quinta-feira, 21 de novembro de 2024

"Na noite da minha morte" - Poema de Cristovam Pavia

 
Ludwig Michalek (Austrian portrait painter, graphic artist and copper engraver, 1859 - 1942), 
 'Dampfeisenbahn in voller Fahrt', s.d.
 

 
Na noite da minha morte

 
Na noite da minha morte
Tudo voltará silenciosamente ao encanto antigo...
E os campos libertos enfim da sua mágoa
Serão tão surdos como o menino acabado de esquecer.

Na noite da minha morte
Ninguém sentirá o encanto antigo
Que voltou e anda no ar como um perfume...
Há de haver velas pela casa
E xales negros e um silêncio que eu
Poderia entender.

Mãe: talvez os teus olhos cansados de chorar
Vejam subitamente...
Talvez os teus ouvidos, só eles ouçam, no silêncio da casa velando,
E mesmo que não saibas de onde vem nem porque vem
Talvez só tu a não esqueças. 


Cristóvam Pavia, in "35 Poemas"
 
 
Cristóvam Pavia


quarta-feira, 20 de novembro de 2024

"A Casa da Rua Abílio" - Poema de Alberto de Oliveira


Gustavo Dall'Ara (Pintor e desenhista italiano que imigrou para o Brasil, 1865-1923),
Casario em Santa Tereza, 1907.
 

A Casa da Rua Abílio

 
A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade

Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.

Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falarão,

E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração. 
 

Alberto de Oliveira
, Poesias, 4ª série
Rio de Janeiro: F. Alves, 1927.

Gustavo Dall'Ara, Trecho da Rua D. Manuel, 1920, Museu Histórico Nacional.


"A poesia é algo que anda pelas ruas. Que se move, que passa ao nosso lado. Todas as coisas têm o seu mistério e a poesia é o mistério que contém todas as coisas. Se passamos junto de um homem, se olhamos uma mulher, se adivinhamos a marcha oblíqua de um cão, em cada um desses objetos humanos está a poesia.
Por isso não concebo a poesia como abstração, mas sim como uma coisa real existente, que passou junto de mim. Todas as pessoas dos meus poemas existiram. O principal é encontrar a chave da poesia. Quando se está mais tranquilo, então, zás, se abre a chave e o poema aparece com sua forma brilhante."


Federico García Lorca, in Pequeno Poema Infinito.
 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

"O fio da vida" - Poema de Rui Knopfli


Oscar Björck (Swedish painter and a professor at the Royal Swedish Academy of Arts,
 1860 – 1929), Launching the Boat. Skagen, 1884.
 
 

O fio da vida 


Há homens que rezam na penumbra
das catedrais dolentes e há outros
que do alto das pontes olham
a escuridão rumorejante das águas.
Há homens que esperam na orla
marítima e outros arrastando-se
no viscoso esterco dos subterrâneos.
Há homens debruçados em pleno azul
e outros que deslizam sobre densos verdes;
há os desatentos na atenção e os que
espreitam atentamente a ocasião.
Há homens por fora e por dentro
do cimento armado, suspensos
das mil ciladas do quotidiano voraz;
de encontro aos muros, às paredes,
ao sol do meio-dia, ao visco da noite,
às sediças solicitações de cada instante.
Há a impotência poderosa da oração
e a obsessão amarga dos suicidas
e, de permeio, os que, porque hesitam,
porque ignoram, porque não creem,
não oram, nem se suicidam
e se quedam ante a impossibilidade de destrinça
entre o fio da vida e a vida por um fio.


Rui Knopfli, Obra Poética, 2003



Oscar Björck, Signal of Distress, 1883


"O Homem deve criar as oportunidades e não somente encontrá-las."

"A man must make his opportunity, as oft as find it."

