segunda-feira, 31 de outubro de 2016

"Poema do ser inóspito" - António Gedeão


Poema do ser inóspito 


No cubículo estreito onde a criança
dorme no homem como um ser inóspito,
duplas são as paredes e, na boca,
uva de moscatel, açaime de aço.
Dorme, criança, dorme.
Não deixes ficar mal os que acreditam
no mito da inocência.
Dorme, e espera que os homens se aniquilem
enquanto dormes.
Reduz-te a imaginar como serão as flores,
os insetos, as pedras, as estrelas,
e tudo quanto é belo e se reflete
nos olhos das crianças.
Imagina um luar que cresce e aquece
e faz da tua carne flor de loiça,
orquídea branca que o calor não cresta.
Imagina, imagina.
Mas, sobretudo, dorme.


Rómulo de Carvalho (pseudónimo António Gedeão)

domingo, 30 de outubro de 2016

"Ilusão Perdida" - Poema de Pablo Neruda





Ilusão Perdida


Florida ilusão que em mim deixaste 
a lentidão duma inquietude 
vibrando em meu sentir tu juntaste 
todos os sonhos da minha juventude. 

Depois dum amargor tu afastaste-te, 
e a princípio não percebi. Tu partiras 
tal como chegaste uma tarde 
para alentar meu coração mergulhado 

na profundidade dum desencanto. 
Depois perfumaste-te com meu pranto, 
fiz-te doçura do meu coração, 

agora tens aridez de nó, 
um novo desencanto, árvore nua 
que amanhã se tornará germinação. 


Pablo Neruda, in 'Cadernos de Temuco' 
Tradução de Albano Martins 


sábado, 29 de outubro de 2016

"Eis-me" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Viktor Bolesko, Summer on old Canal, 2012, canvas, oil, 60x80 cm



Eis-me


Tendo-me despido de todos os meus mantos 
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses 
Para ficar sozinha ante o silêncio 
Ante o silêncio e o esplendor da tua face 

Mas tu és de todos os ausentes o ausente 
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca 
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras 
E o teu encontro 
São planícies e planícies de silêncio 

Escura é a noite 
Escura e transparente 
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco 
E eu não habito os jardins do teu silêncio 
Porque tu és de todos os ausentes o ausente 


in 'Livro Sexto'


sexta-feira, 28 de outubro de 2016

"Horas" - Poema de Violeta Figueiredo


Victor Gilbert (Peintre français, 1847 - 1935), Le Magasin de joujoux1897,
(Dans les Jardins des Champs Elysées), Musée Goupil.
 


Horas


Sou pequena,
finjo que ainda não acordei.
"- Oito horas", chama a minha mãe.
O quê? Não quero horas todas juntas,
às oito, às doze, às dez
de cada vez!!
"- São horas", repete ela.
Ah, assim está bem.


Violeta Figueiredo

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

"Derrocada" - Poema de Yolanda Morazzo


 Nuno Viegas, Le flâneur, técnica mista sobre tela, 220x180cm de 2009



Derrocada 


A asa de um morcego transparente
e no canto um olho descaído
de pestanas longas espreitando
o ácido viscoso da loucura
escorrendo pelos telhados do mundo

Viajante incansável do pasmo
no silêncio das órbitas vagabundas
dos mares-mortos delírio-espasmo
do cansaço mole das brisas vazias
que do nada se afirmam nas florestas
do ódio de gigantes e anões liliputianos

Blocos monolíticos tristes quedos
imagens-desespero cancerosos
miasmas-visco cobras moribundas
agonizando em convulsões de magma
lanças setas envenenadas dirigidas
ao coração das virgens e crianças

Sombra parda pálida acutilante
teu vulto de insónia transparente
bóia nas trevas flutuantes
da noite dos espiões pelas estradas
das feras que matam as ovelhas
e apunhalam pastores no caminho

Sombra feroz invernal medonha
destroços e cadáveres pútridos
sugando o seio das madonas
e acalentando monstros nas cavernas
pelas horas taciturnas do medo dos teus passos.


(Luanda, 1977)

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

"Liberta em Pedra" - Poema de Natércia Freire


Victor Brauner (1903-1966), La fiancée de la nuit, 1937



Liberta em Pedra


Livre, liberta em pedra. 
Até onde couber 
tudo o que é dor maior, 
por dentro da harmonia jacente, 
aguda, fria, atroz, 
de cada dia. 

