domingo, 14 de junho de 2020

“Nem nos defende a ausência” - Poema de José Augusto Seabra


Peder Mørk Mønsted (1859–1941), An elegant woman in a red dress sitting at a coffee table
 in the garden embroidering, 1890


Nem nos defende a ausência


Nem nos defende a ausência:
é o reverso.
Sabemos todos já bem a ciência
da traição que se oculta a cada verso.

Nem nos salva a desculpa
de anoitecer, poetas:
por cada mea culpa,
apontam-nos a morte noutras setas.

Ficar nem chega. Ou ir
ou sepultar-nos.
Foge-nos o tempo já de decidir
Sequer suicidar-nos.

A bem ou mal, poetas.
Liberdade
só esta que sorri por entre as frestas
hesitante do peso da verdade.


José Augusto Seabra 





José Augusto Seabra

Poeta e ensaísta, nascido em 1937, no Porto, formado em Direito pela Universidade de Lisboa e doutorado em Letras pela École des Hautes Études de Paris, com uma tese sobre Fernando Pessoa, subordinada ao título Analyse Structurale des Hétéronymes de Fernando Pessoa: du Poémodrame au Poétodrame, em 1971. 

Militante do MUD (Movimento de União Democrática), foi preso na sequência do seu apoio à candidatura de Humberto Delgado. Exilou-se em Paris, onde foi professor na Universidade de Vincennes até 1974, data a partir da qual encetou atividade docente na Faculdade de Letras do Porto.

Aí fundou a revista Nova Renascença, dirigiu os Cadernos do Centro de Estudos Semióticos e Literários (1985), co-dirigiu o Centro de Estudos Pessoanos e a revista Persona (1977), onde publicou vários estudos sobre o autor da Mensagem. Nomeado embaixador de Portugal na UNESCO, foi professor catedrático na Sorbonne, de 1994, até à data da sua morte, a 27 de maio de 2004.

Colaborou em inúmeras publicações periódicas, portuguesas e estrangeiras, como Notícias do Bloqueio, A Planície, Coordenada, Cadernos de Literatura, Europe ou Colóquio/Letras. No domínio do ensaio e investigação literária, José Augusto Seabra publicou trabalhos fundamentais sobre a estética de Fernando Pessoa, cujas obras editou e anotou, e sobre o discurso de Roland Barthes, cujas obras traduziu.

Na criação poética, estreou-se com A Vida Toda, representado, no início da década de 60, a persistência de uma poesia comprometida onde o contexto histórico funciona como agente implícito e anónimo da angústia e do dilaceramento que o sujeito poético exprime na sua individualidade.

Abrindo-se à interrogação ontológica, a sua poesia, simultaneamente clássica e moderna, combina exemplarmente a disciplina formal com o excesso emotivo. De ressaltar, no entanto, na bibliografia literária de José Augusto Seabra, a continuidade entre indagação poética e escrita ensaística, de que se destacam A Pátria de Pessoa ou a Língua Pátria (1985) e Cultura Política ou a Cidade e os Labirintos (1986). (Daqui)


Peder Mork Mønsted, St. Andrea Church in Trouble, 1909


"Para si, meu filho, para si que estudou em escola, o chão é um papel, tudo se escreve nele. Para nós a terra é uma boca, a alma de um búzio. O tempo é o caracol que enrola essa concha. Encostamos o ouvido nesse búzio e ouvimos o princípio, quando tudo era antigamente."
 
Mia Couto, O Último Voo do Flamingo

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