sábado, 6 de junho de 2020

"O Navio Negreiro" - Poema de Castro Alves


François-Auguste Biard, The Slave Trade (Slaves on the West Coast of Africa), 1833



O Navio Negreiro

I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...

VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
(...)
François-Auguste Biard, L'abolition de l'esclavage dans les colonies françaises, 1849



História da escravidão


Como forma de sujeição a alguém ou opressão dos fortes sobre os mais fracos, desde sempre existiu escravatura. Os povos da Mesopotâmia, Hebreus, Gregos, Romanos, Celtas, enfim, todos os povos tiveram escravos, fenómeno que ainda não desapareceu completamente da face da Terra. Foi um fenómeno que variou de acordo com a época, lugar ou povo, porém assumindo diferentes contornos histórico-geográficos.

Nos tempos mais remotos da Humanidade, a escravatura era fruto de conflitos, findos os quais se sujeitavam os vencidos, reduzindo-os, quando poupados, a essa condição servil sem direitos ou garantias. Castigos, fraudes, raptos ou cativeiro prolongado eram outras causas.

Com o aparecimento das civilizações neolíticas, sedentarizadas e economicamente mais complexas e ativas, a escravatura surge como o esteio maior da marcha civilizacional dos povos, cuja atividade produtiva subsistia em função da existência de mão de obra escrava. Há, contudo, evoluções em termos do cerceamento de alguns direitos senhoriais em relação ao escravo, aliviando-lhe a condição e tentando evitar abusos.

No Egito, um pouco ao contrário da Mesopotâmia, as condições de existência dos escravos eram de certa forma amenizadas pela lei, o que lhes possibilitava mesmo a adoção de um nome egípcio e a fusão social com a massa camponesa do país, os felahs.
Eram sobretudo estrangeiros, vítimas da guerra, de cativeiro ou bandidos.

Noutras regiões também se contemplou legalmente o escravo: o código de Hamurábi, rei da Babilónia no século XX a. C., situava socialmente o escravo como um bem móvel entre os metais preciosos e os animais domésticos, prevendo-lhe, todavia, a possibilidade de emancipação através de uma cerimónia sagrada. Na China e na Índia, todavia sem quaisquer direitos, sempre existiram escravos.

A falta de mão de obra e os direitos de guerra estão na origem da escravatura na Grécia. A vulnerabilidade e a quase ausência de direitos caracterizam o fenómeno nesta região, embora se conheçam diferenças notórias entre Esparta e Atenas. Na primeira, onde lhes chamavam hilotas, de origem local ou presos de guerra, tratavam-nos duramente, sem direitos ou hipóteses de alienação; na segunda, as condições são melhores, atribuindo-se-lhes tarefas importantes (ensino e educação, por exemplo), muitas vezes aproveitando dotes anteriores à sua redução servil. Em Atenas, provinham do comércio ou das colónias mediterrânicas.

Em Roma, a situação muda. Primeiramente, eram um elemento da organização da domus (casa) familiar. A partir da revolução agrária do século IV a. C., as carências de mão de obra obrigam mesmo à escravização de lavradores livres.
O corso, a pirataria, as guerras de expansão do império trarão a Roma mais escravos, em números avassaladores por vezes. César, de uma assentada, vendeu cerca de 52 000 belgas, e Tito 90 000 judeus!
Os mercadores acompanhavam sempre as legiões, comprando presos de guerra para os venderem como escravos nas cidades romanas. Muitos eram comprados por lanistas (empresários de circo) para acabarem como gladiadores ou aurigas (condutores de carros puxados por cavalos).

A exclusão social e religiosa era gritante em Roma, apesar de a escravatura constituir a espinha dorsal da vida económica romana e da construção da sua grandiosidade imperial. Os escravos excediam em número a população livre, em parte por a sua condição servil ser hereditária. Espártaco, líder da última Guerra dos Escravos (73-71 a. C.), conseguiu facilmente juntar mais de 70 000 homens, pondo em pânico Roma. Apesar da dureza, alguns conseguiam bons trabalhos (como os educadores gregos, por exemplo) e muitas vezes o carinho senhorial e até a emancipação. Terêncio (poeta cómico) e Fedro (fabulista) eram escravos libertos. O poeta Horácio era filho de antigos escravos.