Não importam feições, 
curvas de seios e ancas, 
pés eretos à luz 
e brancas, brancas, brancas, 
as mãos. 

Importa a liberdade 
de não ceder à vida, 
um segundo sequer. 

Ser de pedra por fora 
e só por dentro ser. 
- Falavas? Não ouvi. 
- Beijavas? Não senti. 
Morreram? Ah! Morri, morri, morri! 

Livre, liberta em pedra, 
voltada para a luz 
e para o mar azul 
e para o mar revolto... 
E fugir pela noite, 
sem corpo, nem dinheiro, 
para ler os meus santos 
e os meus aventureiros, 
(para ser dos meus santos, 
dos meus aventureiros), 
filósofos e nautas, 
de tantos nevoeiros. 

Entre o peso das salas, 
da música concreta, 
de espantalhos de deuses, 
que fará o Poeta? 


Natércia Freire, 
in 'Liberta em Pedra'


Natércia Freire


Natércia Freire, escritora portuguesa, nasceu em 1920, em Benavente, e faleceu a 19 de dezembro de 2004. Estudou música e tirou o curso do Magistério Primário. Dirigiu o suplemento literário "Artes e Letras" do Diário de Notícias e colaborou em publicações diversas e na Emissora Nacional, fazendo palestras mensais. Iniciou-se como decente na escola primária em 1944. Foi convidada para a Comissão de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian, de que se tornou membro, de 1971 a 1974.
Revelou-se na poesia em 1939 com a coletânea Meu Caminho de Luz. Foram-lhe atribuídos os prémios literários Antero de Quental (por Rio Infindável em 1947 e Anel de Sete Pedras em 1952), Ricardo Malheiros (1955) e Nacional de Poesia (1972), este último pela obra Os Intrusos. Da sua vasta obra destacam-se ainda Horizonte Fechado (1942) e os contos de A Alma da Velha Casa (1945). (Daqui)


terça-feira, 25 de outubro de 2016

"Sepultura Romântica" - Poema de Antero de Quental


Frederic Leighton, A reconciliação dos Montecchios e Capuletos diante da morte de Romeu e Julieta, 1855.



Sepultura Romântica


Ali, onde o mar quebra, n'um cachão 
Rugidor e monótono, e os ventos 
Erguem pelo areal os seus lamentos, 
Ali se há de enterrar meu coração. 

Queimem-no os sóis da adusta solidão 
Na fornalha do estio, em dias lentos; 
Depois, no inverno, os sopros violentos 
Lhe revolvam em torno o árido chão... 

Até que se desfaça e, já tornado 
Em impalpavel pó, seja levado 
Nos turbilhões que o vento levantar... 

Com suas lutas, seu cansado anseio, 
Seu louco amor, dissolva-se no seio 
D'esse infecundo, d'esse amargo mar! 


Antero de Quental, in "Sonetos"


segunda-feira, 24 de outubro de 2016

"Balada para um Homem na Multidão" - Poema de Natália Correia



Balada para um Homem na Multidão


Este homem que entre a multidão 
enternece por vezes destacar 
é sempre o mesmo aqui ou no Japão 
a diferença é ele ignorar. 

Muitos mortos foram necessários 
para formar seus dentes um cabelo 
vai movido por pés involuntários 
e endoidece ser eu a percebê-lo. 

Sentam-no à mesa de um café 
num andaime ou sob um pinheiro 
tanto faz desde que se esqueça 
que é homem à espera que cresça 
a árvore que dá dinheiro. 

Alimentam-no do ar proibido 
de um sonho que não é dele 
não tem mais que esse frasco de vidro 
para fechar a estrela do norte. 
E só o seu corpo abolido 
lhe pertence na hora da morte. 


in "O Vinho e a Lira"


Valentín Thibon de Libian, El bodegon


"O tempo não deseja ser feliz. Por isso nós o seguimos."

Antologia Poética, Quetzal Editores, p.187


domingo, 23 de outubro de 2016

"Um Sonho" - Poema de Eugénio de Castro


Viktor Bolesko, In park, City Puschkin 



Um Sonho 


Na messe, que enlourece, estremece a quermesse...
O sol, celestial girassol, esmorece...
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluidas, fluindo a fina flor dos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves
Suaves...

