sexta-feira, 5 de junho de 2020

"A Doida de Albano" - Poema de Rodrigues Cordeiro


Edvard Munch, “Entardecer”, 1888
 

A Doida de Albano



Anda cá, meu filho escuta,
És amigo de tua mãe?
- Oh! Minha mãe que pergunta?
- Basta meu filho, pois bem;
Vai ver a velha Vicência
O amor que um filho lhe tem.

Faz vinte anos,
(Dizendo tira do seio um punhal!)
Que teu pai morreu a golpes
Deste ferro por meu mal;
E eu que devia vingá-lo
Fiz uma jura fatal.

- Uma jura?! Mãe Santíssima!
Oh! Minha mãe, que jurou?
- Eu jurei por este sangue,
Que em ferrugem se tornou,
Que tu, filho matarias
Esse que a teu pai matou.

Matas? – Mato, aqui o juro:
- E matas seja quem for?
Ainda que essa vingança
Te roube do seio o amor?
- Ainda assim. – Toma o ferro,
É Ricardo o matador.

- Ricardo o pai de Maria!
- Sim esse. – Oh! Mãe perdoai!
Pela amante o pai esqueces!
- Filho ingrato... parte... vai,
Cumpre a jura ou sê maldito
Se não vingares teu pai.

Nessa noite tinto em sangue,
Com os cabelos no ar,
O assassino de Ricardo
Foi aos pés da mãe lançar
O punhal, com que jurara
Do pai a morte vingar.

Sorriu-se a velha, e contente
Abraçava o vingador,
Quando eis súbito aparece
Qual bela estátua de dor,
Junto do grupo chorando
D’ Albano a cândida flor.

- Paulo, meu Paulo, vingança;
Perdi meu pai... não o vês...
Nestas lágrimas sentidas,
Que aqui derramo a teus pés?!
Paulo, meu Paulo, vingança;
Vinga-me tu por quem és...

Eu o vi banhado em sangue
Assisti-lhe ao triste fim,
Quis falar-me, já não pode
Com os olhos fitos em mim,
Expirou... vingança eterna!
Tu vingas-me, Paulo... sim?

Vingo, Maria, sossega:
Eu sei quem teu pai matou;
Vai morrer com o mesmo ferro
Que ainda há pouco o trespassou.
Isto dito, as punhaladas
O próprio seio cravou.

Foge a pobre espavorida,
Deixa Albano, e sem parar,
Entra em Roma no outro dia,
Por toda a gente a gritar:
- Quem me mata por piedade,
Quem me vem também matar?

Assim vagou três dias,
Ao fim do quarto enlouqueceu!
E ainda hoje o caminhante,
Que passa pelo Coliseu
Vê a pobre às gargalhadas
Pedindo vingança a Deus.

 1874

António Xavier Rodrigues Cordeiro, poeta ultrarromântico, formado em Direito pela Universidade de Coimbra, tomou parte na revolução da Maria da Fonte e foi deputado anticabralista. 
Em 1844, fundou com João de Lemos o jornal de poesias O Trovador, órgão da juventude estudantil coimbrã da década de 40 e um dos principais repositórios do ideário poético da segunda geração romântica. 
Em 1854, fundou o jornal O Leiriense, onde publicou as crónicas históricas posteriormente coligidas nos dois volumes de Leituras ao serão.
A partir de 1862, dirigiu o Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, onde publicou várias biografias de escritores portugueses e brasileiros. 
Colaborou com artigos literários e poesias em vários outros periódicos, como O Bardo, O Panorama, o Jornal de Belas-Artes, a Revista Académica de Coimbra, O Instituto e A Revolução de setembro
Em 1889, reuniu a sua obra poética nos dois volumes de Esparsas. (Daqui)


Edvard Munch, “Nu feminino de joelhos”, 1919 

 
"Nós somos todos loucos, toda esta raça maldita. Estamos envolvidos em ilusões, delírios, confusões, estamos todos loucos e em confinamento solitário."

William Golding,
 Darkness Visible, 1979


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