A escravatura continuará a existir na Idade Média, embora sem a expressão anterior ou o peso económico ou laboral. A partir da formação dos primeiros impérios coloniais, principalmente nos séculos XVI e XVII, a escravatura ganha nova importância, assumindo-se como suporte do sistema comercial (por exemplo, do comércio triangular) e produtivo. Acordos entre europeus e régulos africanos facilitarão o seu envio em massa durante mais de três séculos para as minas e plantações das Américas, cuja descoberta e colonização humana e económica acelerarão a aquisição crescente de mão de obra escrava para supressão de necessidades evidentes (os índios ou morriam facilmente ou eram fracos para o trabalho servil).

A escravatura adquire, assim, contornos como nunca na História se terá presenciado, quer em número quer em importância económica. Contabilizaram-se 900 000 no século XVI, 2 750 000 no seguinte, 7 milhões no século XVIII (55 000 por ano em média, atingindo às vezes os 80 000!), baixando no século XIX para 4 000 000. Estes números podem ter sido maiores, visto muitos terem morrido ainda em África ou na travessia atlântica.

Alguns historiadores calculam o número de africanos abrangidos ou tocados por este fenómeno em mais de 100 milhões ao longo de quatro séculos. Portugueses, holandeses, franceses e ingleses foram os responsáveis por uma das mais lucrativas formas de comércio da História. A sua origem abrangia quatro espaços principais: Congo/Angola, delta do Níger, Costa da Guiné e certas zonas da África Oriental. Aí, foram destruídos os estados africanos existentes em nome do comércio, muitas vezes controlado na origem por feiticeiros, sacerdotes e régulos locais ao serviço dos negreiros, árabes a princípio, depois europeus e até mesmo africanos. Os governos europeus apoiavam e favoreciam esta atividade económica lucrativa e importante no esforço de colonização dos territórios ultramarinos.

O Brasil, as colónias inglesas da América do Norte e as Antilhas serão o ponto de chegada principal do comércio de escravos. Trata-se mesmo de regiões onde as comunidades de origem escrava são ainda hoje consideráveis, se não mesmo maioritárias, não contando os mestiços. No Brasil, alcançam uma enorme influência na sociedade, em termos de folclore e de imaginário. Essa influência manifesta-se em diversas formas de religiosidade de cariz africano. Misturam-se, aí, os cultos de África com o Cristianismo imposto pelos colonizadores portugueses. Estes impuseram sempre a sua lei, valores, costumes e fé, ainda que com alguma tolerância.

A miscigenação constante criou o mulato, expressão máxima do relacionamento tolerante entre luso-brasileiros e escravos africanos, chegando estes a ajudar na expulsão dos holandeses do Brasil em 1648-49. Porém, não deixou de haver, como em qualquer regime esclavagista, excessos.

O século XIX marcará o início da abolição da escravatura, aplicando e consagrando ideais de liberdade, direitos e garantias do indivíduo, sem distinção da raça, credo ou cor, difundidos pelas revoluções e movimentos liberais europeus e americanos.

Toussaint Louverture, no Haiti, entre 1796 e 1802, comandará uma série de revoltas contra o domínio senhorial francês, acabando por precipitar a independência da ilha. Mais tarde, o Congresso de Viena (1814-15) pronunciar-se-á a favor do fim da escravatura, verificando-se tomadas de posição idênticas na Grã-Bretanha, Países Baixos e França devido às condições desumanas dos escravos nas suas colónias.
A emancipação total verifica-se em maior escala após 1838, trinta e um anos após o Abolition Act of Slavery em Inglaterra. Ainda que clandestinamente se prolongue até meados do século, o tráfico negreiro começa a desaparecer. Portugal acompanha esta evolução do abolicionismo europeu.

Subsistirão focos isolados nos EUA (onde se combateu uma Guerra Civil de que o esclavagismo foi um dos pontos de origem), África e América do Sul, embora continue na Europa de Leste (sobretudo na Rússia até quase à revolução de 1917), eliminando-se nessas regiões em 1926, sob a égide da Sociedade das Nações.

Em 2014, e segundo dados veiculados pela ONU através da Organização Internacional do Trabalho, subsistiam ainda perto de 21 milhões de pessoas sujeitas a algum tipo de escravatura, com especial predominância em países islâmicos, África sub-sariana e Extremo Oriente. (Daqui)

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