Flor! enquanto na messe estremece a quermesse
E o sol, o celestial girasol, esmorece,
Deixemos estes sons tão serenos e amenos,
Fujamos, Flor! à flor destes floridos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...
Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Como aqui se está bem! Além freme a quermesse...
- Não sentes um gemer dolente que esmorece?
São os amantes delirantes que em amenos
Beijos se beijam, Flor! à flor dos frescos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Esmaiece na messe o rumor da quermesse...
- Não ouves este ai que esmaiece e esmorece?
É um noivo a quem fugiu a Flor de olhos amenos,
E chora a sua morta, absorto, à flor dos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...
Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Penumbra de veludo. Esmorece a quermesse...
Sob o meu braço lasso o meu Lírio esmorece...
Beijo-lhe os boreais belos lábios amenos,
Beijo que freme e foge à flor dos flóreos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Teus lábios de cinábrio, entreabre-os! Da quermesse
O rumor amolece, esmaiece, esmorece...
Dê-me que eu beije os teus morenos e amenos
Peitos! Rolemos, Flor! à flor dos flóreos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...
Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Ah! não resista mais a meus ais! Da quermesse
O atroador clangor, o rumor esmorece...
Rolemos, ó morena! em contactos amenos!
- Vibram três tiros à florida flor dos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Três da manhã. Desperto incerto... E essa quermesse?
E a Flor que sonho? e o sonho? Ah! tudo isso esmorece!
No meu quarto uma luz, luz com lumes amenos,
Chora o vento lá fora, à flor dos flóreos fenos..


Arcachon, 12 de julho de 1889


sábado, 22 de outubro de 2016

"A Minha Religião é o Novo" - Poema de Gonçalo M. Tavares


Franz von Lenbach, Hirtenknabe (1860)


A Minha Religião é o Novo


A minha Religião é o Novo. 
Este dia, por exemplo; o pôr do Sol, 
estas invenções habituais: o Mar. 
Ainda: 
os cisnes a Ralhar com a água. A Rapariga mais bonita que 
ontem. 
Deus como habitante único. 
Todos somos estrangeiros a esta Região, cujo único habitante 
verdadeiro é Deus (este bem podia ser o Rótulo do nosso 
Frasco). 
Dele também se podia dizer, como homenagem: 
Hóspede discreto. 
Ou mais pomposamente: 
O Enorme Hóspede discreto. 
Ou dizer ainda, para demorar Deus mais tempo nos lábios ou 
neste caso no papel, na escrita, dizer ainda, no seu epitáfio que 
nunca chega, que nunca será útil, dizer dele: 
em todo o lado é hóspede, 
e em todo o lado é Discreto. 


in "Investigações. Novalis"


Franz von Lenbach, Italienerknaben (1859)
 

"Quando a alma, ao termo de mil hesitações e desenganos, cravou as raízes para sempre num ideal de amor e de verdade, podem calcá-la e torturá-la, podem-na ferir e ensanguentar, que quanto mais a calcam, mais ela penetra no seio ardente que deseja." 
 
 Guerra Junqueiro

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

"Esmola" - Poema de José Régio


Thomas Benjamin Kennington (1856 – 1916, English), Orphans, 1885



Esmola


Todos os dias, de manhã, passando
Na sua rua, a encontro já erguida,
Sem estender a mão, mas esmolando,
No xalinho sem cor quase sumida.

Tem dez..., quinze..., vinte anos? Ninguém sabe.
Seu corpito parou... ficou assim.
Mas nos seus olhos, que cresceram, cabe
Todo o oceano azul dos céus sem fim.

«— Deus lhe pague!» — diz-me ela, em paga dessa
Envergonhada esmola que lhe dou.
E o seu olhar, que nada há que meça,
Já me pagou! já me pagou...




quinta-feira, 20 de outubro de 2016

"Um Sentido" - Poema de António Osório


Olof Arborelius (Swedish, 1842–1915)Red house reflected in a pond 


Um Sentido


Porque há um sentido 
no lírio, incensar-se; 
e no choupo, erguer-se; 
e na urze arborescente, 
ampliar-se; 
e no cobre, primeira cura, 
que dou à vinha, 
procriar-se. 