Francis Bacon, Francisci Baconi Baronis de Verulamio...Opera Omnia Quatuor Voluminibus Comprehensa:
 In quo continetur Instaurationis magnae pars tertia, 1730 - Página 522.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

"O que nós vemos das coisas são as coisas" - Poema de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa



Auguste Roquemont (Pintor luso-suíço da época romântica, 1804-1852),
"Colegiada de Guimarães", s.d., Localização indeterminada.


O que nós vemos das coisas são as coisas


XXIV

O que nós vemos das coisas são as coisas.
Porque veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores. 

13-3-1914 

Alberto Caeiro
, “O Guardador de Rebanhos”. 
In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa
Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 50.

“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925. 
 
 

Auguste Roquemont, Cena de aldeia ou Chafariz de Guimarães (Tanque do Carmo), 1842.
Óleo sobre tela, 22 x 27,5 cm. Museu Nacional Soares dos Reis, Porto.



"Adultos seguem caminhos. Crianças exploram. Os adultos ficam satisfeitos por seguir o mesmo trajeto, centenas de vezes, ou milhares; talvez nunca lhes ocorra pisar fora desses caminhos, rastejar por baixo dos rododendros, encontrar os vãos entre as cercas."
 

Neil Gaiman, em "O Oceano no Fim do Caminho" (The Ocean at the End of the Lane), 2013.
 

domingo, 17 de novembro de 2024

"Estão batendo na porta" - Poema de Ricardo Azevedo



André Letria (Ilustrador português, n. 1973) (daqui)
 

Estão batendo na porta


Homem sério chega cedo,
olha seco pras pessoas,
cumprimenta com a cabeça,
fica longe e vai sentando.

Homem culto chega aéreo,
vive no mundo da lua,
abre um livro des’tamanho,
distraído vai sentando.

Homem belo vem bonito,
elegante e perfumoso,
puxa o espelho, passa o pente,
vem pro centro e vai sentando.

Homem pobre, quando chega,
chega sem nada na mão,
olha quieto, fala baixo,
e depois senta no chão.

Homem sábio chega calmo,
um por um vai abraçando,
fala pouco, olha nos olhos,
fica junto e vai sentando.

Homem doido chega e planta
bananeira na janela,
mostra a língua, tira a roupa,
pinta o sete e vai sentando.

Homem chato chega bobo,
vem torrando a paciência,
fala mole não se enxerga,
enche o saco e vai sentando.

Homem triste vem sozinho,
puxa o lenço e chora um pouco,
muita gente chega perto,
ele gosta e vai sentando.

Homem fraco chega branco,
capengando agasalhado,
tosse, espirra, ronca funga,
cospe, engasga e vai sentando.

Homem alegre chega leve,
vem contando as novidades,
dá três beijos, quatro abraços,
solta o riso e vai sentando.

Homem errado entra torto,
quebra o vaso tropeçando,
cai na sala, rasga a calça,
ri aflito e vai sentando.

Homem forte chega imenso,
abre a porta trovejando,
fala grosso, mostra o muque,
abre espaço e vai sentando.

Homem rico chega tarde,
vem falando de dinheiro,
faz mil contas, multiplica,
preocupado vai sentando.

Homem tímido não chega,
manda dizer que não vem,
fica em casa, deita cedo,
pra não sentir que tem medo.

Resta só uma pessoa,
pra reunião começar,
imagine agora um pouco,
quem é que falta chegar.


Ricardo Azevedo,
do livro "Dezenove poemas desengonçados",
Ática, 1997.


sábado, 16 de novembro de 2024

"Sonetinho infantil" - Poema de Carlos Pena Filho



Gustave Doyen
(French painter, 1836–1923), Little girl with her doll  
(Petite fille et sa poupée), s.d.
 
 

Sonetinho infantil
 
 
Era clara a menina, longe ou perto,
mesmo entre os seus alvíssimos lençóis.
Ria, como se visse caracóis
cantando uma opereta no deserto.

Logo piscou um olho para o coelho
que - diziam - não era bom da bola
e mágicos tirava da cartola
pois vivia ao contrário, atrás do espelho.

