma mesma pátria incerta,
Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das água,,
Grandes hotéis do Infinito, oh transatlânticos meus!
Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto
E conterem todas as espécies de trajes, de caras, de raças!
As viagens, os viajantes - tantas espécies deles!
Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente!
Tanto destino diverso que se pode dar à vida,
À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!
Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas
E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.
A fraternidade afinal não é uma idéia revolucionária.
É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo,
E passa a achar graça ao que tem que tolerar,
E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou!
Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado
Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses.
Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes!
A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.
Pobre gente! pobre gente toda a gente!
Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio
Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês,
Muito sujo, como se fosse um navio francês,
Com um ar simpático de proletário dos mares,
E sem dúvida anunciado ontem na última página das gazetas.
Enternece-me o pobre vapor, tão humilde vai ele e tão natural.
Parece ter um certo escrúpulo não sei em quê, ser pessoa honesta,
Curnpridora duma qualquer espécie de deveres.
Lá vai ele deixando o lugar defronte do cais onde estou.
Lá vai ele tranqüilamente, passando por onde as naus estiveram
Outrora, outrora...
Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importância.
Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida!
Boa viagem! Boa viagem!
Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favor
De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,
E restituir-me à vida para olhar para ti e te ver passar.
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto...
Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino
Na tua saída do porto de Lisboa, hoje!
Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso...
Por isso quê? Sei lá o que é!... Vai... Passa...
Com um ligeiro estremecimento,
(T-t--t --- r ---- t----- r ... )
O volante dentro de mim pára.
Passa, lento vapor, passa e não fiques...
Passa de mim, passa da minha vista,
Vai-te de dentro do meu coração,
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe ver-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,
Luzem os telhados dos edifícios do cais,
Todo o lado de cá da cidade brilha...
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte....
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira,
Traça um semicírculo de não sei que emoção
No silêncio comovido da minh'alma...

s.d.
 
Heterónimo de Fernando Pessoa
Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 162.
1ª publ. in Orpheu, nº2. Lisboa: Abr.-Jun. 1915.