E outro, pressago, 
sentido há na memória, 
explodir-se. E outro, imensurável, 
no amor, entregar-se. 
E outro, definitivo, 
na morte, render-se. 


in 'Felicidade da Pintura' 


Olof ArboreliusWagon in the Autumn Landscape


«A felicidade é uma obra-prima: o menor erro falseia-a, a menor hesitação altera-a, a menor falta de delicadeza desfeia-a, a menor palermice embrutece-a.»

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano


Olof ArboreliusWoman Looking out to Sea
 

«Um homem que lê, ou que pensa, ou que calcula, pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores momentos escapa mesmo ao humano.» 

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, p.57


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

"Poema da Eterna Presença" - António Gedeão


Winslow Homer, Moonlight, 1874


Poema da Eterna Presença


Estou, nesta noite cálida, deliciadamente estendido sobre a relva,
de olhos postos no céu, e reparo, com alegria,
que as dimensões do infinito não me perturbam.
(O infinito!
Essa incomensurável distância de meio metro
que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!)

O que me perturba é que o todo possa caber na parte,
que o tridimensional caiba no dimensional, e não o esgote.

O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim,
de mim, pobre de mim, que sou parte do todo.
E em mim continuaria a caber se me cortassem braços e pernas
porque eu não sou braço nem sou perna.

Se eu tivesse a memória das pedras
que logo entram em queda assim que se largam no espaço
sem que nunca nenhuma se tivesse esquecido de cair;
se eu tivesse a memória da luz
que mal começa, na sua origem, logo se propaga,
sem que nenhuma se esquecesse de propagar;
os meus olhos reviveriam os dinossáurios que caminharam sobre a Terra,
os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos oceanos que engoliram
continentes,
a minha pele lembrar-se-ia da temperatura das geleiras que galgaram sobre a
Terra.

Mas não esqueci tudo.
Guardei a memória da treva, do medo espavorido
do homem da caverna
que me fazia gritar quando era menino e me apagavam a luz;
guardei a memória da fome;
da fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez estender os lábios sôfregos para mamar quando cheguei ao mundo;
guardei a memória do amor,
dessa segunda fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez desejar a mulher do próximo e do distante;
guardei a memória do infinito,
daquele tempo sem tempo, origem de todos os tempos,
em que assisti, disperso, fragmentado, pulverizado,
à formação do Universo.

Tudo se passou defronte de partes de mim.
E aqui estou eu feito carne para o demonstrar,
porque os átomos da minha carne não foram fabricados de propósito para mim.
Já cá estavam.
Estão.
E estarão.


in 'Poemas Póstumos'
Rómulo de Carvalho (pseudónimo  António Gedeão)


Winslow HomerSummer Night, 1890


Navegação 


Distância da distância derivada
Aparição do mundo: a terra escorre
Pelos olhos que a vêem revelada.
E atrás um outro longe imenso morre. 


(1991). Obra Poética I (2ª Ed.).
Lisboa: Editorial Caminho. p. 107.


terça-feira, 18 de outubro de 2016

"Confissão" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Valentín Thibon de Libian (1889-1931), En el café (El café de las midinettes), c.1919


Confissão


É certo que me repito, 
é certo que me refuto 
e que, decidido, hesito 
no entra-e-sai de um minuto. 

É certo que irresoluto 
entre o velho e o novo rito 
atiro à cesta o absoluto 
como inútil papelito. 

É tão certo que me aperto 
numa tenaz de mosquito 
como é trinta vezes certo 
que me oculto no meu grito. 

Certo, certo, certo, certo 
que mais sinto que reflito 
as fábulas do deserto 
do raciocínio infinito. 

É tudo certo e prescrito 
em nebuloso estatuto. 
O homem, chamar-lhe mito 
não passa de anacoluto. 


in 'As Impurezas do Branco'


Valentín Thibon de Libian, El ocaso, 1930


"Eu acredito que a poesia tenha sido uma vocação, embora não tenha sido uma vocação desenvolvida conscientemente ou intencionalmente. Minha motivação foi esta: tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo." - Carlos Drummond de Andrade
 
 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

"Já não vivo, só penso" - Poema de Fernanda de Castro


Pablo Picasso, 1917-18, Portrait d'Olga Khokhlova dans un fauteuil (Olga in an Armchair), 
oil on canvas, 130 x 88.8 cm, Musée Picasso, Paris, France



Já não vivo, só penso


Já não vivo, só penso. E o pensamento 
é uma teia confusa, complicada, 
uma renda subtil feita de nada: 
de nuvens, de crepúsculos, de vento. 

Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento, 
e eu cada vez mais vaga, mais alheada. 
Percorro o céu e a terra aqui sentada, 
sem uma voz, um olhar, um movimento. 

Terei morrido já sem o saber? 
Seria bom mas não, não pode ser, 
ainda me sinto presa por mil laços, 

ainda sinto na pele o sol e a lua, 
ouço a chuva cair na minha rua, 
e a vida ainda me aperta nos seus braços. 


 in "E Eu, Saudosa, Saudosa"

domingo, 16 de outubro de 2016

"Não queiras ser" - Poema de Cecília Meireles


Florine Stettheimer (American, 1871-1944), Self- Portrait with Paradise Birds


Não queiras ser


Não queiras ser. 
Não ambiciones. 
Não marques limites ao teu caminho. 
A Eternidade é muito longe. 
E dentro dele tu te moves, eterno. 
Sê o que vem e o que vai. 
Sem forma. 
Sem termo. 
Como uma grande luz difusa. 
Filha de nenhum sol.


In Cânticos, 1982 


 
Florine Stettheimer, Heat, c.1919, Brooklyn Museum


"O prazer dos grandes homens consiste em fazer os outros felizes." 



Florine Stettheimer, Picnic at Bedford Hills, 1918


"Claro que te farei mal. Claro que me farás mal. Claro que podemos, mas essa é a condição da existência. Receber a Primavera significa correr os riscos do Inverno. Se desistir agora será correr o risco do desaparecimento. Amo-te."


- parte de uma carta escrita a Natalie Paley citada no livro "Sept lettres à Natalie Paley (1942 – 1943)"


sábado, 15 de outubro de 2016

"Lugares da Infância" - Poema de Manuel António Pina


Évariste CarpentierLes enfants endormis, s.d.
 


Lugares da Infância


Lugares da infância onde 
sem palavras e sem memória 
alguém, talvez eu, brincou 
já lá não estão nem lá estou. 

Onde? Diante 
de que mistério 
em que, como num espelho hesitante, 
o meu rosto, outro rosto, se reflete? 

Venderam a casa, as flores 
do jardim, se lhes toco, põem-se hirtas 
e geladas, e sob os meus passos 
desfazem-se imateriais as rosas e as recordações. 

O quarto eu não o via 
porque era ele os meus olhos; 
e eu não o sabia 
e essa era a sabedoria. 

Agora sei estas coisas 
de um modo que não me pertence, 
como se as tivesse roubado. 

A casa já não cresce 
à volta da sala, 
puseram a mesa para quatro 
e o coração só para três. 

Falta alguém, não sei quem, 
foi cortar o cabelo e só voltou 
oito dias depois, 
já o jantar tinha arrefecido. 

E fico de novo sozinho, 
na cama vazia, no quarto vazio. 
Lá fora é de noite, ladram os cães; 
e eu cubro a cabeça com os lençóis. 


in 'Um Sítio onde Pousar a Cabeça'


  Évariste Carpentier, L'ami farouche, c. 1893-95
 

"Há momentos, e você chega a esses momentos, em que de repente o tempo pára e acontece a eternidade."

(Fiódor Dostoiévski)


  Évariste Carpentier, Le petit étang, Musée des beaux-arts de Verviers


"Ame os animais, ame as plantas, ame tudo. Se amar tudo, perceberá o divino mistério em cada ser. Ao perceber isso, começará a compreender melhor as coisas a cada dia. Então, será capaz de amar o mundo todo da mesma forma, um amor sem distinção." 

Fiódor Dostoiévski


Retrato de Fiódor Dostoiévski (1872),  por Vasily Perov 


Fiódor Dostoiévski, (Moscovo, 15 de Novembro de 1821 — São Petersburgo, 9 de Fevereiro de 1881), foi um escritor russo, considerado um dos maiores romancistas da literatura russa e um dos mais inovadores artistas de todos os tempos. É tido como o fundador do existencialismo, mais frequentemente por Notas do Subterrâneo, descrito por Walter Kaufmann como a "melhor proposta para existencialismo já escrita."