Depois ficou olhando uns elefantes
que mantinham conversa acalorada
sobre a lista dos dez mais elegantes.

Mas, depressa fechou seus olhos pretos
e adormeceu, para não ser trancada
com a chave de ouro de fechar sonetos. 


Carlos Pena Filho
 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

"Pátio" - Poema de Jorge Luis Borges


 
 

Pátio


Com a tarde
Cansaram-se as duas ou três cores do pátio.
A grande franqueza da lua cheia
Já não entusiasma o seu habitual firmamento.
Hoje que o céu está frisado,
Dirá a crendice que morreu um anjinho.
Pátio, céu canalizado.
O pátio é a janela
por onde Deus olha as almas.
O pátio é o declive
Por onde se derrama o céu na casa.
Serena,
A eternidade espera na encruzilhada das estrelas.
Lindo é viver na amizade obscura
De um saguão, de uma aba de telhado e de uma cisterna. 
 
 
Jorge Luis Borges
,
in "Fervor de Buenos Aires", 1ª edição de 1923.
Tradução de Manuel Bandeira
 
 


"Recolha um cão de rua, dê-lhe de comer e ele não morderá: 
eis a diferença fundamental entre o cão e o Homem." 
 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

"Dois gatos" - Poema de Ivan Junqueira


Julius Adam (German genre painter and animalier specialising in pictures of cats, 1852 - 1913),
Zwei Kätzchen im Korb mit blauem Tuch, c. 1913.
 
 

Dois gatos

1

Eram dois gatos num só
a se esfregarem no pó

das velhas tábuas do assoalho,
rente às brasas do borralho

de uma lareira sem dono,
no fluido limiar do sono.

Era um gato e eram dois,
mas só se os viam depois

que um se escondia na pele
do outro e abandonava a dele,

como quem sai de si mesmo
e, passo a passo, anda a esmo,

sem destino, alheio à sorte
do que seja a vida e a morte.

Eram dois de olhos azuis
quais turquesas, e um capuz

que a cabeça lhes cobria
com egípcia simetria,

de uma orelha a outra orelha,
de uma a outra sobrancelha.

E lembrem-se o rabo e as patas
de cores gémeas, exatas.

Se um sumia, o outro miava
em, num átimo, o encontrava

sob os degraus de uma escada
que subia rumo ao nada.

Jacó e Esaú: lhes deram
esses nomes que não eram

senão o dilema arcano
do rosto de um deus romano.

Nunca foram, pois, iguais,
e disso havia sinais

em todo e qualquer detalhes,
não de postura ou de talhe,

mas de índole e de aspeto:
um, esquivo e circunspecto,

o outro, terno, mais afeito
a quem o punha no leito.

2

Foi-se a areia da ampulheta,
foram-se os tons da palheta

que davam cor à façanha
de um só ser dois nessa estranha

aptidão de duplicar-se
sem artifício ou disfarce.

E hoje ainda me pergunto
quando me toca esse assunto:

seria mesmo um só gato
que se expandia em dois no ato

de ludibriar os que os viam,
ou eram ambos que urdiam

uma única criatura
em que tudo se mistura? 


Ivan Junqueira

(Jornalista, poeta, tradutor e crítico literário brasileiro, 1934 - 2014)
 

 
 
"Ele fixara em Deus aquele olhar de esmeralda diluída, uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Às vezes, quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende mas sem a instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a memória da sua liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo."
 

Julius Adam, Cat with her Kittens, s.d.
 
 
"O gato é o único animal que aceita os confortos, mas rejeita a escravidão da domesticidade."

Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

"A Casa da Poesia" - Poema de José Jorge Letria


Fátima Marques (Artista plástica brasileira, n. 1956), Encontro com o Futuro, 2019.



