Fernando Pessoa, pintura de Júlio Pomar, 2007.
Anarquismo
A Noite e o Caos são parte de mim. Dato do silêncio das estrelas. Sou o efeito de uma causa do tempo do Universo [e que o excede, talvez]. Para me encontrar tenho de me procurar nas flores, e nas aves, nos campos e nas cidades, nos atos, nas palavras e pensamentos dos homens, na luz do sol e nos escombros esquecidos de mundos que já pereceram.
Quanto mais cresço, menos sou eu. Quanto mais me encontro, mais me perco. Quanto mais me sinto mais vejo que sou flor e ave e estrela e Universo. Quanto mais me defino, menos limites tenho. Transbordo Tudo. No fundo sou o mesmo que Deus.
Na minha presença hodierna têm parte as idades anteriores à Vida, os tempos mais antigos do que a Terra, os ocos do espaço antes que o mundo fosse.
Na noite onde nasceram as estrelas comecei a constelar-me de ser.
Não há um único átomo da mais longínqua estrela que não colaborasse no meu ser.
Porque Afonso Henriques existiu, eu sou. Porque Nun'Álvares combateu, existo. Seria outro - não serei, portanto - se Vasco da Gama não tivesse achado o Caminho da Índia nem Pombal tivesse governado (...) anos.
Shakespeare é parte de mim. Para mim trabalhou Cromwell quando arquitetou a Inglaterra. Ao ganhar com Roma, Henrique Oitavo fez-me ser hoje o que eu sou.
Para mim pensou Aristóteles e cantou Homero. Neste sentido místico e profundo deveras [...], Cristo morreu por mim. Um místico índio que eu não sei se existiu, há 2000 anos colaborou no meu ser atual. Pregou moral Confúcio à minha presença de hoje. O primeiro homem que achou o fogo, o que inventou a roda, o primeiro que ideou a seta - se hoje eu sou eu é porque eles existiram.
s.d.
Fernando Pessoa, Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa.
Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990. - 325.
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