segunda-feira, 8 de junho de 2020

"Cantiga" - Poema de Bernardim Ribeiro



Jules Breton, Paysanne au Repos, 1873


Cantiga 


Não sou casado, senhora,
que ainda não dei a mão,
não casei o coração.

Antes que vos conhecesse,
sem errar contra vós nada,
uma só mão fiz casada,
sem que mais nisso metesse.
Dou-lhe que ela se perdesse!
solteiros e vossos são
os olhos e o coração.

Dizem que o bom casamento
se há de fazer de vontade.
Eu, a vós, a liberdade
vos dei, e o pensamento.
Nisto só me achei contento:
que, se a outrem dei a mão,
dei a vós o coração.

Como, senhora, vos vi,
sem palavras de presente
na alma vos recebi,
onde estareis para sempre,
não de palavra somente;
nem fiz mais que dar a mão,
guardando-vos o coração.

Casei-me com meu cuidado
e com vosso desejar.
Senhora, não sou casado,
não mo queirais acuitar!
que servir-vos e amar
me nasceu do coração
que tendes em vossa mão.

O casar não fez mudança
em meu antigo cuidado,
nem me negou a esperança
do galardão esperado.
Não me engeiteis por casado,
que, se a outra dei a mão,
a vós dei o coração.


Bernardim Ribeiro
Antologia Poesia de Amor,
organizada por José Régio e Alberto de Serpa


Jules Breton, The Song of the Lark, Oil on canvas, 1884


Felicidade


Os olhos do amado
Esqueceram-se nos teus,
Perdidos em sonho.

Helena Kolody
(Haicai)



Bernardim Ribeiro, marble sculpture by António Alberto Nunes, 1891
Museu de Évora, Portugal

 

Pouco se sabe com exatidão sobre a vida de Bernardim Ribeiro, poeta e novelista português. Colaborou no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, pertenceu à roda dos poetas palacianos como Sá de Miranda, Garcia de Resende e Gil Vicente. Esteve algum tempo em Itália, onde tomou contacto com as inovações literárias. 

Não se conseguiu ainda provar que este poeta Bernardim Ribeiro e um provável seu homónimo que frequentou, entre 1507 e 1511, a Universidade de Lisboa, e que em 1524 foi nomeado escrivão da câmara, fossem a mesma pessoa. Pela leitura da écloga Basto, de Sá de Miranda e escrita antes de 1544, verificamos que este autor se refere ao seu "bom Ribeiro amigo" como já falecido.

Considerando especulativas todas as referências sobre as datas e locais de nascimento, período de vida e morte de Bernardim Ribeiro, algumas alusões autobiográficas à "aldeia que chamam Torrão" e a um "monte" podem levar-nos a considerar que o autor era oriundo do Alto Alentejo, Vila do Torrão.

A sua obra resume-se a doze composições, insertas no Cancioneiro Geral, quatro éclogas, a sextina Ontem pôs-se o Sol e a novela Menina e Moça.

António José Saraiva e Óscar Lopes afirmam em História da Literatura Portuguesa: "Nesta parte versificada da obra de Bernardim Ribeiro - tanto as líricas do Cancioneiro Geral, como as Éclogas - encontramos alguns temas e lugares-comuns característicos daquele Cancioneiro.

Bernardim coisifica a Esperança, o Cuidado, a Mudança, o Tempo, o próprio eu convertido em objeto, ou mim. Combina-os, opõe-nos num jogo de extrema subtileza e de denso significado. A emoção como que se desentranha do sujeito, se objetifica em relação a ele, num desdobramento múltiplo da personalidade, que fica como que assistindo a esse jogo das coisas no qual se converte. O Eu contempla o Mim, o Cuidado, a Esperança, a Mudança que ele próprio foi ou está sendo. Na finura com que se exprime uma tal alienação psíquica, há uma dialética precursora da de Fernando Pessoa. (...) Outro aspeto que salta à vista nestas composições é um certo apego narcísico à dor, ou talvez melhor, uma vontade de viver a dor até ao fim, de a transcender, explorando-a".

Sob o título Trovas de dous pastores, foi feita, em 1536, a primeira impressão de uma écloga (a de Silvestre e Amador). Em 1554, na oficina do hebreu emigrado Abraão Usque, em Ferrara, são editadas as suas obras. Mais tarde, em 1557, conheceu-se uma nova edição, em Évora, da Menina e Moça, a qual terá sido continuada por outro autor que lhe deu nova redação e acrescentou novos capítulos.

Segundo o investigador Teixeira Rego, não é de recusar liminarmente a hipótese de que Bernardim Ribeiro fosse de origem hebraica. Na verdade, e ainda segundo o referido investigador, o estilo de queixume e lamentoso, mesmo algo bíblico, que encontramos nos primeiros capítulos da Menina e Moça, alguns termos utilizados pelo autor na obra referida, nomeadamente "transmatação" ou "transmigração" e algumas alusões a perseguições e cisões do povo hebraico, implícitas nas falas de uma personagem, podem ser indicadores positivos e atestantes desta hipótese.

 Por outro lado, e de acordo com a afirmação de Hélder Macedo, os textos benardinianos encerram "uma meditação mística pessimista... em torno do amor humano e da saudade". Analisando o seu conteúdo, podemos considerar que Menina e Moça tem um fundo autobiográfico e é, em certa medida, um "roman à clef", definições sugeridas pela recorrência de anagramas (palavras ou frases formadas com a transposição das letras de outras. Exemplo: "Natércia" é anagrama de "Caterina"), tal como Binmarder é de Bernardim, Aónia de Joana, Avalor de Álvaro, Arima de Maria e Donanfer de Fernando. (Daqui)


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