A Casa da Poesia


A poesia tem uma casa
como as pessoas têm,
só que é diferente,
só que tem espaço
para todos quantos
nela querem entrar
com a terna alegria
de quem a vai habitar.

É um casa sem portas nem janelas,
sem teto e sem cave,
pois assim tem mais espaço
para quem nela quer morar.

É uma casa de sons,
que por vezes parecem música,
embora sejam apenas palavras,
palavras simples e graves,
agudas e tristes,
cantantes e belas,
palavras que são a pedra e a cal
dessa casa onde todos podem morar.

A poesia tem uma casa
toda feita de versos
que podem ou não rimar,
que podem fazer rir e chorar
como os palhaços do circo
que, à sua maneira,
são poetas da oficina do riso,
da festa das mais sonoras gargalhadas.

A poesia gosta de acordar cedo
para ouvir os pássaros a cantar
e os rios a correr
e os sonhos a acordar
dentro da cabeça
de quem não os quer deixar morrer.

A poesia junta os sons
com a delicadeza
das bordadeiras e dos ourives
quando querem
que aconteça beleza.

A poesia dá nome
ao que não tem nome
e se umas vezes rima,
como acontece nesta fala,
outras vezes não rima
e escreve como quem cala
por saber que a poesia
deve estar sempre acima
de quaisquer jogos de sala.

A poesia vai à escola
com um bibe feito de versos,
de mãos dadas com os meninos
que lhe querem perguntar
qual é a idade certa
para a poesia se revelar.

Na escola da poesia
ninguém tem notas para lhe dar,
pois ela não está
nem nunca esteve
ali só para passar.
Tem um desejo apenas:
ficar no coração
de quem a quiser lembrar.

A poesia tem uma casa
onde moram os poetas
e para eles terá sempre
as portas imaginárias
iluminadas e abertas.

A poesia anda de metro,
ou nos elétricos da cidade,
sem ter pressa de chegar,
porque isto de não ter pressa
é a sua liberdade
e é dessa liberdade
que gosta de se alimentar.

A poesia tem uma casa
que não é grande nem pequena,
pois tem sempre o tamanho
que tem cada poema.

A poesia vai à escola
com mil versos na mochila
e depois lança-os ao vento
para que possam chegar mais longe
do que chega o pensamento
e, num tempo sem memória,
consigam durar sempre mais
do que dura o esquecimento.

A poesia tem um jardim,
um terraço e um quintal
para receber os amigos
vindos do mundo animal:
os cães do abandono
que não têm casa nem dono,
os gatos livres e espertos
que mantêm sempre, rebeldes,
os olhos bem abertos,
as andorinhas e os pardais
e outros bichos mais,
incluindo os de conta,
e uma vez por outra
também uma barata tonta.

A poesia gosta de rir
porque o riso a alivia
dos medos e dos fantasmas
que lhe aparecem dia a dia
e também das contas certas
que não rimam com alegria
e adiam a felicidade
como quem mata a magia.

A poesia tem uma escola
onde gostava de aprender
que trovoadas e ciclones,
planetas e clones
são formas do universo
não se cansar e morrer.

A poesia tem uma casa
onde escreve à luz de velas
e que nunca há de ter teto
para poder ver as estrelas.

Não é voto de pobreza
este seu modo de ser,
é apenas a maneira
mais perfeita e certeira
de nunca se perder
nos estranhos labirintos
da aventura de escrever.

A escola da poesia
tem muitos livros num livro
que se conhece à distância,
pois é nele que se guardam
os mistérios da infância.

A poesia dá nome
ao que no falar comum
raramente nome tem
e deixa sempre em cada um
o desejo sentido
de falar com mais alguém
para que a poesia cresça
e os leitores mereça
porque lhes faz bem.

A casa da poesia
tem tom azul de mar
nas paredes que não tem
mas que dá gosto inventar,
apenas porque sabe bem
ter uma casa assim
mesmo à mão de semear.

A casa da poesia
nunca será assaltada,
porque aquilo que nela existe,
sendo um tesouro raro,
afinal não vale nada
para os ladrões escondidos
no escuro da madrugada.

A casa da poesia
está cheia de crianças,
de histórias e de lendas,
de jogos e de danças
e até a Beatriz
com um pauzinho de giz
desenha asas em vez de tranças.

A casa da poesia
tem uma mesa imensa
onde um poeta irrequieto
espalha o seu afeto
na hora de escrever
uma ode ou um soneto.

Na mesa da poesia
há sempre lugar para mais um,
e que se saiba não há poeta
que dela saia em jejum,
seja moderno ou antigo,
consagrado ou esquecido,
de elegias ou canções,
seja Cesário Verde,
Fernando Pessoa, Ruy Belo
ou mesmo Luís de Camões.
E esse livro de poemas,
vê lá onde é que o pões!

A poesia tem uma casa
que não aparece nos jornais,
talvez por iguais a ela
não existirem mais.
É uma casa hospitaleira
onde o sono é fantasia
e cada poema tem
a sua própria melodia.

A casa da poesia
cedo se abre para a festa,
espaço de luz e de sombra,
talvez canção de gesta
onde cabe a gente toda
com a alegria a circular
de uma velha canção de roda.

A poesia vai à escola
para alegrar o recreio
com uma rima daquelas
que acertam em cheio
nos medos que não largam
os meninos com receio
de estarem numa sala
com fantasmas lá no meio.

Na casa da poesia
existe sempre à mão
a poeira de magia
a que se chama inspiração
e esse jeito secreto
de juntar trabalho e emoção.

Na casa da poesia
cabem netos e avós,
pais, primos e irmãos
em páginas ímpares e pares,
e cabe sempre a nossa voz,
pois os esforços não são vãos
quando teima a poesia
em não nos deixar sós.

Na casa da poesia
há sempre uma luz acesa
e uma vela que alumia
com a intensa luz do dia
a mágoa ou a tristeza
e que convida duendes e fadas
para nos fazerem companhia
nas longas madrugadas.

A poesia vai à escola,
ainda hoje ou amanhã,
com um cesto de frutos
onde o morango e a romã
se põem a conversar,
talvez mesmo a namorar,
para que nunca seja vã
essa vontade de mostrar
aquilo que a poesia,
seja cereja ou maçã,
desde sempre guarda
para nos encantar.

Já os pais se vão deitar,
que amanhã é outro dia
e no quarto dos meninos
há uma luz que cintila
e há dez magos em fila
com a poção que anuncia
que na página em branco
irá nascer poesia,
a liberdade mais livre
que existiu algum dia.


José Jorge Letria
, "A Casa da Poesia",
Lisboa, Terramar, 2003.

 
"A Casa da Poesia" de José Jorge Letria,
Ilustração: Rui Castro
Editor: Terramar, 2003

 


Plano Nacional de Leitura

Livro recomendado para o 4º ano de escolaridade, destinado a leitura autónoma.


Fátima Marques, Liberdade, 2018
 

"Nunca se pode concordar em rastejar, quando se sente ímpeto de voar." 
 
Helen Keller
, "The story of my life" - página 393, Helen Keller, John Albert Macy, Annie Sullivan - 
Doubleday, Page & Company, 1903 - 439 páginas.
 

terça-feira, 12 de novembro de 2024

"Poema do cão ao entardecer" - Poema de António Gedeão


Poema do cão ao entardecer


Um cão no areal corria presto.
Presto corria o cão no areal deserto.

Era ao entardecer, e o cão corria presto
no areal deserto.

Corria em linha reta, presto, presto,
pela orla do mar.
Pela orla do mar, em linha reta,
corria presto, o cão.

Era ao entardecer.
No areal as águas derramadas
nas angústias do mar
lambuzavam de espuma as patas automáticas
do cão que presto, presto, corria em linha reta
pela orla do mar.

Sem princípio nem fim, em linha reta,
pela orla do mar.

Era ao entardecer,
na hora espessa, peganhenta e húmida,
em que um resto de luz no espasmo da agonia
geme nas coisas e empasta-as como goma.
No espaço diluído, esfumado e cinzento,
corria presto o cão no areal deserto.
Corria em linha reta, presto, presto,
definindo uma forma movediça
que perfurava a névoa e prosseguia
pela orla do mar, em linha reta,
focinho levantado, olhos estáticos,
fixando o breve ponto onde se encontram
além de todo o longe
as retas que se dizem paralelas.

Alternavam-se as patas na cadência,
na cadência ritmada do movimento presto,
deixando no areal as marcas do contacto.
Presto, presto.

Como se um desejo o chamasse, corria presto o cão
no areal deserto.
O ritmo sempre igual, a língua pendurada,
os olhos como brocas, furadores de distâncias.

Em seu último espasmo a luz enrodilhou
o cão, o mar, o céu, o próximo e o distante.
Era um suposto cão correndo presto, presto,
num suposto areal, realmente deserto,
por uma linha reta mais suposta
que o areal e o mar
Mas presto, presto, sempre presto, presto,
ia correndo o cão no areal deserto.


António Gedeão
, Poemas póstumos, 1984.

 

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

"Glória" - Poema de Francisco Bugalho



Luis Egidio Meléndez (Spanish painter, 1716 - 1780),
Self-portrait Holding an Academic Study, 1747
 

Glória 
 
 
Vive dentro de mim um mundo raro
Tão vário, tão vibrante, tão profundo
Que o meu amor indómito e avaro
O oculto raivoso ao outro mundo

E nele vivo audaz, ardentemente,
Sentindo consumir-se a sua chama
Que oscila e desce e sobe inquietamente;
Ouvindo a minha voz que por mim chama

Em situações grotescas que me ferem,
Ou conquistando o que meus olhos querem:
Príncipe ou Rei sonhando com domínios.

Sinto bem que são vãs pra me prenderem
As mãos da Vida, muito embora imperem
Sobre a noção real dos meus declínios. 
in "Dispersos e Inéditos" 

domingo, 10 de novembro de 2024

"21 Anos" e "45 Anos" - Poemas de Adília Lopes



Almeida Júnior
(Pintor, professor e gravurista brasileiro, 1850 -1899), 
Moça com livro, c. 1879, Museu de Arte de São Paulo, São Paulo.


21 Anos 



Os meus cavalos
espantaram-se

Como o Hipólito
da tragédia grega
bocados de mim
pendem
dos arbustos


Adília Lopes,
in 'A Árvore Cortada', 2006
 

Almeida Júnior, Leitura, 1892


45 Anos


É tempo
de regressar
a casa

A poesia
não está
na rua


Adília Lopes
in 'A Árvore Cortada', 2006
 

sábado, 9 de novembro de 2024

"Elogio da dialética" - Poema de Bertolt Brecht


Carl Steffeck (German painter and graphic artist, 1818-1890), Portrait of the Advocate Ernst Lau, 1865.
[Carl Steffeck was especially well known for his paintings of horses and dogs.]
 
 

Elogio da dialética
 

A injustiça vai por aí com passe firme.
Os tiranos se organizam para dez mil anos.
O poder assevera: Assim como é deve continuar a ser.
Nenhuma voz senão a voz dos dominantes.
E nos mercados a espoliação fala alto: agora é minha vez.
Já entre os súditos muitos dizem:
O que queremos, nunca alcançaremos,

Quem ainda está vivo, nunca diga: nunca!
O mais firme não é firme.
Assim como é não ficará.
Depois que os dominantes tiverem falado
Falarão os dominados.
Quem ousa dizer: nunca?
A quem se deve a duração da tirania? A nós.
A quem sua derrubada? Também a nós.
Quem será esmagado, que se levante!
Quem está perdido, que lute!
Quem se apercebeu de sua situação, como poderá ser detido?
Os vencidos de hoje serão os vencedores de amanhã.
De nunca sairá: ainda hoje.
 
 
Bertolt Brecht, em "O duplo compromisso de Bertolt Brecht".
Tradução Haroldo de Campos
 

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

"Soneto contra as pesporrências" - Poema de Fernando Assis Pacheco



Cruzeiro Seixas (Poeta e pintor surrealista português, 1920-2020),
'As palavras só têm um valor real na poesia', 2001. Serigrafia sobre papel.


Soneto contra as pesporrências


É favor não pedirem a esta poesia
que faça o jeito às alegadas tendências
do tempo nem às vãs experiências
que sempre a deixaram de mão fria

o que iria bem mas mesmo bem seria
num jornal a coluna das ocorrências
as coisas da vida mais do que as pesporrências
editoriais do comentador do dia

o que vai mal com ela são as petulâncias
de que se vestem muitas redundâncias
dando-se públicos ares de sabedoria

que o leitor farto das arrogâncias
magistrais troca por outras instâncias
onde pode mandá-las pra casa da tia


Fernando Assis Pacheco
, A Musa Irregular, 1991.
(Antologia poética)


"A Musa Irregular" de Fernando Assis Pacheco
Edição/reimpressão: 11-2006
Editor: Assírio & Alvim
 

SINOPSE

A primeira edição de A Musa Irregular apareceu em Lisboa, com a chancela da Hiena Editora, em Fevereiro de 1991. Teria segunda edição em 1996 e terceira em 1997, ambas nas Edições Asa. A presente segue naturalmente a primeira, efetuando as correções que o próprio Fernando Assis Pacheco deixou manuscritas. (daqui)


A Musa Irregular

A Musa Irregular reúne a obra poética completa do autor, coligindo volumes editados, dispersos e inéditos. No trajeto poético coberto pela coletânea, as obras compostas durante e sob o efeito da experiência da guerra colonial têm um papel fundamental na instituição de um sujeito poético que, sobre um fundo de dor e revolta, desenvolverá estratégias de conservação como o distanciamento irónico ou o humor. A situação limite da guerra, limiar da vida, da humanidade e da própria identidade, impõe um esforço de autocontrolo e de resistência contra a desintegração psíquica ("Abençoado o meu domínio / sobre os nervos desfeitos, shazam!", "Rascunhos e Fragmentos") que marcará a sua escrita poética enquanto recusa de cedência ao lirismo angustiado: "não posso deixar que a tristeza / sujeite estes versos. [...] não me vou deixar / transformar num poeta azedo." ("Animais de Fogo"). 

Colada à experiência e ao vivido, a poesia de Fernando Assis Pacheco reclama-se de uma total liberdade e opõe-se a qualquer tipo de experiência literária profissionalizada ou institucionalizada ("É favor não pedirem a esta poesia / que faça jeito às alegadas tendências / do tempo nem às vãs experiências / que sempre a deixaram de mão fria", "Soneto contra as Pesporrências"), não se coibindo de tocar conscientemente os limites do antilirismo, deixando-se embeber pelo prosaico e desenvolvendo um trabalho de subversão gramatical. A singular combinação de traços como a denúncia de alienações coletivas, as pausas líricas para a evocação de afetos e vivências (o pai, a filha, os amores de Coimbra), a declarada "educação maneirista" que acentua o rigor compositivo, a pluralidade de registos, a abertura a uma vanguarda com uma postura subjetiva conferem a A Musa Irregular uma estatuto singular na poesia da segunda metade da época contemporânea. (daqui)

 

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

"Estação" - Poema de José do Carmo Francisco


Cuthbert Hamilton Ellis (English railway writer and painter, 1909–1987),
"Travel in 1840, Old Station at Derby, North Midland Railway", 1951.
Science Museum Group



Estação 


Um comboio que partisse
Sem sair da estação
No lado esquerdo da linha
Transporte dum coração.

Um comboio que chegasse
Na ânsia de não saber
Qual janela escolhida
No trânsito desta mulher.

Afinal sombra, um modelo
Visto apenas de passagem
O comboio não se deteve
Não era minha viagem.

Afinal pó de um momento
Registado num poema
Se o comboio esteve aqui
Era o mesmo do cinema.


José do Carmo Francisco
,
in As emboscadas do esquecimento, 
Santarém, Ed. O Mirante: 1999, p. 40 


Cuthbert Hamilton Ellis, "Travel in 1865, West Coast Express, Shugboro", 1951.
 
 
"Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento." 
 

Adélia Prado, Poesia reunida
São Paulo: Siciliano, 1991.
 
 
Cuthbert Hamilton Ellis, County Donegal Railway, 2-6-4T locomotive 'Alice' 
hauling mixed train, passing through the Barnesmore Gap. 


"Quem anda nos trilhos é trem de ferro.
 Sou água que corre entre as pedras
 Liberdade caça jeito."
 
 
Manoel de Barros, em "Matéria de Poesia". 
Rio de Janeiro: Record, 2001.


Cuthbert Hamilton Ellis, South Eastern Railway train in Kent countryside hauled 
by 4-2-0 locomotives nos. 85 and 136. Framed and glazed, glass. 
 

Cuthbert Hamilton Ellis

 
Writer and illustrator of books on railways, 1940s-1980s; employed by British Railways; produced artwork for LMS; signed artwork C Hamilton Ellis.

In an interview with Sir Peter Allen in 1976, Cuthbert Hamilton Ellis was asked when he became interested in trains. "Oh trains! Trains began, to my recollection, in July 1911, probably before, but that is as far back as I can remember". This casual reply belied the fact that the railway had captured his imagination and imprinted itself on his earliest childhood memories - he was only two years old in 1911! The emotion railways aroused in him is expressed in his choice of words: "I was born to it" he said, referring to his preference for the LSWR, "but I became very fond of the Great Western; I always loved the enemy".

Hamilton Ellis' mother was a professional photographer and when her son was twelve she photographed some captive wildlife specimens to illustrate an article he wrote on lizards - a lifelong passion - for Country Life. Hamilton Ellis himself became a keen photographer and journalist, beginning his career with The Railway Magazine, and Railway Gazette, before moving on to write for Modern Transport. It was at this time, in 1947, that "everybody's Christmas book", The Trains We Loved, was published. It made his name and brought him a flood of commissions in the following decade. Though his bank manager commented nervously "It is a very hazardous way of earning a living isn't it?", he embarked on a successful second career writing and illustrating books on both trains and ships, as well as selling paintings from his exhibitions. He also possessed a strong sense of humour, and published comic railway books such as Rapidly Round the Bend and Ballad of the M7. (daqui)
 

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

"Brincava a criança" - Poema de Fernando Pessoa


Gustave Jean Jacquet (French painter, 1846 - 1909),
The Wheelbarrow Ride, Private collection.



Brincava a criança



Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincando
E disse, eu sou dois!

Há um a brincar
E há outro a saber,
Um vê-me a brincar
E outro vê-me a ver.

Estou por trás de mim
Mas se volto a cabeça
Não era o que eu queria
A volta só é essa...

O outro menino
Não tem pés nem mãos
Nem é pequenino
Não tem mãe ou irmãos.

E havia comigo
Por trás de onde eu estou,
Mas se volto a cabeça
Já não sei o que sou.

E o tal que eu cá tenho
E sente comigo,
Nem pai, nem padrinho,
Nem corpo ou amigo,

Tem alma cá dentro
Está a ver-me sem ver,
E o carro de bois
Começa a parecer. 

5-12-1927 

Fernando Pessoa
, Poesias Inéditas (1919-1930).
(Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.)
 Lisboa: Ática, 1956